sábado, 17 de outubro de 2009

Trecho da conferência de 17 de Maio de 1658.

Um motivo que nos deve levar, meus senhores e meus irmãos, a bem observarmos as regras, é que, segundo me parece, pela graça de Deus, todas as regras da Missão têm por fim afastar-nos do pecado e até da imperfeição, procurar a salvação das almas e servir a Igreja e dar glória a Deus. Parece-me que, pela graça de Deus, tendem todos a isso, tão bem que todo aquele que as observar como dever, será, no estado em que o colocou Deus, isento, em sua pessoa, de vícios e pecados. Será útil à Igreja, rendendo a Nosso Senhor a glória que ele disso esperar de cada um de nós.
Que motivo, meus senhores, para a companhia bem observar as regras, este de ser isenta de defeitos tanto quanto possa permitir a fraqueza humana, de glorificar a Deus e fazer que seja guiado e servido na terra! Ó Salvador! Que felicidade! Não sou capaz de ter-la em bastante consideração.
Outrora, dizia-me um bom servo de Deus, do livro (da) “Introdução à vida devota”. “Vede: quem observasse, com perfeição, tudo que contém esse livro, chegaria a uma grande perfeição, embora pareça serem todas as suas práticas, comuns e acomodadas à fraqueza humana.”
Não poderia eu dizer o mesmo de nossas regras que, não nos prescrevendo, aparentemente, senão uma vida bastante comum, podem, contudo, levar aqueles que as praticam, a uma alta perfeição, e não só a isso, mas até ao ponto de destruir o pecado e a imperfeição nos outros?
Efetivamente, meus senhores, aqueles que não as observarem, poderão, porventura, trabalhar na própria perfeição e na dos outros? E que glória darão a Nosso senhor? Se, ao invés, pela graça de Deus, fez a companhia, algum progresso na virtude, se saiu cada qual do estado de pecado e se adiantou na perfeição, não foi acaso, a observância das regras que operou tudo isso?
Se, graças à misericórdia divina, fez a companhia algum bem às missões e aos ordinandos, não foram as regras que produziram esses frutos? E, sem nossas regras, como poderíamos fazer tudo isso? Oh! Temos, pois, grande motivo de observá-los inviolavelmente e feliz será a companhia se a elas for fiel!
Outro motivo por que devemos ser exaltados à observância das regras, é que são todas tiradas do Evangelho, como vereis meus senhores, como vereis; elas visam todas conformar nossa vida com a que levou Jesus Cristo aqui na terra. Veio nosso senhor e foi enviado por seu Pai para evangelizar os pobres “Pauperibus evangelizare misit me[1] Pauperibus, aos pobres! Meus senhores, aos pobres! como, pela graça de Deus, procura fazer a pequena companhia. Grande motivo para a mesma companhia se fundir, é que jamais houvera, antes, uma congregação, ou nunca se ouviu falar que, tivesse uma congregação por finalidade fazer o que fez nosso senhor no mundo: anunciar o evangelho somente aos pobres, aos pobres abandonados “Pauperibus evangelizare misit me.” Na verdade, é esse o nosso fim. Considerai o que aprouve a Deus deixar, há pouco tempo, como um monumento à companhia e um memorial à posteridade.
Nossa herança, portanto, meus senhores e meus irmãos, são os pobres, os pobres: “Pauperibus Evangelizare misit me.” Que felicidade, meus senhores, que felicidade! Fazer aquilo que trouxe Nosso senhor do céu à terra e mediante o que iremos também nós da terra ao céu; continuar a obra de Deus, que fugia das cidades e ia ao campo procurar os pobres! Eis em que nos ocupam as regras, em ajudar os pobres, nossos donos e senhores. Ó pobres, mas felizes regras da missão, que nos empenham a servi-los, exceto nas cidades! Vede coisa extraordinária! Como são felizes aqueles que as observam, porquanto conformarão à vida e todas as ações com as do filho de Deus! Ó Deus! Que motivo tem nisso, a companhia para bem observar as regras: fazer o que fez o filho de Deus: realizar no mundo a evangelização dos pobres! Que haja uma companhia e seja a da missão, composta de pobres pessoas, e toda para isso, que vá aqui e ali pelas cidades e aldeias, deixe as cidades, o que jamais se fizera e vá anunciar o evangelho somente aos pobres; e, sem mais nem menos, nisso estão as nossas regras!
Mais quais são essas regras? São as que a companhia teve em uso até o presente? Sim; mas julgou-se conveniente explicá-las e mandar imprimi-las, a fim de poder cada qual possuí-las mais comodamente. Nesta noite, distribuí-las-emos à companhia. Por muito tempo as esperastes meus senhores, e adiamos muito o dia de vo-las dar, por sérias razões. Primeiramente, para imitar o procedimento de Nosso senhor, que começou a fazer antes de ensinar: “coepit facere et docere [2].” Praticou as virtudes, nos trinta primeiros anos de sua vida, e empregou, apenas, os três últimos em pregar e ensinar. Procurou, de seu lado, a companhia imitá-lo, não só fazendo o que veio ele executar na terra, mas fazendo isso do mesmo modo como fez. Assim pode a companhia dizer que primeiramente fez, e depois ensinou: “coepit facere et docere.”
Em segundo lugar, se, primeiramente, tivéssemos dado as regras, teria sido difícil evitar certos inconvenientes que redundariam daí. E a demora, pela graça de Deus, nos preservou disso. Se fossem dadas à companhia regras que ainda não houvesse ela praticado, poderia encontrar dificuldades. Mas dando-lhe o que fez e guardou, desde tantos anos, com edificação e em cuja prática não se deu mal no passado, nada existe que não deva julgar fácil e cômodo para o futuro. Fez-se como os Recabitas dos quais se fala na sagrada escritura, que guardavam, por tradição, as regras a eles deixadas pelos pais, embora não fossem escritas. Agora que teremos as nossas escritas e impressas, nada mais terá que fazer a companhia senão manter-se no que possui, há vários anos, e continuar a fazer sempre o que fazia e praticava até agora.
Em terceiro lugar, meus senhores, se tivéssemos dado as regras, no começo, e antes da companhia as observar, ter-se-ia razão de pensar que fora isso a realidade mais humana que divina, fora um desígnio tomado e maquinado humanamente, e não uma obra de Deus. Mas, meus senhores, todas essas regras, tudo quanto vedes se fez não sei como, porquanto jamais pensava eu, em tal coisa. Introduziu-se tudo, pouco a pouco, sem se poder afirmar quem seja a sua causa. Ora, é uma regra de S. Agostinho que, não sendo possível encontrar a causa de uma causa boa, se deve referi-la a Deus e reconhecê-lo como seu princípio e autor. Segundo essa regra de S. Agostinho, porventura não é Deus autor de todas as nossas regras, introduzidas todas não sei de que modo e de tal maneira que não se saibae explicar como e por quê?
Ó salvador! Que regras! E donde vem? Tinha eu pensado nisso? Absolutamente, meus senhores, nem em nossas regras, nem na companhia, nem sequer na palavra Missão, jamais pensara. Foi Deus quem operou tudo isso. E nenhuma parte tem os homens em tal negócio. Quanto a mim, ao considerar a conduta de que aprouve Deus servir-se para suscitar a companhia na Igreja, confesso que não compreendo e me parece ser sonho tudo quanto vejo. Oh! Isso não é humano, é de Deus. Chamareis humanos o que o entendimento do homem não previu e a vontade não desejou nem procurou de modo algum? O pobre Pe. Portail não pensava absolutamente nisso, nem tão pouco eu.
Chamareis humana a origem de nossas missões? Chamaram-me, certo dia, a confessar um pobre homem muito doente, em perigo de vida, o qual tinha a reputação de ser o homem mais honesto, ou pelo menos um dos melhores de sua aldeia. Chegou-se, contudo, a saber que estava carregado de pecados. Jamais tivera a coragem de declará-los em confissão, como altamente o confirmou pouco depois, na presença da falecida senhora do general das galeras, dizendo-lhe: “Senhora, estava condenado, se não tivesse feito uma confissão geral, por causa dos graves pecados que não tinha coragem de confessar.” Logo após morreu este homem e a dita senhora, reconhecendo por isso a necessidade das confissões gerais, desejou que eu fizesse, no dia seguinte, uma pregação sobre esse ponto. Fiz o sermão e a este, Deus concedeu tantas bênçãos que todos os habitantes do lugar fizeram depois a confissão geral, havendo tamanha multidão que foi preciso chamar dois Padres Jesuítas para me ajudarem a confessar, pregar e catequizar. Coisa que motivou a continuação do mesmo exercício nas outras paróquias das terras da mesma senhora, durante vários anos, a qual quis, por fim, manter padres para continuarem as missões e nos arranjou, para este intento, o colégio de “Bons-enfants”, aonde nos retiramos, Pe. Portail e eu. Tomamos conosco um bom padre a quem dávamos cinqüenta escudos por ano. Assim saíamos nós três a pregar e missionar, de aldeia em aldeia. Ao partir, entregávamos a chave a algum vizinho ou mesmo lhe pedíamos para dormir em nossa casa. Para todos os lugares, tinha, entretanto, apenas um sermão que acomodava de mil modos, era sobre o temor de Deus. Assim agíamos nós, enquanto operava Deus o que previa desde toda a eternidade.
Abençoou largamente os nossos trabalhos. Vendo isso, a nós uniram-se alguns bons eclesiásticos, pedindo para viver conosco. Ó salvador! Ó salvador! Quem jamais haveria de pensar que chegassem as coisas ao estado em que hoje se encontram? Se alguém me dissesse isso, naquele tempo, julgaria que estivesse a zombar de mim e foi, contudo, por ali que desejou Deus dar começo ao que vedes agora. Ah! Meus senhores, ah! Meus irmãos chamareis humano aquilo em que jamais alguém pensava?
Depois passou-se a distribuir as regras. Acabada a distribuição, o Pe. Almerás se pôs de joelhos e lhe pediu a benção em nome de toda a companhia, que também se ajoelhou então. Nesse momento, prostrou-se o Pe. Vicente e acrescentou essas palavras:
“Ó senhor, que sois a lei eterna e a razão imutável, que governais, na vossa sabedoria infinita, todo o universo, vós de quem emanam toda conduta das criaturas e todas as leis de bem viver, como de sua fonte viva, abençoai. Nós vo-lo pedimos, aqueles a quem destes estas regras, que as receberam como provenientes de vós. Dai-lhes, senhor, a graça necessária para as observarem sempre e inviolavelmente até a morte. É nesta confiança e em vosso nome que eu, miserável pecador, pronunciarei as palavras da benção: “Bendictio Domini Nostro Jesu Christi descendat super vos et maneat semper, in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti Amen.”
Ao terminar a benção, ele começou a oração “Sancta Maria” e a companhia se recolheu.
[1] S.Luc. IV 18
[2] Act Ap I 1

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