sábado, 17 de outubro de 2009

Homilia do XXIII tempo comum

O Evangelho deste Domingo apresenta-nos um homem surdo e com dificuldade de falar que é colocado diante de Jesus para que ele o cure. Quem é este doente? Podemos dizer que é a humanidade, enquanto fechada para o dom de Deus que Jesus nos traz. Surda, porque incapaz de ouvir a Palavra, ouvi-la compreendendo-a, acolhendo-a no coração: “tem ouvido para ouvir, mas não ouve” (Jr 5,21; cf. Mt 13,14-15).
Esta é a tendência do coração humano, que a Escritura sempre denunciou: o fechamento para não acolher a proposta que Deus nos faz, de um caminho com ele, a tendência de nos fechar em nós e viver a vida como se fosse nossa de modo absoluto: “Escutai, prestai ouvidos, não sejais orgulhosos, porque o Senhor falou!” (Jr 13,15); “Ah! Se meu povo me escutasse, se Israel andasse em meus caminhos... Mas meu povo não ouviu a minha voz, Israel não quis saber de obedecer-me; então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos!” (Sl 81/80,14.13). Assim, no fundo, é o fechamento para Deus, para um Deus verdadeiro, a resistência em realmente levar a sério o primeiro mandamento: “Ouve, ó Israel!” (Dt 6,4).
Nossa civilização ocidental tem sido particularmente fechada à Palavra do Senhor: construímos a sociedade e construímos nossa vida privada, nossos valores morais, nossas escolhas, do nosso modo, sem realmente ouvir a proposta e o caminho que o Senhor nos indica. Reunimos e escutamos os especialistas: economistas, antropólogos, sociólogos, sexólogos, psicólogos, médicos, químicos, biólogos... mas, para muitos de nós, o Senhor não tem mais nada a dizer! Os gurus são os economistas e psicólogos, os cientistas é o Paulo Coelho, Augusto Cury, Marilena Chauí entre outros, são os livros de auto-ajuda... Somos uma geração de surdos de Deus! Neste momento é salutar o que diz O texto patrístico do Pastor de Hermas: “antes de tudo, crê que existe um só Deus, que criou e organizou o universo, fazendo passar todas as coisas do não-ser para o ser, que contem tudo e ele próprio não é contido por nada. Crê nele e teme-o, e temendo-o sê continente. Observa isso e afasta-te do mal, da injustiça, da desigualdade, do desamor, para que sejas revestido de toda virtude de justiça e amor; e só viverás para Deus, se observares esses preceitos”.
Dessa nossa surdez advém outro problema: pois se somos surdos, também não podemos falar com clareza: nossas idéias são embotadas, nossos debates, nossas palavras, não chegam ao essencial da vida, do sentido da existência, não podemos proclamar de verdade a alegria da salvação, da plenitude de quem sabe de onde vem e para onde vai. A comunicação se torna oca, alienada e alienante. Basta observar o que os meios de comunicação veiculam! Por isso, Jesus cura primeiro a surdez e, depois, a gagueira do homem. Quando ele puder ouvir o Senhor, tornando-se discípulo pela fé, também poderá falar, proclamar a ação de Deus em Jesus: do Deus que salva e nos mostra o sentido da vida, abrindo-nos a esperança eterna! Neste momento é encantador ao coração o testemunho de quem escutou a Palavra e a guardou no seu coração: no alto do suplicio São Policarpo dizia: Senhor Deus todo poderoso, Pai do vosso amado e bendito Filho Jesus Cristo, por quem vos conhecemos..., eu vos bendigo porque neste dia e nesta hora, incluído no número dos mártires, me julgastes digno de tomar parte no cálice de vosso Cristo e ressuscitar com ele.
É importante notar alguns detalhes da narração de Marcos: o primeiro é que (1) Trouxeram o homem surdo-gago para que Jesus o curasse. “Jesus afastou-se com o homem para fora da multidão” – bem ao contrário dos curadores pentecostais de televisão, que exploram seus “milagres” e “curas” como shows, Jesus procura evitar todo sensacionalismo e triunfalismo: ele quer encontrar-se realmente com aquele homem, pessoa a pessoa, quer que aquele homem o descubra como sua salvação; (2) “Em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele.” Para os antigos, a saliva era o Espírito em estado líquido (a idéia é estranha, mas é preciso que nos transportemos para o modo de pensar semítico)! (3) “Olhando para o céu, suspirou e disse: ‘Ephatà’”. Assim, Jesus indica que a salvação que ele traz procede do Pai, que o enviou. Mais ainda: ao suspirar, ao gemer, ele exprime sua compaixão, sua dor pela situação humana; (4) “Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade”. Somente Jesus, com o poder do seu Espírito, pode curar o homem de seu fechamento para escutar e para proclamar. Sim, porque também nossa geração cristã é, muitíssimas vezes, covarde para proclamar, para professar sem medo e respeito humano nossa fé. O cristão ou é testemunha ou não é cristão: “Não podemos, nós, deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos. Nós somos testemunhas destas coisas, nós e o Espírito Santo” (At 4,20; 5,32).
Este caminho do surdo-gago é urgente para o cristão: reaprender a escutar de verdade Jesus (= crer nele de verdade) e falar dele ao mundo no testemunho corajoso, pois, somente assim, a humanidade atual encontrará a paz que tanto almeja. Somente em Cristo aquilo que a primeira leitura vislumbra e anuncia de modo tão belo, pode realizar-se: “Dizei às pessoas deprimidas: ‘Criai ânimo, não tenhais medo! Vede! É o nosso Deus que vem; é ele que vem para salvar!’ Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos, assim como brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo. A terá árida se transformará em lago, e a região sedenta, em fontes d’água” – Que imagens impressionantes, belas, evocativas! Quando Deus vem, quando ele está presente, tudo é vida, tudo é plenitude, tudo canta de alegria!
Para acolher na alegria e simplicidade esse Reino, é necessário reconhecer-se necessitado, como o surdo-gago, que procurou Jesus, para que lhe impusesse as mãos: somente quem é pobre diante de Deus, quem se reconhece pequeno diante do Altíssimo, pode abrir-se para a salvação e recebê-la do Senhor! Daí o lembrete de São Tiago: “Não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam?” São palavras que nos incomodam e até escandalizam: Deus prefere os pobres... porque os pobres são abertos para Deus. Eles conseguem experimentar dolorosamente na carne aquilo que nós tentamos esquecer ou temos dificuldades para compreender: que somos todos pobres, necessitados, pequenos diante de Deus! Com nossas posses e nossas seguranças, apoiamo-nos em nós mesmos, tornando-nos surdos e mudos para o Senhor! O pobre aqui é em sentido teológico e não apenas econômico é o pobrezinho de Javé. O salmo da Missa de hoje canta exatamente esta experiência: Deus salva o pobre, o pequeno, o desvalido!

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