quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Vida e missão do presbítero vicentino.

Vida e missão do presbítero vicentino.

Refletir a vida e a missão do presbítero é algo muito importante, pois quanto mais se discute sobre o lugar e o papel do sacerdote no mundo e na Igreja mais se abrem possibilidades para uma profícua intercomunicação e intercomunhão entre todos os cristãos. A Igreja em toda sua história sempre prestigiou o papel do sacerdócio ministerial, mas somente no Concílio Ecumênico Vaticano II, foi dada a devida distinção, e ao mesmo tempo o devido lugar ao sacerdócio comum e ao ministério ordenado. “O sacerdócio comum dos fìéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, apesar de diferirem entre si essencialmente e não apenas em grau, ordena-se um para o outro; de fato, ambos participam, cada qual a seu modo, do sacerdócio único de Cristo. O sacerdócio ministerial pelo poder sagrado de que é investido, organiza e rege o povo sacerdotal, oferece o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo em nome de todo o povo; por seu lado os fìéis, em virtude do sacerdócio régio, têm também parte na oblação da eucaristia, e exercem o sacerdócio na recepção dos sacramentos, na oração e na ação de graças, no testemunho de uma vida santa, na abnegação e na caridade operante.”[1]
Ora, como deixa claro o Concílio há uma missão própria, particular e peculiar ao fìel que, retirado do meio do povo é investido pelo sacramento da ordem da potesta christi para servir aos irmãos, a fim de que todos atinjam, não obstante seus pecados, a vida de santidade anunciada por Jesus. Por isso o presbítero é um irmão na fé que com seu testemunho de vida ajuda o povo de Deus a caminhar ao encontro de Cristo. Desta forma, o povo de Deus sente necessidade de presbíteros – discípulos: que tenham profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom pastor; de presbíteros – missionários: movidos pela caridade pastoral que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procurar os mais distantes, atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da solidariedade. Também de presbíteros cheios de misericórdia. [2]
Neste artigo tentaremos entrever, em meio a atual conjuntura, alguns caminhos que apontem positivamente luzes que ilumine a vocação do presbítero – discípulo e missionário de Jesus Cristo – vicentino.
Logo após o Concílio Ecumênico Vaticano II, muitos sacerdotes perderam o horizonte de seu ministério. Alguns se perguntavam: para quê ser padre? Outros não viam necessidade dos ministros ordenados. Ora, a crise se constitui no pós-concílio como uma dificuldade de compreender a abertura da Igreja. Antes do Concílio, os padres tinham bem claro o seu papel na Igreja: o presbítero era o cura de almas, e a ele, “o amigo de Deus”, cabia reconduzir as ovelhas ao pastor supremo das almas, Jesus Cristo. O lugar do ministério ordenado, portanto, era salvar as Almas. A salvação e tudo que estava unido a ela pertenciam a função do padre. Aos leigos cabia receber passivamente os frutos da salvação em cujo “poder eclesial” eles não participavam. Ora, com a abertura oriunda do Pós Vaticano II e do iminente papel ativo que os leigos ganharam dentro e fora da Igreja, o quadro foi significativamente alterado.
Todos os cristãos, como bem demonstrou o número 10 da LG, participam do único sacerdócio de Cristo. Eles são membros com as mesmas dignidades de fìlhos de Deus pelo batismo e membros de seu Povo. Essa abertura conciliar colocou o batismo cristão no centro da vida eclesial. Ao meu ver, isto representou, um dos maiores avanços do Concílio. Agora não é somente ao clero, mas a cada cristão é dado a dignidade e o poder de anunciar e testemunhar Cristo no mundo. O centro dinâmico da Igreja é a comunidade dos batizados, onde todos são chamados a santidade da Igreja e ao compromisso de uma vida de caridade.[3]
Então, qual a missão do sacerdote? O padre, pela ordenação é configurado com Cristo-Sacerdote, que o torna capaz de agir e falar publicamente em favor dos homens na pessoa de Cristo-Cabeça, participando da autoridade com que o próprio Cristo constrói, santifica e dirige seu corpo.[4] “Mediante a consagração sacramental, o sacerdote é configurado a Jesus Cristo enquanto Cabeça e pastor da Igreja e recebe o dom de um ‘poder espiritual’ que é participação da autoridade com a qual Jesus Cristo pelo seu Espírito conduz a Igreja.”[5] O presbítero é escolhido de dentro da comunidade dos fìéis para a missão de ser sinal visível da caridade, da compaixão e da solidariedade de Cristo no mundo. O conteúdo da caridade pastoral é o dom de si; o total dom de si à comunidade. Mas o sacerdote sabe que ele no meio dos irmãos é primeiramente fìel e somente depois é pastor. Como afirma Santo Agostinho: convosco sou fiel e para vós sou pastor. Assim segundo o Concílio todo o povo de Deus e não apenas o presbítero, participa da unção do Messias.
O fato de o presbítero ser tirado do meio do povo, não o isola do mundo e do resto da humanidade nem o situa em um patamar acima deste. Pelo contrário, o presbítero é chamado a conviver humilde e fraternalmente, inserido na realidade do povo de Deus. Pela unção, o padre se configura a Cristo, e é chamado a anunciar a Palavra do Senhor, realizando os sacramentos em nome do Senhor. Como diz São Vicente fazendo na terra o que fez o Filho de Deus.[6]
Por isso, para São Vicente o padre é um imitador de Cristo como servo que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em favor de seus irmãos. Desta forma, para o presbítero vicentino Cristo é a regra da sua vida e da sua missão. “Nesta vocação vivemos de modo mui conforme a Nosso Senhor Jesus Cristo que, quando veio a este mundo, escolheu como principal tarefa a de assistir e cuidar dos pobres.”[7] Segundo São Vicente a missão que Deus confiou ao sacerdote é a de na terra continuar a sua obra. “A evangelização dos pobres é um oficio tão importante que foi, por excelência, o oficio do Filho de Deus. A ele nós nos aplicamos como instrumentos dos quais se serve o Filho de Deus que continua a fazer no céu o que fez na terra.”[8]
Na vida do sacerdote que abraça a radicalidade da incorporação a Cristo pelo sacramento da ordem, devem coincidir ministério e vida, função eclesial e carisma. Assim a missão e a vida do padre são concomitantemente duas realidades pericoreticamente implicadas.[9] O padre, e de modo especial, nós vicentinos, precisamos nos revestir de Jesus Cristo. Porque para vivermos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo temos de ser como Jesus Cristo.[10] Acredito que para um frutuoso serviço ministerial, é mister que o sacerdote esvazie-se de si mesmo e deixei-se modelar por Jesus. Não falo aqui de algo somente espiritual, mas existencial. É necessário assumir a missão de Cristo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a boa nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor.”[11]
Para São Vicente estava claro que ser missionário era seguir os passos de Jesus, o Cristo. E como segui-lo? Eis aí o projeto de vida de Jesus. Ser um padre missionário é anunciar a boa nova a todas as pessoas, e preferencialmente aos pobres. Ser um padre missionário é libertar os oprimidos de todo tipo de amarra que os impedem de ser gente e ter dignidade. Ser um padre missionário é curar as feridas, levar as pessoas a descobrirem sua dignidade de filhos/as de Deus. Ser um padre missionário é dar vista aos que estão cegos pelo egoísmo, pela maldade, pelo desamor e pelo materialismo. Ser um padre missionário é anunciar que o Reino de Deus já chegou em forma de vida abundante para todos: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).
O sacerdote como continuador de Cristo tem que ser o primeiro a imitá-lo. Esta é a base de toda espiritualidade do presbítero vicentina: Cristo é a regra de nossa vida e missão. “Nesta vocação vivemos de modo mui conforme a Nosso Senhor Jesus Cristo que, quando veio a este mundo, escolheu como principal tarefa a de assistir e cuidar dos pobres. MISIT ME EVANGELIZARE PAUPERIBUS. E se perguntam a Nosso Senhor: ‘O que veio fazer na terra?’ – ‘Assistir os pobres’ – ‘Algo mais?’ – ‘Assistir os pobres’, etc.” [12]
Para São Vicente o sacerdote deve colocar a sua vida na sua vocação, isto é, viver de tal modo que esteja sempre pronto para testemunhar Cristo em qualquer tempo e lugar. Só serás quem deves ser como sacerdote, se colocares tua vida inteira na tua vocação. Só então serás sacerdote como deve ser e a partir da raiz do seu ministério, se realizares as tuas funções ministeriais com fé, esperança e amor, com todas as energias de tua vida. Tarefa de tua vida é a aproximação, sempre mais íntima, entre ti e o teu ministério. Tua vocação é tua vida e tua vida é tua vocação. Não dispões de vida privada capaz de desdobrar-se independente e fora do teu sacerdócio, vida que só parcialmente seja superposta por tuas obrigações funcionais. O que fazes como ‘funcionário’ oficial da sociedade visível da Igreja externa deve constituir a lei da tua própria vida pessoal. Teu cristianismo é teu sacerdócio e vice-versa. [13]
O sacerdote é um enviado de Cristo e da Igreja pela ordenação para viver e atuar na força do Espírito Santo a serviço da comunidade. Daqui se entende o essencial da caridade pastoral que deve ter o presbítero para com o povo a ele confiado. Pois “a caridade pastoral é aquela virtude pela qual nós imitamos Cristo na entrega de si mesmo e no seu serviço. Não é apenas aquilo que fazemos, mas o dom de nós mesmos que manifesta o amor de Cristo por seu rebanho. A caridade pastoral determina o nosso modo de pensar e de agir, o modo de nos relacionarmos com as pessoas.”[14]
Como já podemos perceber a missão do sacerdócio ministerial não é um simples título jurídico, nem um status social. Não consiste apenas num serviço eclesial prestado à comunidade, delegado por ela, e por isso revogável pela mesma comunidade ou renunciável por livre escolha do funcionário. Trata-se, ao contrário, de uma real e íntima transformação por que passa o organismo sobrenatural do presbítero por obra de um ‘Sinete’ divino, ou seja, por obra de uma graça especial de Deus derramada na pessoa; um caráter, que habilita o sacerdote a agir in persona Christi e por isso o qualifica em relação a Ele como instrumento vivo da sua ação. [15]
O sacerdote não é funcionário do altar, ele é um outro Cristo para os irmãos. Por isso dizia-nos São Vicente: “lembre-se padre, de que vivemos em Jesus Cristo pela morte em Jesus Cristo, e que temos de morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo e que nossa vida tem que estar oculta em Jesus Cristo e cheia de Jesus Cristo, e que para morrer como Jesus Cristo, tem que se viver como Jesus Cristo.”[16] É preciso viver como o mestre, pois quem vive nele deve proceder como ele: “ aquele que diz que permanece nele deve também andar como ele andou” (1 Jo 2,6).
Desta forma, temos claro que somos constituídos para o serviço de Cristo na Igreja, principalmente no meio dos pobres. A vida do presbítero, e particularmente de nós vicentinos deve estar mergulha, de tal forma, em Cristo que todos que se achegarem a nós sinta a presença dele e assim por nosso modo de viver seja revelado Jesus a todos os irmãos: “oh! Salvador de nossas almas, que nos chamaste ao seguimento de tuas máximas e à imitação de tua vida humilde e desprezada! Coloca em nós as disposições necessárias para sofrer, da maneira que desejas, as perseguições que julgares bem nos enviar.”[17]
Pe. Fantico Nonato Silva Borges, CM.
(Diretor do Seminário Interno Interprovincial)

Petrópolis, 24 de junho de 2008, festa da natividade de São João Batista.



[1] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG), n. 10
[2]Cf. Conclusões da V Conferência de Aparecida (DA), n. 199.
[3] Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG), n. 25.
[4] Cf. KLOPPERNBURG, Frei Boaventura, O Ser do Padre, Petrópolis, Vozes, 1972, 79. Ver também Optatm Totius, (OT) n. 2.
[5] Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores Dabo Vobis, de João Paulo II, São Paulo, Paulinas, 1997, n. 21.
[6] Cf. Coste, Pierre, Saint Vincent de Paul, Tome XII, Paris, Librairie Lecoffre Éditeur, 1924, pp. 80-87.
[7] Coste, Pierre, Saint Vincent de Paul, Tome XI, Paris, Librairie Lecoffre Éditeur, 1924, p.33.
[8] Manual de Espiritualidade Vicentina, Coleção Vicentina, vol. 12, 1ª edição, Gráfica Vicentina Editora, 1998, p.69.
[9]Cf. RAHNER, Karl, Novo Sacerdócio, São Paulo, Herder, 1968, pp. 69-70.
[10] Cf. Coste, Pierre, Saint Vincent de Paul, Tome I, Paris, Librairie Lecoffre Éditeur, 1924, conferência de 01/05/1635.
[11] Lc 4, 20-21.
[12] Cf. Coste, Pierre, Saint Vincent de Paul, Tome XI, Paris, Librairie Lecoffre Éditeur, 1924, pp.33-37.
[13]Cf. RAHNER, Karl, Novo Sacerdócio, São Paulo, Herder, 1968, p.73.
[14] Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores Dabo Vobis, de João Paulo II, São Paulo, Paulinas, 1997, n. 23.

[15] Papa João Paulo II, por ocasião da ordenação de sacerdotes no Rio de Janeiro em 1980. IN documentos: Homilia e Pronunciamentos do Papa ao povo brasileiro. Escopo, Brasília, 1980, p64.
[16] Coste, Pierre, Saint Vincent de Paul, Tome I, Paris, Librairie Lecoffre Éditeur, 1924, p. 295
[17] Coste, Pierre, Saint Vincent de Paul, Tome XII, Paris, Librairie Lecoffre Éditeur, 1924, pp. 284-285.

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