sábado, 24 de outubro de 2009

Resenha do texto: Crer no mundo de hoje de Josef Ratzinger: Introdução ao Cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico.

A dúvida e a fé:
O autor tenta demonstrar que a problemática em relação a fé no momento atual é muito mais desafiantes que uma simples mudança de formas e linguagem. Para Ratzinger a teologia precisar ir mais funda na questão do diálogo com a modernidade. A realidade da teologia é que o teólogo não consegue com seu discurso atual atingir o ponto nevrálgico; porque muitas mudanças na teologia estão na periferia da problemática. Não é mudando somente a linguagem que solucionaremos a questão da fé na modernidade. Atitudes como mudança de linguagem, esquemas e estruturas são paliativas e tornam a reflexão às vezes ingênua.
Ratzinger propõe uma reviravolta na atitude da teologia frente ao mundo moderno. A primeira coisa é assumir uma postura autocrítica. Quem, portanto, se dispor com toda honestidade a prestar contas da fé cristã a si mesmo e aos outros terá primeiramente que aprender que ele não é alguém acima dos outros e sim que vive inserido no mundo como todo ser humano; que vive dentro dos conflitos humanos, mergulhado nas teias da complexidade da vida. Mesmo os mais santos são antes de tudo, pessoas que experimentaram as tensões das dúvidas e das incertezas próprias da vida (Ratzinger dá como exemplo os testamentos espirituais de Teresinha de Jesus).
Para Ratzinger a questão atual não se trata apenas de aspectos da fé, ou de incompreensões dogmáticas, ou ainda de elementos deste ou daquele sacramento e rito, mas a questão é sobre a fé mesma. A questão é sobre a validade e existência da fé. Ainda é pertinente o discurso sobre a fé? A fé é algo que merece ser escutada? Portanto, a problemática é central ao cristianismo, é uma questão de sobrevivência. A fé encontra hoje apoio para exigir ser escutada? Eis ai a problemática de fundo.
A dúvida e a fé entram em relação neste ponto, pois para Ratzinger a fé encontra espaço na trama da vida humana, pois ela chega como uma entrega e aceitação daquilo que a vida não consegue responder a si mesma: a certeza de tudo. A dúvida faz parte da vida porque a vida humana é limitada no seu contexto espacial e por mais que o homem avance nas descobertas a certeza nunca será absoluta. A dúvida estará presente sempre até o fim. Assim também é a fé, ela não traz a certeza absoluta ao homem. Quem quiser escapar das incertezas da fé, quem quiser provar a fé, ou como diz o autor pô-la sobre a mesa nunca conseguirá, e caso o faça porá sobre a mesa não a fé, mas algo de falso. Na vida humana sempre nos acompanhará um “talvez” teológico. Daí afirma Ratzinger que dizer “creio” é muito mais que um simples pronunciar axiomático teológico conclusivo. Dizer “creio” é acreditar, sentir, compreender, entender e firmar os pés em Deus. Para Ratzinger, da dúvida nem o incrédulo nem o crente estão isentos. O “talvez” é a grande tentação da qual não se consegue fugir e na qual se experimenta a irrecusabilidade da fé dentro da própria recusa.

O salto da fé- tentativa provisória de definir a essência da fé.

O que é a fé? Essa é a pergunta que Ratzinger tentará responder aos modernos. Essa questão só pode ser formulada da seguinte maneira: o que significa na boca de um cristão dizer creio, nas condições existenciais atuais como um todo na modernidade? A fé no AT significava a um sim a lei; ela era uma ordem de vida. No tempo dos Romanos a fé era observância de determinadas formas e praxes rituais que não tinha muita necessidade de uma relação com o sobrenatural. Na Idade Antiga e Media da era cristã havia uma concentração de fieis, mas a vivência da fé consciente era algo bem reduzido. Havia a fé dos teólogos e a massa cristã alheia ao conteúdo da fé enquanto tal.
A fé, na verdade, sempre esteve presente na vida das pessoas sem que perguntassem sobre ela. Dizer a palavra creio traz muitas conseqüências que nem sempre nos damos conta. A fé mostra que o ser humano não entende ser aquilo que ele pode ver, ouvir e tocar a totalidade de tudo o que lhe diz respeito, que ele não considera o espaço de seu mundo delimitado para aquilo que ele pode ver e tocar, mas que está à procura de uma segunda forma de acesso à realidade, e a essa forma ele chama de fé, encontrando nela até a abertura decisiva de sua visão do mundo simplesmente. A palavrinha creio encerra uma opção fundamental diante da realidade como tal; ela não é uma constatação disso ou daquilo, e sim uma forma básica de se relacionar com o ser, com a existência, com o próprio e com o total da realidade. Daí a atitude básica que devemos ter é a conversão. A fé é um salto sobre o abismo infinito do mundo tangível e visível, que nos puxa para o limitado e transitório; a fé é, portanto, a virada que passa através desse talvez teológico, que pressupõe aceitar o risco de firmar o pé na esperança do invisível e absoluto que possibilita toda realidade visível.

O dilema da fé no mundo de hoje.

O paradoxo fundamental da fé no mundo de hoje consiste na idéia que se firmou de tradição como uma recuo ao passado. A fé que vive da tradição é rejeitada como algo passado e superado. O homem moderno pensa no futuro e toda a sua vida está em função do progresso e do desenvolvimento. Tudo que faz unir-se ao passado é necessariamente descartável. A tradição e a fé se estão vinculadas não encontram aí espaço para sobreviver. Daqui nasce a proposta intelectualista protestante da desmitologização, ou do pragmatismo católico do aggiornamento. Mas Ratzinger diz que não basta essa mudança para resolver o problema. A fé tem a ver com o eterno e com o progresso do mundo, mas não se resume somente a isso. Deus está no mundo e o mundo revela Deus, mas é preciso superar o positivismo da fé e pragmatismo do fazer o progresso. A fé não pode ser reduzida a um aspecto da vida humana, como quiseram fazer diversas correntes filosóficas (Kant, Hegel, Marx) e teológicas (TdL). A fé não pode ser reduzida àquilo que sentimos e tocamos; ela é mais.

O limite da compreensão moderna da realidade e o lugar da fé.

Há varias formas de relacionar-nos com a realidade: a orientação mágica, a forma metafísica e atualmente a forma científica. Para Ratzinger o modo como o ser humano se relaciona com a realidade podem ser identificados em duas fases.
· O historicismo: preparado por Descartes recebeu sua forma definitiva por meio de Kant, porém foi com Vico que o historicismo deu grandes avanços. Na Escalástica a equação verus est ens: o ente é a verdade foi composta por Vico do seguinte modo verum quia factum, ou seja, só podemos conhecer como verdadeiro aquilo que foi feito por nós mesmo. O ser humano é agora aquele que cria. Verdade é fazer e não mais acolher a verdade do ser criador que pensa e cria com seu pensamento. É o ser humano quem fazendo, dá sentido a tudo que faz. Em Vico já se vislumbra o nascimento da ciência com seu método positivista da experimentação.
· A segunda fase é aquela do pensamento técnico: agora não é mais verum quia factum e sim verum quia faciendum, ou seja, a verdade que interessa não está mais ligada nem ao ser nem a historia dos seus atos passados, mas sim a verdade é a transformação do mundo, que consiste em dar-lhe forma. O factum foi sendo progressivamente substituído pelo domínio do faciendum, ou seja, pelo que é factível e deve ser feito. Por isso foi se confirmando mais tarde a tese que o ser humano somente pode conhecer aquilo que se pode realizar; e quanto mais se realiza mais garantia se tem que se conhecem os meios de fazer e sua técnica. Desta idéia nasce a necessidade da experimentação por meio da repetição. Com isso surge o método científico que resulta da associação entre matemática e a facticidade observada no experimento repetível, como o único portador de certeza confiável.
· Mas qual o lugar da fé: no contexto da faciendum a fé ocupa o lugar de um projeto ou instrumento de transformação do mundo. O plano de transformação social torna-se um modo que a teologia encontrou para se colocar dentro deste quadro teórico. Mas essa não pode ser o lugar específico da fé nesse duplo contexto historicista x cientificista. A fé não faz parte da relação entre o saber e o fazer. O lugar da fé é por excelência o firmar-se e o entender o sentido de tudo. Não constitui um saber pragmático das realidades tangíveis e visíveis, mas sim uma acolher e aceitar a infinita distância entre o inefável e finito. A fé estar no encontro entre o tangível e o intangível, o contingente e o imensurável.

A fé como ato de firmar-se e de entender:


A fé é uma opção fundamental, é um salto sobre o abismo infinito entre o ser visível e invisível. A fé neste sentido não pode ser uma coisa que se encontre e se prove com dados físicos experienciais. Na estrutura do tipo de conhecimento científico só é verdadeiro aquilo que se prova; esse tipo de saber não pode ser utilizado para encontrar a fé. A certeza científica que é sempre um talvez, não pode esgotar a dúvida, pois dentro do conhecimento factível não há caráter absoluto.
O que seria a fé, então? A fé cristã significa conformar, assumir a opção de que o invisível é mais real do que o visível. Ter fé neste sentido significa, então, compreender a nossa existência como resposta à Palavra, ao logos que sustenta e conserva todas as coisas. Por isso a fé é inexoravelmente um firmar-se e entender-se do ser humano, aceitando e confiando a Deus que tudo cria e sustenta com seu logos. Fé é assim o aceitar antes do fazer, sem menosprezar o fazer. A fé é uma atitude de responsabilidade ante o invisível como verdadeiro fundamento do real. Mas para isso é necessário à teologia superar os dois grandes desafios sob a forma de positivismo e fenomenismo da fé. Uma fé que necessite ser provada já não é autêntica e nunca levará a cabo tal missão. A fé é o primado do invisível sob o visível e do receber sob o fazer.


A razão da fé:

Qual a razão da fé? Já vimos que a fé não é um conceito factível. A fé segundo Ratzinger tem sua razão de ser na essência original do mistério. É Deus a razão da fé, e esse Deus tem um rosto e é encontrado na pessoa de Jesus de Nazaré. A razão da fé então é o entendimento não como conhecimento factível e sim sentido último do encontro com esse mistério. O entender no pensar de Ratzinger significa aprender a conceber o fundamento sobre o qual nos firmamos como sentido e como verdade última de toda realidade e que o real não pode dar sentido a si, mas recebe de Deus sua razão de existir. Fé e entendimento não se contradizem e sim estão em concordância e são tão inseparáveis como fé e firmeza.

Creio em ti.


A fé cristã não é fé numa coisa é antes fé numa pessoa. Ela é o encontro com o homem Jesus, e nesse encontrar-se ela experimenta o sentido do mundo como pessoa. Pois Jesus revela ao mundo e ao ser humano o sentido e a verdade da criação. Ele é o ponto de encontro entre Deus criador e a sua obra criada. O sentido do mundo encontra-se assim neste “tu” fundamental que é fundamento e não carece de fundamento, pois é ele quem oferece sentido a tudo.
Mas esse encontro, alerta Ratzinger, não elimina a possibilidade de dúvidas, tentações e incoerências. O fiel experimentará sempre essa escuridão em que o protesto da descrença o envolve como uma prisão lúgubre e intransponível, e em que indiferença do mundo, que continua agindo como se nada tivesse acontecendo, parece reagir apenas como escárnio à sua atitude de esperança. A atitude deve ser aquela da reverência do tremendum: eu creio em ti, Jesus de Nazaré, pois tu és o sentido (logos) do mundo e da minha vida!

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