sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

ESSENCIAL E EXIXTENCIAL EM PAUL TILLICH

I. Essencial e Existencial no pensamento de Paul Tillich: uma “teo-filosofia”.

A teologia de Paul Tillich é uma tentativa de aproximação da teologia com todas as dimensões da vida. Segundo ele a teologia deve manter uma articulação com todas as possibilidades de efetivação do espírito humano. Por causa disso o pensamento de Tilich está marcado por duas influências filosóficas fundamentais: o essencialismo e o existencialismo. O essencialismo é uma forma de entender o mundo a partir de um fundamento, um dado a priori que orienta tudo o que existe, existiu e existirá, uma metafísica que impõe uma presença que se manifesta mesmo em sua ausência. [1] O essencialismo assume uma essência universal que estrutura todas as coisas, precede e define a existência. O filósofo Aristóteles chamava essa essência de aquilo que move sem se mover (o motor imóvel da metafísica aristotélica) e a tradição judaico-cristã apropriou-se desse conceito filosófico para nomear um ser transcendental, ou seja, Deus.
O essencialismo, ou metafísica, também é conhecido como ontologia ou onto-teologia. A ontoteologia é a forma como a filosofia e a teologia estruturou o pensamento em geral no Ocidente cristão, e determinaram o comportamento, as formas de racionalidade, pensamento e entendimento; dando conteúdos e limites à noções amplas como lei, democracia, justiça, ética, perdão, sexualidade, etc.[2] Assim, assumir Deus como essência é colocá-lo num lugar que está fora de qualquer dúvida ou questão, anterior a tudo, o qual determina todas as coisas da vida. Tillich chamará essa realidade de “dimensão incondicionada”. [3] Aplicada para exprimir a relação do finito com o infinito ela se revela como fundamento de todas as dimensões da vida e o horizonte para o qual elas se transcendem. [4] A essência – nesse caso Deus – existe por si só e produz, age ou reage por seus próprios desejos. No dizer filosófico, é uma realidade autônoma, isto é, independente e auto-referencializada.
Já o existencialismo, que nasce com Kierkegaard, vai assumir cores mais contundentes, com a obra do pensador francês Jean Paul Sartre[5], que advogava a existência como aquilo que precedia a essência. Como ele não acreditava em um ser superior, ele afirmava que a existência precedia a essência e a definia. Para ele, a existência não tem uma origem conhecida e muito menos se estrutura na essência cristã. Aqui entra Tillich com a definição de Novo Ser, que encontra em Cristo sua efetivação plena. Usando a intuição de Sartre a teologia tillichiana demonstrará que a existência é marcada pelo poder de ser e o sentido de ser, e que sem isso a existência não tem sentido de existir.[6]
Paul Tillich terá sempre presente em sua teologia a unidade entre esses dois conceitos descritos acima. Por isso, Tillich rejeita o esforço de localizar o aspecto religioso somente em um ou outro aspecto da vida – seja o estético, o político, o experimental –, mas quer ver o sentido religioso se expressando em todas as partes da estrutura humana. Para chegar a esse ponto, ele usa a metáfora da profundidade em contraste da superficialidade. Para ele a religião está localizada na profundidade da vida humana e manifesta o que lhe é mais visceral, infinito, fundamental, incondicional; ou que ele também chama de preocupação última do ser. [7] A religião será sempre aquilo que tece e estrutura a cultura, e, as formas e manifestações concretas dessa cultura serão expressões deste incondicionado. Por isso ele afirma: Religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da religião. [8]

II. A essencialidade e a existencialidade presente no conceito tillichiano de Igreja como lugar da efetivação da Comunidade Espiritual.

É importante destacar que o esquema elaborado por Tillich para apresentar a problemática da Igreja como lugar de efetivação da Comunidade Espiritual estará envolvido dentro do paradigma essência-existência. Segundo a teologia de Tillich, subsiste uma correlação entre o essencial e o existencial, de forma que sagrado e profano, finitude e infinitude estão presente nas funções das igrejas. Aqui sobressai um aspecto peculiar à teologia de Tillich que é aproximação entre sagrado e profano, mundano e divino. Isto é uma novidade na teologia protestante que historicamente dessacralisou “as instituições” em nome da teoria da autoridade do teólogo em detrimento da autoridade do Magistério na Igreja católica. [9]
Tillich distingue na função das igrejas três grupos de funções que manifestam a Presença Espiritual. São elas as funções de constituição, de expansão e de construção. Todavia, essas funções carregam polaridades que, por sua vez, geram ambigüidade no momento de efetiva a Comunidade Espiritual. Essas polaridades são relacionadas com cada função. Assim nas funções de constituição aparecem as polaridades de tradição e reforma; nas funções de expansão apresentam-se as polaridades de veracidade e adaptação; por fim das funções de construção brotam as polaridades afirmação das formas e transcendência das formas. [10]
Para Tillich a tarefa da teologia sistemática é analisar essas polaridades que se apresentam nas funções das igrejas, gerando ambigüidade. Essas polaridades produzem ambigüidade porque carregam o perigo de anular uma a outro. Pois segundo Tillich a tradição isolada, sem uma abertura à reforma, pode tornar-se absolutismo fechado em fórmulas que já não conduz à experiência do Novo Ser. Mas também uma reforma que não tenha o suporte da tradição cairá inevitavelmente numa crítica vazia.
Neste aspecto das polaridades tradição e reforma, Tillich é muito lúcido, pois afirma: “O princípio da tradição nas igrejas não é um mero reconhecimento do fato sociológico de que as formas culturais de cada nova geração surgem a partir daquelas que foram produzidas pelas gerações precedentes. Isto sem dúvida, vale para as igrejas. Mas, além disso, o princípio da tradição na igreja se origina do fato de que a natureza das igrejas e o caráter de sua vida são determinados por sua função no Novo Ser tal qual apareceu em Jesus como o Cristo e de que a tradição é o elo entre este fundamento e cada geração.”[11] Neste sentido Tillich comunga com a teologia católica que coloca na tradição um dos aspectos que fundamenta a diversidade na unidade.
A tradição sempre foi para os católicos um sinal marcante da fidelidade a mensagem salvífica. Podemos constatar isso desde os primeiros teólogos da Igreja, por exemplo, Santo Ireneu na Adversus haereses já utilizava o argumento da tradição quando apresentava a doutrina cristã corroborada pelo testemunho dos apóstolos. [12] No sentido que queremos falar aqui Tradição é autêntica “transmition” divina. Porém é bom não esquecer que para Tillich a tradição não é algo particular, e sim expressa a unidade da humanidade histórica, cujo centro é o aparecimento de Cristo. Sua conclusão é que não existe igreja sem tradição. [13]
Para garantir que a tradição não se transforme em hybris demoníaca, nem a reforma em ceticismo destruidor a saída, segundo Tillich, é aceitar que não há dicotomia entre tradição e reforma. A tradição e a reforma estão unidas à Comunidade Espiritual. A reforma consiste aqui na luta do Espírito contra a ambigüidade da religião. Assim na Tradição deverá está presente o desejo implícito de reformar para superar a ambigüidade.
Já a polaridade da veracidade e adaptação inerentes à função de expansão traz consigo a questão: como superar a ambigüidade dos meios em detrimento das funções? Toda geração precisa efetiva-se na Comunidade Espiritual (conhecer Jesus). Para tanto, a verdade da mensagem cristã necessita ser pregada e anunciada. Mas como todo ser humano está imerso em culturas, essa mensagem de verdade precisa também adaptar-se para comunicar em cada cultura a verdade da fé. Eis aqui o problema das polaridades: como adaptar sem relativizar? Segundo Tillich o anúncio da veracidade sem adaptação é absolutismo demoníaco que impõe a verdade da mensagem acima de tudo. [14] Essa luta para superar a ambigüidade das funções de expansão é constante e foi motivo dos grandes conflitos no primeiro milênio da história da Igreja. A saída para Tillich é colocar o peso da veracidade na fidelidade a Cristo e na sua dependência dele. [15] Em outras palavras ele propõe preservar o conteúdo e relativizar as formas como meios de apresentar a mensagem.
Desta relação conteúdo e forma apresentam-se as funções de construção que trazem consigo as polaridades de afirmação das formas e a transcendência das formas. Essa função é necessária porque as igrejas têm que comunicar através de formas teóricas a Presença Espiritual da Comunidade Espiritual. A ambigüidade aparece porque a afirmação das formas deve levar a autotranscendência destas formas. O objetivo da afirmação das formas não subsiste em si, mas para além dela. Deste modo, para Tillich, um dogma, uma afirmação de forma não é em si, mas para a transcendência da forma a fim de atingir o Novo Ser.[16]
A forma, para Tillich, constitui apenas meio para elevar as gerações à experiência de Cristo. O dogma, as formulações são caminhos, vias, estradas que conduzem o fiel a realidade da mensagem cristã. Neste sentido o artigo conjunto de Karl Rahner e Karl Lehmann, escrito no Compêndio Teológico Mysterium Salutis, é muito esclarecedor, pois lá se apresenta o dogma como algo dinâmico e não estático. O dogma na compreensão dos dois teólogos católicos é a forma em estilo de via média em que a Igreja encontrou para apresentar naquele momento histórico a Presença Espiritual, efetivando a Comunidade Espiritual. [17]
Para Tillich quando uma forma é rígida demais para ser transcendida ela se torna sem sentido, mesmo sem está errada. É importante destacar que essas funções das igrejas não agem isoladamente, mas estão implicadas umas nas outras.

III. O essencial e o temporal na vida da Igreja.


Para Tillich a função é anterior à instituição. E por isso as instituições dependem das funções a que servem; e as funções podem existir mesmo onde nenhuma instituição as sirva. Isto acontece porque na teologia tillichiana as funções das igrejas apresentam-se claramente independentes das instituições. Ora, bem sabemos que no protestantismo o peso da autoridade não está na instituição (Magistério, sacerdócio, etc.), como no caso católico, mas no teólogo que interpreta fielmente a Sagrada Escritura. Neste sentido a teologia de Tillich enfraquece as instituições, pondo muita força na Comunidade Espiritual, mas essa acaba ficando sem uma unidade visível. Pois ele afirma: “Nenhuma instituição – nem mesmo o sacerdócio, o ministério, sacramentos (setenário) especiais ou determinadas formas de culto – derivam necessariamente da natureza da igreja, mas as funções por causa das quais as instituições passaram a existir, estas sim, seguem necessariamente dela.”[18]
Como Tillich une as funções das igrejas à sua natureza fundamental e estas dependentes de Cristo; a primeira função da Igreja é a de receber. Ela recebe de Cristo tudo que é e a função de receber inclui simultaneamente a mediação da Presença Espiritual. Com relação à mediação é importante não esquecer que para Tillich os meios são instituições que tornam explícita as funções das igrejas. [19] Agora é bom não esquecer que Igreja para Tillich é a comunidade Espiritual ou a Comunidade de fé. Penso que essa noção de igreja é muito subjetiva e pode criar problemas na hora de exigir a visibilidade desta comunidade de fé. Pois podemos perguntar a onde acontece concretamente essa Comunidade Espiritual?
O próprio Tillich parece não ter respostas clara a pergunta, pois a ambigüidade desta função constitutiva da Igreja acontece no momento em que a Presença Espiritual é efetivada na prática das instituições. Pois ao mesmo tempo em que a comunidade é meio de efetivar Cristo ela é também dependente dele para efetivar-se. Para Tillich a superação da ambigüidade dar-se-ia pela relação de intimidade da Igreja com o Novo Ser, com o Espírito divino. [20] É nesta perspectiva que nasce uma outra função constitutiva da Igreja: o culto. O culto surge como resposta humana a Deus. Neste sentido o culto é elevação responsiva da Igreja ao seu fundamento último.
O culto inclui adoração, oração e contemplação. A adoração é o louvor e a ação de graças, que consiste em reconhecer a santidade divina e a nossa infinita distância dele. Já a oração produz um crescimento no encontro do Novo Ser. Para Tillich essa novidade criada pela oração de suplica é o ato Espiritual de elevar o conteúdo de nossos desejos e esperanças até a Presença Espiritual. É neste sentido que o místico não é uma pessoa nas nuvens e sim alguém enraizado no chão da vida e aberto ao futuro.[21] Por fim a contemplação significa a participação naquilo que transcende o esquema sujeito-objeto, com a suas palavras objetivantes e, portanto, transcendente também à ambigüidade da linguagem. A contemplação é, por assim dizer, o momento do encontro com a Presença Espiritual. Por isso tillich valorizará muito a dimensão extática da fé.
A contemplação é fundamental para Tillich, pois é neste estágio que o fiel sente-se possuído pela graça. Segundo ele, a contemplação contradiz o método do misticismo medieval no qual a contemplação era atingível gradativamente. Tillich critica os católicos naquilo que chama de fragmentação da graça em seus vários níveis – graça incriada, graça criada, graça santificante, graça eficiente – como ficou formulada em Trento.[22] Todavia Tillich parece não ter considerado que para os católicos o fiel é inserido num processo catecumenal que inicia com o batismo e não se conclui nele. A graça para os católicos é recebida integralmente, mas a consciência de ser possuído por ela acontece no processo de iniciação cristã.

Com relação as funções de expansão das igrejas Tillich destaca que pelo seu caráter expansivo as igrejas trazem uma característica universal. Disto denota que a primeira função de expansão é a missão. Toda a igreja é missionária por vocação e natureza. A missão não é uma dimensão da pastoral, ela é função essencial da camunidade. E todos os membros são vocacionados à missão. Nisto Tillich é muito próximo aos católicos que também vêem na missão uma parte constitutiva da natureza da Igreja. Na Encíclica Redemptoris Missio o Papa João Paulo II alude à importância da missão na vida da Igreja. Ele faz uma análise a partir da missão de Cristo, buscando elucidar a índole missionária da Igreja. Também o Decreto conciliar Ad Gentes e a Carta Apostólica Evangelii Nuntiandi de Paulo VI elaboram a mesma temática. À lista pode-se acrescentar a V Conferência de Aparecida, que abordou transversalmente a temática do discipulado missionário.
A finalidade da missão, para Tillich, como função institucionalizada das igrejas não é salvar indivíduos da condenação eterna, nem trocar experiência cultural e religiosa, mas efetivar a Comunidade Espiritual dentro de igrejas. Aqui, para ele, se encontra um dos maiores desafios da ambigüidade da religião, pois é difícil para qualquer igreja separar a mensagem cristã da cultura em que ela é pregada. Por que não existe mensagem cristã abstrata; toda mensagem é enraizada numa realidade cultural. A antropologia, a sociologia, a filosofia, neste sentido, são grandes parceiras da teologia.[23]
Da missão emerge outras duas funções unidas a expansão das igrejas que são: a educação religiosa e a pregação evangélica. A função educacional baseia-se no desejo das igrejas continuarem sua vida de geração em geração. Sua tarefa consiste em introduzir cada geração na realidade da Comunidade Espiritual, em sua fé e em seu amor. Isso ocorre mediante a participação em diferentes graus de maturidade e mediante a interpretação em diferentes graus de compreensão. Depois a pregação evangelização que é dirigida aos membros que estão fora da Igreja ou alheio ou ainda indiferentes a ela. É uma missão aos não-cristãos dentro de uma cultura cristã. Isso é realizado mediante a apologética prática e a pregação evangélica. Para Tillich ambigüidade encontra-se na confusão entre o impacto subjetivo da pregação evangélica e o impacto Espiritual que transcende o contraste de subjetividade e objetividade.

IV. Bibliografia:

COLLANTES, Justo, A Fé Católica, Documentos do Magistério da Igreja: das origeen aos nossos dias, Rio de Janeiro, Lúmen Christi, 2003
DECLARAÇÃO Conjunta entre Católicos e Luteranos sobre a Doutrina da Justificação de 1999.
HENN, William, ONE FAITH – Biblical and Patristic Contributions Toward Understanding Unity in Faith, Paulist Press, New York, 2000.[1]
IRENEU de Lião, Contra as Heresias Denúncia e Refutação da falsa gnose, Paulus, São Paulo, 1995.
LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário Critico de Teologia, Paulinas/Loyola, São Paulo, 2004,
RAHNER Karl & LEHMANN, Karl, Compêndio de Dogmática Histórico-Salvífico. Mysterium Salutis, Vozes, Petrópolis-RJ, 1971.
SARTRE Jean Paul, O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica, 8ª edição, Vozes, Petrópolis-RJ, 2000.
SCHEEBEN, Mathias Joseph, A Santíssima Trindade: Mistério que não se demonstrar, São Paulo, Paulus, 1999.
TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005.
WRATHA, Mark A., Religion After Metaphysics, Cambridge, Cambridge University Press, 2003.
[1] Essa idéia está muito presente na Crítica da Razão Pura de E. Kant, onde o a priori é aquilo que fundamenta a racionalidade do conhecimento.
[2] Foi o filósofo alemão Heidegger que desenvolveu o termo filosófico chamado onto-teologia. Toda metafísica (algo que existe além do que é empírico, testável) vai tomar a forma de onto-teologia. No dizer de Mark A. Wrathal, "toda metafísica tenta entender o ser de todas as coisas que existem através da determinação simultânea da sua essência em seu traçado universal (o ‘onto’ da teologia), e a determinação do fundamento da totalidade de todos os seres em alguma entidade divina superior (o 'teos' da onto-teologia)." Cf. WRATHA, Mark A., Religion After Metaphysics, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 2.
[3] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, pp. 568-569.
[4] Para tillich esse essencial a priori de Kant é a dimensão fundamental que corrobora e transpassa todas as dimensões da vida. Ele a utiliza na linguagem teológica como caminho metafísico para poder indicar a correlação entre existência e essência, potencia e efetivação. Ao usar o emprego da metáfora “dimensão eterna” ele a transforma em símbolo, isto é, significante que transcende o próprio significado, apontando para o ser infinito como realidade última. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, pp. 568-570.
[5] SARTRE Jean Paul, O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica, 8ª edição, Vozes, Petrópolis-RJ, 2000. III- IV partes.
[6] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 567
[7] As verdades da fé vêm responder às perguntas existenciais que caracterizam a condição humana. Neste sentido Deus é para Tillich a resposta às questões finitas da vida. Deus aparece como a profundidade mesma do ser, onde Jesus é o Novo Ser, que aponta à resposta no amor agápico. Cf. LACOSTE, Jean-Yves, Dicionário Critico de Teologia, Paulinas/Loyola, São Paulo, 2004, pp. 1723-1724.
[8] Para Tillich a religião fundamenta a cultura por que a religião faz parte da dimensão estrutural do ser espiritual, mas essa religião não existe enquanto efetivação ausente de uma cultura. Aqui começa o princípio da ambigüidade da religião, que mesmo falando do incondicionado está sempre sujeito as condições condicionadas do ser espiritual. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, pp. 690-691.
[9] Com relação a essa questão é muito esclarecedor o artigo do teólogo reformado Jean-Paul Willaime. Ele apresenta a partir da análise de Marx Weber, os modelos católico e protestante da organização religiosa e gerenciamento da verdade cristã. WILLAIME, Jean-Paul, La Précarité Protestante: Sociologie du protestantisme contemporain ,col.histoire et Société n. 25, Labor et Fides, 2000, pp.15-22.
[10] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 633.
[11] TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 633.
[12] Ireneu de Lião, Contra as Heresias Denúncia e Refutação da falsa gnose, Paulus, São Paulo, 1995.
[13] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 633
[14] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 635.
[15] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 638-639.
[16] Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 636-637.
[17] Cf. RAHNER Karl & LEHMANN, Karl, Compêndio de Dogmática Histórico-Salvífico. Mysterium Salutis, Vozes, Petrópolis-RJ, 1971, pp. 119-135.
[18] TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, p. 638.
[19]. É bom ver na sistemática de Tillich como ele apresenta os meios da Presença Espiritual e como a manifestação do Espírito pode expressar-se em diferentes meios. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, pp. 575-582.
[20] A conclusão a que chegamos com essa argumentação de Tillich é que quanto mais a Igreja se afasta de Cristo e se afirma nas instituições, menos ela consegue levar os membros a experiência extática da Presença Espiritual.
[21] Com relação a oração é importante observar as reflexões de Tillich, no II capítulo da IV parte da Teologia Sistemática, quando elabora sua idéias sobre a experiência estática. Cf. TILLICH, P. Teologia Sistemática, 5a edição, Sinodal, São Leopoldo – RS, 2005, pp. 566-575.
[22] É no Concílio de Trento, como resposta à Reforma, que a Igreja definirá sua doutrina de modo mais dogmático e definitivo. Mas a convicção da graça como um processo dinâmico na vida do fiel que não anula a natureza era bem mais antigo. Outrossim, é o fato de que sempre esteve na consciência da Igreja Católica que a graça é distribuída aos fiéis por meio dos sacramentos e sacramentais, e que a graça nos vem primeiramente por um processo catecumenal que inicia com o batismo e estende-se aos outros sacramentos. Desde o concílio de Cartago (séc. V), passando pelo concílio de Orange (séc. VI) e o concílio de Quiertzy (séc. IX) e por fim em Trento (séc. XVI) na VI sessão, o tema da graça sempre foi tema central na Igreja Católica.. Cf. DENZINGER nº. 1520-1639; COLLANTES, Justo, A Fé Católica, Documentos do Magistério da Igreja: das origeen aos nossos dias, Rio de Janeiro, Lúmen Christi, 2003 pp. 849-916. Com relação ao tema é bom ler também a Declaração Conjunta entre Católicos e Luteranos sobre a Doutrina da Justificação de 1999.
[23] O texto de William Henn é muito ilustrativo à questão do desafio do missionário diante das culturas. Cf. HENN, William, ONE FAITH – Biblical and Patristic Contributions Toward Understanding Unity in Faith, Paulist Press, New York, 2000, pp. 60-85.

A ÍNDOLE ESCATÓLOGICA DE NOSSA VOCAÇÃO NA IGREJA: O JÁ E O AINDA NÃO DA PLENITUDE DA SALVAÇÃO.


A índole escatológica faz parte da natureza e da missão da Igreja, que como sacramento visível da salvação em Cristo aponta à tensão de já possuir a salvação, mas não plenamente efetivada neste mundo. Neste sentido, a índole escatológica da Igreja é a tensão entre o já da fé e a espera da realização plena da ação salvífica em Cristo. Desta índole jaz a certeza que a dimensão escatológica é a meta final e objetivo da Igreja. Por isso, a índole escatológica perpassa todo o mistério eclesial, todos os tratados teológicos e os todos os ministérios na Igreja, pois tudo tende ao Escaton, isto é, a plenitude em Cristo. Como bem lembrou os padres conciliares: Cristo, levantado da terra, atraiu todos a si (cf. Jo 12,32). Ressurgindo dos mortos (cf. Rm 6,9), enviou aos discípulos o Seu vivificante Espírito, e por Ele constituiu seu Corpo, que é a Igreja, como sacramento universal da salvação. [1]
A índole escatológica da Igreja nasce, portanto, da vocação cristã de ser em Cristo comunidade de santos pela graça. Por isso, essa dimensão escatológica é índole permanente, atuante, dinâmica e necessária, porque ela aponta à finalidade da Igreja e sua missão no mundo. Daí, podemos distinguir dois momentos importantes na caminhada escatológica da Igreja, a saber, a vocação cristã de cada fiel e o chamado a efetivação do Reino aqui e agora na vida terrena da Igreja em íntima unidade com a Igreja celeste.
Como afirma a carta aos Hebreus não temos aqui pátria definitiva, mas estamos à procura daquela que há de vir. Nossa vida carrega uma ambiguidade intrínseca, pois estando na carne, sabemos, de ante mão, que nossa pátria não é aqui, porque somos seres espirituais. Todavia, estamos prisioneiros e longe do Senhor, ansiando o dia de estarmos com Ele. Então a tendência da vida escatológica na experiência cristã é viver a dialética entre o já e o ainda não da plenitude do Reino. “Unidos, pois, a Cristo na Igreja e marcados pelo Espírito Santo que é o penhor da nossa herança’ (cf. Ef 1,14), somos na verdade chamados de filhos de Deus e o somos de fato (cf. 1Jo 3,1), mas ainda não aparecemos com Cristo na gloria (cf. Col 3,4), na qual seremos semelhantes a Deus porquanto O veremos como é”[2]
Pela real participação na vida divina a qual somos chamados a viver brota a tensão dialética que caracteriza a nossa existência peregrina: já somos verdadeiramente justificados e santificados; participamos da graça do Senhor, que anima sustenta e inspira cada fiel em cada boa obra, mas ao mesmo tempo carregamos esse tesouro em vasos de barro (cf. 2 Cor 4,7). Em meio a nossa condição ambígua já possuímos em figura a plenamente daquilo que seremos na glória.[3] Estamos unidos a Deus, ele vive em nós, mas o mistério parece ser tão inefável e tremedum como afirma Rudolf Oto, que frequentemente não nos atrai e não nos comove. Isto acontece porque somos carnais e em muitas vezes materializamos nossas relação ao estremo de duvidar de tudo que nossa mess não consegue dominar, e a consequência é que a dimensão escatológica da nossa vocação perde seu papel ou pelo menos fica ofuscada.
Recuperar a discussão levantada pelo Concílio Vaticano II de uma índole escatológica presente na raiz da Igreja faz-nos pensar na contribuição que a escatologia pode oferecer à recuperação do sentido da vida no mundo, da construção do Reino nas realidades presentes, e, sobretudo, da valorização na unidade indissolúvel entre o já e o ainda não da nossa vocação à santidade.

[1] Cf. LG, 48
[2] LG, 48
[3] MOLINARI, Paolo, A Igreja Escatológica: Índole Escatológica da Igreja Peregrina e suas Relações com a Igreja Celeste, IN BARAÚNA, Frei Guilherme, OFM, A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis, 1965, pp. 1136-1137.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Como se relacionam elementos teológicos da Igreja e configurações institucionais?

É inseparável os elementos teológicos e a realidade cultural na qual a Igreja , como comunidade humana na fé cristã está inserida. Para existir uma fé verdadeiramente compreensível e autêntica faz-se necessário não abdicar da intrínseca relação entre essa duas realidades. Deste modo, a fidelidade da Igreja a seu contexto sociocultural é imperativo que decorre de sua própria realidade como sacramento da salvação de Jesus Cristo. Neste sentido, o institucional está a serviço do salvífico que é seu fim. Os elementos teológicos e as configurações institucionais encontram um ponto comum na finalidade da Igreja que é ser sacramento visível da salvação de todos em Cristo. Para que ela atinja esse fim as instituições são alteradas de acordo com o tempo e circunstâncias humanas. Essa diversidade das configurações não aniquila a autenticidade e o conteúdo da mensagem porque os elementos teológicos garantem a identidade da comunidade na diversidade de configurações.
Tudo que foi dito acima acontece porque a fé como resposta à ação de Deus, acolhimento do ser humano a autocomunicação de Deus é sempre uma fé inculturada. Sem a fé os efeitos salvíficos perdem seu objetivo, tornando-se palavra muda. Desta forma, só existe revelação enquanto acolhimento na fé. Mas quem acolhe esta salvação de Deus é sempre um sujeito situado e imerso numa cultura concreta. Daí que toda revelação é já ação inculturada e nenhuma fé existe como “fé pura”, mas sim como vivida e entendida num processo inculturada. Assim se pode afirmar que fé inculturada seria na verdade o processo de acolhimento da revelação vivida concretamente em cada cultura, no seu tempo e lugar. A fides quae (sentido objetivo da fé), na acepção do termo aqui empregado, seria a mediação real onde tal revelação efetiva-se e não a própria ação de Deus. Desta forma pode-se falar de interculturação da fé ao invés de inculturação da fé.
Portanto a relação entre os elementos teológicos da Igreja e a configuração institucionais apresenta-se no acolhimento-resposta que o ser humano faz na fé dentro de uma cultura no encontro com outras culturas. Por isso falamos não de inculturação da fé, mas interculturação da fé, como processo de acolhimento e respeito por todas as culturas.
2. Como acontece uma crise institucional na Igreja?
Enquanto comunidade humana que responde na fé à ação salvífica de Deus, a Igreja está sujeita a leis e estruturas presentes nas culturas humanas. Por isso, pode sofrer, como sofreu, crises institucionais. Do ponto de vista institucional uma crise da comunidade eclesial acontece sempre que experiências, compreensões, avaliações e compromissos comuns dos membros não se encontrarem mais devidamente harmoniosos nas instituições concretas. Neste sentido, a crise dar-se-á pela incapacidade da comunidade eclesial apresentar-se com linguagem fora do tempo e dos espaços dos atores culturais concretos. As representações metais, as estruturas de pensamentos e as categorias sociais, são elementos do seu contexto sociocultural que interagem na atualização e efetivação no interior da dimensão subjetiva da Igreja. Mas não são eles os elementos teológicos da Eclésia. Todavia não se pode esquecê-los e abdicá-los, sem cair no perigo de esvaziar a mensagem. Assim a crise institucional acontece quando elementos teológicos são separados das configurações institucionais. Quando os elementos teológicos não mais se encontram interligados com as configurações institucionais nasce a crise porque se divorcia a mensagem cristã de seu contexto cultural. O cultural é marginalizado e a fé deixa de ser uma resposta à ação de Deus para ser uma adesão alienante.
3. Como entender a catolicidade da Igreja hoje?
A catolicidade é a união das Igrejas. Não é a soma delas, mas sim a mútua recepção e comunhão das Igrejas Locais. A catolicidade é a imagem da Igreja universal que resulta da mútua inclusão, onde a comunhão das Igrejas Locais é a visibilidade da Igreja Universal. Assim não se pode conceber uma Igreja Local sem uma Igreja Universal, nem esta última é realidade sem aquela. Desta forma a catolicidade não é a uniformidade das Igrejas, muito menos a submissão das Igrejas Locais a uma Igreja Local romana, mas uma relação efetiva e efetiva com a Igreja romana, sem no entanto aniquilar-se. Catolicidade é uma relação dinâmica de inclusão que compreende as condições concretas de vida de cada Igreja Local em suas novas e autênticas configurações para prosseguir à sua missão salvífica.
Catolicidade para ser realmente universalidade não pode esquivar-se das comunidades, das culturas, das diferenças contextuais e lingüísticas. Portanto catolicidade, hoje, é uma tarefa de complementaridade, que não pode admitir-se como oposição entre o local e global. A catolicidade não significa Igrejas meramente semelhantes ou uniformes em territórios diferentes, mas sim Igrejas peculiares pelo modo próprio como seus membros acolhem e vivem a Palavra de Deus. Desta forma a diversidade não rompe a unidade, mas a enriquece, pois a universalidade só existe na e a partir da Igreja Local. Catolicidade então será a tarefa dinâmica no seio das Igrejas Locais com a Igreja Universal, em comunhão das diferenças salvaguardada pelo ministério petrino, que antes de ser um super bispo é aquele que promove o diálogo e a interação, garantindo a unidade e cuidando que as diversas configurações possam ser acolhidas pelas demais Igrejas; e intervindo quando a comunhão é ameaçada.

Exortação Evangélica a pobreza

O Novo Testamento é rico em lições, diretas e implícitas, de pobreza para o Reino. A passagem do Evangelho de Mt 2, 1-12 tem para nós, religiosos, um dinamismo especial: é uma proposta clara da experiência, do significado e do valor da pobreza no amor cristão, no abandono da fé. O Pai nos indica a indispensabilidade da pobreza quando, em sua providência, ordena a Anunciação a uma virgem simples e pobre; o nascimento do menino na impotência, na pura nudez, num ambiente estranho, com o mínimo indispensável, sem comodidade. Os acontecimentos da Epifânia pareceriam quase imprudentes e contraditórios aos olhos de quem não tem fé... Reis deixam o seu ambiente seguro para oferecer presentes à “classe inferior” sem garantia de restituição, de interesse, de recompensa. Além disso, a mensagem do anjo a José não é unir-se aos reis para viver eternamente na miragem encantada de proteção e de abundância dos seus castelos, mas continuar em sua pobreza fiel e criativa com força renovada e restaurado vigor.
As narrações do Evangelho sublinham de novo o valor da pobreza. Cristo fala da confiança das aves e dos animais. Ele e seus seguidores vivem frugalmente do que possuem numa caixa comum, e socorrem os pobres. Cristo promete a bem-aventurança aos pobres de espírito e convida o jovem a vender tudo... Cristo nos lembra que quem ama seu pai, sua mãe ou a própria família mais do que a ele, não é digno do seu Reino. Finalmente, o último abandono de Cristo na cruz nos fala da essência da pobreza.
No convite à pobreza por parte da Escritura vemos que Deus propõe um modo de vida novo para curar a velha concupiscência. Ele nos diz que, para segui-lo, devemos deixar tudo, viver uma vida contemplativa na ação, desenvolvendo a imagem de Cristo em nós mesmos por meio da aceitação humilde da nossa necessidade de sermos salvos, por causa da nossa finitude: a nossa consciência e das nossas capacidades. Portanto, para todos os cristãos, viver segundo o Evangelho implica necessariamente a pobreza.
Além disso, se estudarmos as características da consagração do cristão a Cristo na fé, na esperança e na caridade, dentro da estrutura da vida religiosa, veremos que o conselho de pobreza é uma de seus elementos: a vida religiosa encarna a fé, a esperança e a caridade através de uma pobreza radical “voluntariamente abraçada à imitação de Cristo”[1]. Teologicamente, é uma consagração do corpo, dos bens e da vontade como expressão de nossa presença diante de Deus e de nossa presença no mundo e diante do mundo, um “condividir a pobreza de Cristo, que de rico se fez pobre para nossa salvação, para enriquecer todos nós com sua pobreza”[2]. Se procurarmos, pois, ser autênticos religiosos, o conselho de pobreza será indispensável. Mas o que significa, o que é o conselho de pobreza?



II. Definição do conselho de pobreza: os ideais

O conselho de pobreza pode ser definido de dois modos: especificando o que não é, e descobrindo o que é.
Antes de tudo, a pobreza não é um conceito, não é um alei, não é uma coisa ou uma substância que pode ser analisada, dividida ou vista através de um filtro para separar-lhe os elementos culturais e psicológicos da essência puramente evangélica[3]. A pobreza, diz-nos Orsy, é um dom intangível: uma atitude que nasce de uma relação com o mundo material é transformada: alguns objetos, alguns níveis do nosso ser, mesmo permanecendo vitais e necessários, diminuem de importância; outros tornam-se ricos de significado.
Reconhecendo o amor pessoal de Deus em nossos corações, a sua ação em nossa vida, nasce em nós a consciência de que pertencemos a Cristo. Verifica-se uma mudança de corações, de atitudes. Tornamo-nos conscientes do fato de que alguém entrou em nossa vida. A dura crosta do nosso egoísmo foi penetrada. Consentimos em abrir nossos corações ao amor de Deus, abandonar-nos a ele, e estamos dispostos a aceitar toda alegria e dor que estão ligadas a esta mudança de viver de uma maneira mais profunda do que no passado.
A pobreza, portanto, deveria ser um testemunho dos nossos valores interiores: a fé, a esperança e a caridade em Cristo. Deveria revelar a nossa total e atenta confiança nele. A pobreza torna-se uma atitude interior, que se desenvolve a partir de um valor profundo. Vista deste modo, a pobreza não é simplesmente um comportamento, assim como não é um interesse pelas coisas; é antes, um interesse por um Ser, por uma Pessoa. É uma atitude que se torna uma condição, uma situação, um complexo de atitudes, e a dimensão de uma vida integrada entre as comunidades e dentro delas. É uma atitude encarnada em um modo de vida que se torna um símbolo exterior de um abandono interior. O Pe. Thomas Clarke define-o como símbolo criativo de um tipo de compromisso que assumimos com Deus e entre nós: um modo característico de ser com Deus e com os outros homens[4].
Segue-se, além disso, que a pobreza não é a privação de bens materiais, de pessoas ou de interações sociais. A pobreza é uma integração, uma libertação e uma revelação. É uma íntima consciência de tudo o que Deus nos deu a nível mais profundo da nossa existência; é, ademais, um modo de dar a nossa limitação àquele que nos deu todas as coisas, de modo a sermos completados e transformados nele. Assim, a pobreza é uma expressão da integração do nosso ser, um ordenar coisas e pessoas segundo o significado essencial que elas têm em si mesmas e para nós. A pobreza se torna a expressão daquele Cristo e pelo Reino, vista deste modo, torna-se uma libertação. Organiza e integra. É uma libertação de preocupações excessivas no que se refere à alimentação, ao vestuário, a casa, às pessoas particulares. É uma disponibilidade e um desapego num sentido mais amplo. O fato de não pertencermos mais a nós mesmos, isto é, este despojar-nos de nós mesmos, implica desarraigar o nosso senso de posse em todos os níveis e, ao mesmo tempo, radica-lo em Cristo. A pobreza torna-se liberdade para consolidar um modo de viver que manifesta, mais que tudo, o fato de pertencermos a Cristo. O nosso desprendimento exterior exprime, portanto, uma inspiração fundamental: um desapego interior positivo do nosso ser.
É claro, portanto, que a pobreza não é uma privação, mas uma integração de todos os níveis do nosso ser, um distanciar-nos de cristalizações em um nível específico para sermos livre de conseguir revelar a intimidade total e integrada com Cristo através destes. Deixar-se a si mesmo é um abandono, não uma privação, porque no abandono se encontra a pobreza do ser verdadeiramente humano e a riqueza que Cristo possuía através da intimidade com o Pai.
Como não é um caminho, não é uma privação, mas uma atitude universal íntima, a pobreza não se exprime necessariamente em formas externas que sejam totalmente uniformes. Inácio não era Benedito, tampouco Francisco. Clarke escreve:

“Os juízos que se referem a esta dimensão da nossa pobreza, o nível da sobriedade material, a medida da autonomia dada aos indivíduos ou aos grupos locais, o problema dos ganhos etc. não deverão ser considerados com base em princípios prefixados ou com referência a um ponto específico, mas através de um discernimento de congruidade, referindo-se sempre à totalidade da vida do indivíduo... ou da comunidade”[5].

A atitude interior é a do abandono, e as expressões externas devem ser coerentes com esta atitude, mesmo que possam assumir formas diversas. Não existe uma maneira “perfeita” de viver a pobreza, porque esta é um meio, não um fim. Nenhum amante verdadeiro se sente satisfeito com as satisfações do seu amor. Mesmo quando deu tudo, acha que não basta, que é nada. Embora o nosso ideal de pobreza seja abandono de Cristo ao Pai, cada um tem uma simbolização particular, (Istoé, uma expressão vivida) desta atitude interiorizada, com base nas prescrições da própria Congregação, que é única e particular[6]. Cada um procura a liberdade do coração, mas alguns encontram dificuldades interiores em responder plenamente. Por este motivo, as manifestações exteriores diferem, porque o valor da pobreza pode ser interiorizado, em graus diversos, em cada pessoa.
Finalmente, não se pode falar da pobreza em termos isolados. Podemos, por motivos de discernimento, focalizar nela a nossa atenção, mas devemos pô-la em relação com a comunidade, com a virgindade, com a obediência, com a consagração a Deus, com o serviço e o testemunho apostólico. Como assim? Simplesmente porque a mesma relação de amor implícita permeia os outros votos e atos de religião e encontra complementação nestes.
[1] Decreto Perfectae Caritatis sobre a renovação da vida religiosa, nº 15, Edições Paulinas, Roma, 1966, p. 392.
[2] 2Cor 8,9; Mt 8,20.
[3] T. Clarke, S.J., “Witness and Involvement” in The Way. Supplement, nº 9, 1979, p.49.
[4] T. Clarke, op. Cit.
[5] Id, “Discerning the Ignatian Way in Poverty Today”, in The Way. Supplement, nº 9 (1979), p. 58.
[6] W. Yeomans, “ Come Follow Me” in The Way. Supplement, nº 9 1970, p. 58.

Uma abordagem antropológico-cristã do termo cultura.


A cultura nasce das experiências concretas da realidade. Nenhuma cultura nasce em laboratório, desassociada da vida e do chão das relações humano-social. Ela nasce do chão da vida das pessoas, nasce naquilo que Eunice Ribeiro Durham chama de “nível da realidade”.[1] É a partir do comportamento do grupo, ou seja, da ação social, que se formam as culturas. É, portanto pelo fluxo do comportamento social que as formas culturais encontram articulação.
Assim, cultura nasce de um processo de observação e interpretação, que busca descobrir o significado e o sentido dos fatos humanos e a relação que tais fatos possuem com a vida concreta dos povos em questão. Como afirma Clifford Geertz, mais que analisar dados, limitar ações, definir conceitos, o antropólogo busca construir um debate pertinente sobre um determinado foto ou conjunto de fatos que incide na vida de um povo; a isso ele chama de cultura.[2]
Por isso não existe um cultura, mas uma diversidade de culturas. Cada povo com seus costumes, sua geografia, suas crenças, etc, formam um quadro diversos com códigos socialmente estabelecidos. Neste campo da diversidade de culturas podemos notar que cada grupo, possuindo seu jogo cultural e sendo esse conjunto social aceito pelo grupo, forma a realidade essencial da cultura na sua elementar concretude de vida, ou seja, quem faz cultura enquanto tal, isto é, cultura de primeira mão, não é o antropólogo, mas próprio “nativo”, para usar aqui o termo de Clifford Geertz.[3]
Na dinâmica das culturas elas estão sempre em profunda transformação, pois uma vez que o escopo da cultura é o comportamento social, ela está sempre sujeita a variação e transformações, próprias da vida e do contexto humano da linguagem. Como a cultura é sempre uma interpretação na busca de captar o sentido e o significado das ações sociais na vida concreta do grupo social, ela está inexoravelmente em continua mudança e transformação. Essa transformação acontece porque as manifestações culturais são heterogêneas. Ao de uma “cultura de massa”, há um processo de reelaboração de significados que, às vezes, respeita a própria identidade e diversidade cultural.[4] Por isso, um modelo antropológico que entrever cultura como um conjunto fixo de axiomas e conceitos, desconectado da realidade vivencial pode trazer graves prejuízos e o forte perigo de se tornar regra vazia e norma que não responde a nada.
O que se deve verificar numa pesquisa cultural é a correlação entre a ação social e seu impacto na vida prática do povo. Daí que não se pode abordar uma cultura, tratando-a como objeto puro de análise. Como também não se pode abordá-la superficialmente, é mister, penetrar na cultura, na vida concreta da realidade existencial do povo. “A análise da cultura de uma formação social exige uma reconstituição da realidade, que é elaborada a partir da consciência que dela têm os portadores da cultura”.[5] Ninguém analisa uma cultura, comensurando-a e limitando-a para verificar suas partes e seus nexos. Como afirma Clifford Geertz, o antropólogo não estuda a aldeia, o povo, o país, ele estuda na aldeia, no meio do povo, no país. Portanto a abordagem é sempre a de inserir-se no meio do grupo. “O que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais que simplesmente falar, é conversar com eles... é o alargamento do discurso humano”[6]
Por tudo isso, que foi dito, podemos nos perguntar: até que ponto uma cultura limita ou possibilita o conhecimento humano? Ora, como afirma Clifford Geertz, uma cultura pode limitar na medida em que ele nunca é atingível na sua forma mais pura, todo alcance da cultural de um grupo para outro é sempre interpretações a partir de elementos que lhe são transmitidos. Isso por si já impossibilita um contato de primeira mão, por exemplo, eu posso estudar e pesquisar de diversos ângulos a cultura cearense, mas somente um cearense pode vivê-la plenamente; a cearensidade é algo intransponível só um cearense vive-a na sua cearensidade a cultura cearense. Assim, isso poderia caracterizar uma limitação, porém essa mesma limitação pode apresentar-se como outra característica do ser humano, a saber, a sua complexidade. O homem e a mulher, é como afirma, o teólogo Leonardo Boff, um ser de abertura, um nó de relações, voltado em todas as direções. É um ser em potencialidade permanente, um ser utópico, que é sempre carente de um algo mais. Nas palavras de Leonardo Boff o ser humano é um projeto infinito.[7]
Por ser um ser aberto e sempre em processo a cultura possibilita tanto uma abertura como uma limitação epistemológica. Na limitação a cultura pode fecha o ser humano em padrões fixos, criar uma falsa imagem de culturas superiores e inferiores e por fim limitar a criatividade humana em alguns casos. Por outro lado, ela pode abrir o ser humano ao conhecimento de que existem outras maneiras de viver a mesma experiência em outro prisma.
Como tentamos demonstrar a cultura é muito mais que um aglomerado de conceito, é um olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum, ligado-a inevitavelmente com a vida para, a partir da interpretação, mergulhá-la dentro do conjunto das relações social de um povo. Assim não existe uma cultura superior e outra inferior como apresentava a antiga antropologia tradicional, que por muito tempo concebeu a heterogeneidade cultural em termo de subculturas relativamente coerente e autônoma em detrimento de uma cultura erudita pertencente à classe dominante.
Atualmente corre-se o perigo, e isso é verdade, da uniformização cultural por meio da chamada “cultura de massa”, que destruí as barreiras culturais antes bem definidas, nas quais permitiam a elaboração das subculturas. Tal fenômeno trata-se de uma “indústria cultural”, que tenta definir padrões culturais que responda as necessidades do conjunto da população. Há uma verdadeira manipulação do simbólico, e às vezes, uma apropriação indevida de elementos culturais, sacados de seu contexto original e reelaborados como uma macro cultura, oferecem respostas a tudo.
Neste contexto sofre, especialmente, a cultura cristã que nasce da vivência de fé dos seguidores de Jesus; daqueles que imitando o Mestre imprimem no mundo um modo de ser e de viver. O selo da cultura cristã é sintonia entre amor e vida. A prática de vida cristã que, por sua vez, gera a cultura toma forma na exigência da solidariedade e da hospitalidade sinais indelével da cultura que jaz do cristianismo. Assim, fica evidente que cultura cristã não é abstratismo ilusionista alienante, mas real, concreto e exigente. A cultura do cristianismo é o amor que gera a paz.
[1] Cf. DURHAM, Eunice Ribeiro, A Dinâmica Cultural na Sociedade Moderna, IN Ensaios de Opinião n.4 1997 – e Arte em Revista, n. 3 – p. 01.
[2] Cf. GEERTZ, Clifford, A Interpretação das Culturas, pp. 14-15.
[3] Cf. GEERTZ, Clifford, A Interpretação das Culturas, p.25.
[4] Cf. DURHAM, Eunice Ribeiro, A Dinâmica Cultural na Sociedade Moderna, IN Ensaios de Opinião n.4 1997 – e Arte em Revista, n. 3 – p. 04.
[5] DURHAM, Eunice Ribeiro, A Dinâmica Cultural na Sociedade Moderna, IN Ensaios de Opinião n.4 1997 – e Arte em Revista, n. 3 – p. 02.
[6] GEERTZ, Clifford, A Interpretação das Culturas, p. 24.
[7] Cf. BOFF, Leonardo, Tempo de Transcendência: o Ser Humano como um Projeto Infinito, Sextante, Rio de Janeiro, 2000, pp. 36-37.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Homilia do II Domingo do Tempo Comum – Ano B


Caros irmãos e irmãs, chegamos ao tempo comum depois de termos vivido às alegrias do natal de Jesus. Entramos hoje no Segundo Domingo chamado Comum: tempo em que encontramos os passos de jesus rumo ao ápice de salvação que ele veio anunciar. Neste tempo penetramos no dia-a-dia da vida miúda, vivida na presença do Senhor que está sempre presente na sua Igreja na potência do seu Espírito Santo, dando vigor à Palavra e eficácia aos sacramentos.
Neste Missa Deus chama-nos, quer entra na nossa vida e nos dirige o seu apelo. Foi assim com jovem Samuel que sequer sabia reconhecer a voz do Senhor; foi assim com os primeiros discípulos, traspassados pela palavra do Batista que, apresentando o Cordeiro de Deus, quase que forçava aqueles dois, André e Tiago, a seguirem Jesus. E lá vão eles: “Rabi, onde moras? Onde tens tua vida?” E Jesus os convida: “Vinde e ver! A este convide os discípulos descobrem a presença e chamado de Deus: eles foram e permaneceram com ele... Somente se tiverdes a coragem de virdes comigo, de comigo permanecerdes, podereis ver de verdade!” Santo Agostinho afirma nas confissões que nosso coração viverá sempre incompleto, e, portanto, inquieto enquanto não permanecer em Deus. Não é impressionante, quase que inacreditável, caríssimos, que Deus nos conheça pelo nome, que o Senhor nos chame e nos queira parceiros seus no caminho da vida? Deus nos conhece; sabe bem quem somos. Conhece nossas virtudes e nossos pecados e assim mesmo ele nos chama, por amor, a permanecer com Ele. A pergunta do Senhor é íntima: “O que estais procurando?”. Aqueles homens não procuravam um teto, nem um emprego e muito mesmo um “guru” ilusionista que fornecesse uma estrada pronta. O que eles procuravam era o sentido de suas vidas, a salvação de suas almas. Vinde, caríssimos, fiquemos com o Senhor e encontraremos aquilo que nosso coração procura, aquilo que faz a vida feliz.
André e João “foram e ficaram com ele aquele dia” (Jo 1,39). Também a nós foi dado um dia para que permaneçamos com Jesus, o domingo. Nós, os cristãos, precisamos redescobrir o domingo como o kyriaké, Dies Domini, Dia do Senhor. Afirma o Beato João Paulo II na Carta Apostolica Dies Domini: “O dia do Senhor — como foi definido o domingo, desde os tempos apostólicos — mereceu sempre, na história da Igreja, uma consideração privilegiada devido à sua estreita conexão com o próprio núcleo do mistério cristão. O domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a Páscoa da semana, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n'Ele da primeira criação e o início da « nova criação » (cf. 2 Cor 5,17). É o dia da evocação adorante e grata do primeiro dia do mundo e, ao mesmo tempo, da prefiguração, vivida na esperança, do « último dia », quando Cristo vier na glória (cf. Act 1,11; 1 Tes 4,13-17) e renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5)”. O domingo mais que preceito, deve ser vivido como gaudete, ou seja da alegria. O preceito de fato existe, pois a Igreja quis garantir um mínimo vital para o cristão: participar da Missa aos domingos e dias santos. A razão da lei da Igreja não é o preceito em si, mas esse mínimo vital que sustenta a existência humana em Deus. Os primeiros cristãos compreendiam bem essa realidade quando, por exemplo, quarenta e nove cristãos da cidade de Abitene (na atual Tunísia) foram surpreendidos numa celebração dominical, apesar das ordens contrárias do imperador. Perguntados por que tinham desobedecido às ordens imperais, Emérito, um dos participantes daquela eucaristia, deu a seguinte resposta: sine domínico non possumus, ou seja, nós, os cristãos, não podemos ser, nem existir, nem viver sem a celebração da Eucaristia dominical.
O sábado, celebração da criação e do repouso de Deus, era figura da realidade que o domingo significa: a nova criação e o repouso eterno iniciados com a ressurreição do Senhor Jesus. O apóstolo Paulo deixou bem claro que os cristãos já não devem sentir-se vinculados ao sábado: “ninguém, pois, vos critique por causa de comida ou bebida, ou espécies de festas ou de luas novas ou de sábados. Tudo isto não é mais que sombra do que devia vir. A realidade é Cristo” (Cl 2,16-17). Santo Inácio de Antioquia (+110 d.C.) explicou aos cristãos de Magnésia a passagem do sábado para o domingo da seguinte maneira: “aqueles que viviam na antiga ordem das coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte” (Aos Magn., 9,1).
O domingo é o dia que nós entramos em comunhão com Jesus no mesmo desejo dos João e André de permanecer com o Senhor. A participação na eucaristia é referencial de nossa adesão ao Mistério Pascal da Paixão, Morte e Glorificação de Jesus Cristo. Quem falta a missa dominical comete um grave pecado porque despreza o mistério da redenção. Não podemos achar que uma breve ou mesmo uma longa oração em nossa casa substitui a missa dominical, festa e solenidade. Nenhuma oração é maior e mais expressão de louvor e adoração a Deus que a santa missa. São João Crisóstomo explicava aos cristãos do seu tempo: “não podes rezar em casa como na Igreja, onde se encontra o povo reunido, onde o grito é lançado a Deus de um só coração. Há ali algo mais, a união dos espíritos, a harmonia das almas, o vinculo da caridade, as orações dos presbíteros” (Incomprehens. 3,6).
Portanto, o convite de permanecer com o Senhor precisa ser levado a serio por muitos católicos que trocam a missa por futebol, festas, praias e outras coisas mais. É necessário escutar a voz do Senhor anunciada todos os domingos na liturgia da Palavra, reconhecer a urgência de conversão pelo momento penitencial e alimentar-se do corpo do Senhor para que unidos a Ele deixemo-nos guiar por sua vontade e não manchemos o Corpo Místico de Cristo, o qual todos batizados fazem parte com as imundícies, imoralidades, injustiças, roubos e tantos outros pecados.


Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum (Ano C) Um homem vem a Jesus pedindo que diga ao irmão que reparta consigo a herança. Depois ...