sábado, 24 de outubro de 2009

São Vicente de Paulo e o amor que se faz prática.


Na era da comunicação e da novidade, onde tudo é descartável e o passado visto com desconfiança, São Vicente contrasta, pois a mensagem deste tão importante santo da caridade tem sempre algo a nos comunicar. Mas por que a Vida de São Vicente, que viveu a quase 350 anos atrás, tem ainda hoje algo de relevante? Qual o segredo dessa jovialidade e atualidade das palavras de Vicente? Respondendo simploriamente podemos afirmar que isso é fruto da unidade existencial entre ser e presença, entre vida e pensamento, entre ação e reflexão.
As grandíssimas figuras da humanidade não são lembradas apenas pela que disseram, nem como disseram, mas sobremaneira pela unidade entre o falar e fazer, ou melhor, entre o fazer e o falar. A virtude primeira de um santo não é tanto o que ele diz, e sim o que ele faz de sua vida. A inapetência existente hoje entre discurso e prática, entre vida pública e ação privada criam uma lacuna entre o ideal da santidade autêntica e santidade “jurídica” ou “canônica.” Para ser santo divinamente falando não basta passar pelos tramites legais da Santa Sé. É mister avaliar com seriedade os critérios evangélicos do testemunho e autenticidade de vida: “Se alguém disser : ‘amo a Deus’, mas, entretanto odeia o seu irmão, é um mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus a quem não vê. E este é o mandamento que dele recebemos: aquele que ama a Deus ame também o seu irmão” (cf. 1Jo 4,20).
É impressionante o texto de primeira João, quando nos convida a viver antes de dizer. Afirmar é fácil, realizar o que se diz é mais complicado. Por isso São Vicente dizia: “não me basta amar a Deus se aos pobres não os amo”. Não me basta ir a Igreja e deixar o pobre, o doente, a viúva ou o órfão sem assistência. Isso é uma ofensa a Deus, pois assim diz o Senhor: “Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto do sangue dos bois, carneiros e cabritos. Quando vocês vêm à minha presença e pisam meus átrios, quem exige algo das mãos de vocês? Parem de trazer essas oferendas inúteis. O incenso é coisa nojenta para mim... não suporto injustiça junto com solenidade.” [1]
Deus não quer sacrifícios, ele deseja ser amado e respeitado no mundo e através das pessoas criadas à sua imagem. Prova de amor a Deus é amor seu irmão. Neste sentido o exemplo de Vicente de Paulo é atualíssimo, pois ele foi um fiel amante do Senhor amando seus irmãos e senhores, a saber, os pobres. São Vicente amava Deus nos pobres, e amando os pobres sentia que amava a Deus mesmo: “Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram.”[2]
Deus é amor[3] e é próprio do amor a dinamicidade da práxis no amor. São Vicente em seus escritos estava sempre consciente deste dado: só com amor se move a vida, e em nome desse amor o cristão tem que colocar todas as suas energias para bem vivê-lo. Amor para São Vicente não é sentimentalismo ou piedade descomprometida. Amor é atitude, é realizar coisas, transformar realidade. Dizia Vicente: “Amemos a Deus, meus irmãos, amemos a Deus, mas que seja à custa de nossos braços, que seja com o suor de nossos rostos. Pois muitas vezes os atos de amor a Deus, de complacência, de benevolência, e outros semelhantes afetos e práticas interiores do coração amante, ainda que muito bons e desejáveis, resultam, entretanto, muito suspeitos, quando não se chega à prática do amor efetivo. (...) Mostram-se satisfeitos por sua imaginação fértil, contentes com os doces colóquios que têm com Deus na oração; falam quase como anjos; mas logo quando se trata de trabalhar por Deus, de sofrer, de se mortificar, de instruir os pobres, de ir buscar a ovelha perdida, (...), aí tudo vem abaixo e falham seus ânimos.”[4]
É imprescindível salientar que a atualidade de São Vicente estar ligado ao seu modo sereno e coerente de unir palavra e prática; sua teologia é uma práxis. Pois o amor não é aquilo que se sente pelo outro sem fazer nada por ele; amar é cuidar, proteger e amparar. É por isso que o amor não é apenas afetivo, mas também efetivo. Amor que se configura apenas em afeição não pode ser um amor cristão. Um vicentino não pode amar apenas afetivamente é necessário lançar-se no vôo vicentino do amor efetivo que transforma as estruturas e abre caminhos de vida e esperança. Para Vicente de Paulo “(...) o amor se divide em afetivo e efetivo. O amor afetivo é certa efusão do amante no amado, ou bem uma complacência e carinho que se tem pela coisa que se ama, como o pai a seu filho, etc. E o amor efetivo consiste em fazer as coisas que a pessoa amada manda ou deseja (...).” [5] Em outras palavra o nécta, a essência e o âmago do amor é a práxis, isto é, o amor afetivo posto em ação.
São Vivente define: “O amor cristão é um amor pelo qual se amam uns aos outros por Deus, em Deus e segundo Deus; é um amor que faz nos amarmos mutuamente pelo mesmo fim por que Deus ama os homens, para fazê-los santos neste mundo e bem-aventurados no outro (...).” [6] Se o amor está na raiz da vida cristã e também vicentina, então a busca pelos novos areópagos passa necessariamente pela trilha do amor.
Penso que para encontrar os novos espaços de reflexão e assistência aos pobres ou para encontrar o lugar teológico dos pobres é imprescindível que, antes de qualquer coisa voltemo-nos nosso olhar ao amor evangélico, tão caro a São Vicente. Os novos areópagos somente serão internalizados por meio de um retorno autêntico às fontes dos Evangelhos e Escrito de São Vicente. Com muita clareza acreditamos que os novos areópagos escondem-se no amor gratuito e livre. Porque somente alguém sem interesses próprios pode penetrar no centro do amor e unir: fé e vida, pensamento e ação, teoria e vivência, existencial e eterno, divino e humano; Deus e homem.


Pe. Fantico Nonato Silva Borges, CM

[1] Isaías 1, 11-13
[2] Mateus 25, 40
[3] 1Jo 1, 4; Bonto XVI, Deus caritas est, Paulinas 2007, n. 01-03
[4] Coste, Pierre, Escritos de São Vicente de Paulo, XI, 733.
[5] Coste, Pierre, Escritos de São Vicente de Paulo, XI, 736.
[6] Idem, XI, 769

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C) Um homem vem a Jesus pedindo que diga ao irmão que reparta consigo a herança. Depois ...