quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Formar em mudança de tempo: a formação no desafio da pós-modernidade.



Pe. Fantico Nonato Silva Borges, CM

1. A formação na pós-modernidade.

A formação sempre foi e continua sendo um grande desafio às comunidades religiosas, sobretudo hoje quando novos modelos e paradigmas se impõem a cada instante. Esse ensaio é fruto de um questionamento que inquieta a mente e o coração dos que estão nesta tão exigente missão de formar para compromissos autênticos, maduros, seguros e perpétuos. Como falar em compromissos definitivos num mundo de provisiridade, fragmentação, inconstância e vulnerabilidade? O que temos de mudar para atingir um nível de comprometimento onde o sujeito assuma sua caminhada como um processo de metanoia? Como dinamizar sem perder o referencial de fundo? E como relativizar sem anarquia e perda de identidade congregacional? Esses e outros questionamentos que podem ser elencados favoreceram a uma profícua e fecunda formação inicial e continuada nas nossas comunidades.
A pós-modernidade apresenta-se como um tempo onde tudo é fluído e passageiro. É própria deste momento da história humana, uma crescente compreensão da abertura do homem, onde sua liberdade é acentuada e defendida a qualquer custo. A reivindicação por autonomia coloca em marcha uma nova mentalidade: o ser humano como a medida de seu limite.[1] Ainda neste sentido o capitalismo com sua teoria do mais consumo mais prazer criou a sensação da absoluta potencialidade, do poder tudo, da supremacia do fazer. O ativismo que consiste no fazer e realizar coisas sem articulação com a totalidade da vida fez emergir nas mentalidades pueril uma falsa ilusão de utilidade da vida: a vida é cada vez cheia de sentido quanto mais se produz. Nesta linha de raciocínio o valor maior valor vincula-se ao novo. O velho, mesmo sendo experimentado, é substituído pelo jovem por poder produzir mais, que nem sempre é melhor.
A vida acaba por ser definida pelo momento atual. O que vale não é o projetar, o prospectar, mas o viver intensamente o momento. A vida é sempre o presente. O passado não serve, pois já não existe mais, o futuro não corresponde aos anseios, pois não podemos mensurá-lo. Assim a vida é colocada sob o prisma do “já”. O escopo do mundo atual anela apenas o imediato. Como falar então, de futuro e planejamento da vida para uma sociedade do provisório?
O que tudo isso tem a ver com nossa formação? Tudo! Porque nossas casas recebem jovens vindos desta sociedade pós-moderna e não de outros tempos passados. A nossa formação, nosso estilo de administração e nossa maneira de educar têm necessariamente que se confrontar com essa realidade: nossos modelos medievos de formação não respondem mais ao jovem que bate em nossa casa em busca de responder a vocação. O que fazer então? É preciso mudar, dinamizar e revitalizar o processo de formação inicial-continuada. Nós tentaremos com a simplicidade vicentina lançar luzes nesta empreitada de animar a vida formativa de nossas casas.

2. Dinamizar a formação[2]

É sempre bom lembrar que a formação para a VRC é um processo com uma gradualidade, sequenciamento, amplitude, profundidade, densidade, com uma carga sempre nova de significado. Por isso, exige uma contínua disponibilidade em aprender, compreender e aceitar os limites tantos dos formandos como dos formadores. Nosso desejo é sempre, quando falamos em mudança, de renovar e dinamizar. Mas queremos dinamizar a formação nos moldes que estão aí ou queremos descobrir um novo jeito de formar? Eis o nosso defafio.
Para dinamizar é preciso recuperar a centralidade da pessoa do formando na relação com a pessoa de Jesus Cristo. É preciso levar nossos formandos ao encontro com Jesus Cristo vivo.[3] Para dinamizar é necessário priorizar, simplificar e focalizar. O foco não está nas etapas que a pessoa supera, mas na pessoa que faz o processo rumo ao encontro transformador com Jesus. Fico cada vez mais convencido que não é o cumprimento dos oito ou mais anos de seminário, a conclusão dos cursos de filosofia e teologia que balizam e determinam a possibilidade de um candidato ser elevado às ordens sacras e aos votos. Não podemos mais utilizar o tempo formativo apenas cronologicamente, é preciso valorizar o tempo psicológico e místico.
A formação deve tornar o formando protagonista do seu processo, oferecendo-lhe referenciais para que possa localizar-se contextualizadamente no tempo, no espaço, no senso das coisas e na experiência de relações humanizadas. Dinamizar é destravar, remover obstáculos que impedem mobilidade, agilidade e atualidade. É mais que criar coisas e inovações: dinamizar é compartilhar tarefas e responsabilidades.
O dinamismo na formação não é para o consumo e sim para a criatividade, para fazer nascer, desde dentro de si mesmo, a força que mantém a vida em sua versão mais original. Nossas casas de formação desejam dinamizar o processo de formação em vista de quê? O que é que não está bem? O que é que se julga estar bem? Não será o paradigma de “bem” que precisa ser mudado? O “bem” que se busca é o “bem” de que se necessita? O que realmente precisamos mudar?
Na formação, de que estamos falando, trata-se de construir pessoas e caminhos. Pessoas humanas em caminhos humanizados e humanizantes. Estamos desafiados a investir ampla e profundamente na descoberta e no potenciamento da identidade de cada formando para que possa estabelecer relações verdadeiras, sadias, edificantes, com as outras pessoas e com outros seres, mas acima de tudo consigo mesmo.

3. Formar em mudança de época

A VRC não pode esquecer que não estamos apenas numa época de mudanças, mas que entramos numa mudança de época. Os valores que outrora gerenciavam a vida social, política e até mesmo familiar estão transmudados. A transmudação dos valores essenciais em idealismo intransponíveis e a conseqüente perda de identidade nas relações tornam a época atual algo novíssimo do qual não estamos acostumados a lidar. Temos duas atitudes básicas: fugir dela ou encará-la com criatividade e espírito de responsabilidade. A mudança de época se caracteriza por uma mudança de paradigma que afeta todas as instâncias da vida humana, de modo que não é uma coisa que muda, é o modo de ver, entender, interpretar, intervir e lidar com a realidade que mudou.
A mudança de época explica a crise de percepção que fragmenta a consistência interna de modos de interpretação coerência, entre o ser real de cada um e o dever-ser como projeto assumido. A razão da vulnerabilidade de nossas instituições, que fragmenta a consistência externa entre os modos de intervenção e o contexto está em criar uma falsa correspondência entre a vida desejada e a prática não realizada.
Novas realidades exigem estruturas e organizações que lhes correspondam, mas também exigem coerência entre o passado e o presente com perspectivas de futuro. Ser novo não significa corresponder às necessidades do tempo, assim como ser velho não significa estar defasado. O desafio está em possibilitar a qualificação de ambas às partes no estabelecimento de relações. A postura neste momento histórico deverá ser de cautela e ausculta em todos os sentidos. Faz-se mister um sincero diálogo entre formador e formando, entre formandos de diversas etapas e entres os formadores. Acredito ser necessária uma freqüência maior de encontros entre os formadores e entres formandos que com responsabilidade e compromissos discutam juntos os caminhos para uma vivência fraterna e madura.


4. Formação inicial e continuada

A formação é processo que nos acompanha em toda a vida religiosa. O fim da etapa inicial não significa o fim da formação. Formamo-nos a cada dia e a cada momento podemos aprender que não sabemos muitas coisas e daí iniciarmos uma busca sincera e honesta em apreender o saber que não sabíamos. Uma verdade é clarividente: constata-se cada vez mais claramente que a formação inicial é muito artificial. Criam-se casas de formação, bem organizadas, protegidas e acompanhadas, para dar inicio a uma caminhada de consagração que não corresponde à realidade para a qual os formandos devem ser enviados: a vida real e desafiadora do mundo conflitivo da sociedade hodierna.
A formação para a Vida Consagrada precisa ser desafiadora. Seja o tempo que for consagrar-se em sempre se capacitar para doar-se sem reservas, quem não quer ou não é capaz de fazer isso, é porque ainda não encontrou o sentido profundo, o espírito daquilo que busca, ou anda enganado na sua busca. É necessário formar para o Reino de Deus no meio do mundo, em constante confronto com os desafios que ele traz.

5. Formação integral

Mais do que nunca urge aglutinar todos os esforços para construirmos uma formação abrangente e complexiva que coloque todo ser do ente em marcha de transfiguração. Por isso a formação integral é a que consegue unir e comungar toda a realidade da pessoa no pensar, no sentir e no atuar, de forma coerente, dinâmica e progressivamente plenificante. É a que leva a pessoa a caminhar com serenidade no tempo e assumir a realidade do presente com perspectivas e prospectivas. É o desafio de passar do processo de apropriação ou capitalização da própria vida para a capacitação e doação, de modo totalmente gratuito, na capacidade de desenvolver e potencializar os dons e virtudes que existem dentro de si mesmo.
A integralidade da formação para a consagrada exige um investimento profundo em espiritualidade, isto é, em sentido profundo de viver, ser e fazer. A espiritualidade é o sangue, a seiva que perpassa todas as dimensões da pessoa. Ela é que tem o poder de ligar, integrar, interagir, inteirar as mais divergentes realidades ou partes. Portanto, é urgente uma formação integral e esta passa pela redescoberta do sentido profundo da presença do Espírito na vida de cada pessoa, que leva, por sua vez a abrir-se a todos os seres com serenidade e veneração.

6. Questões finais

Após tudo que abordamos fica claro a necessidade de repensar não somente o estilo de formação e as exigências de cada etapa. Urge acima de tudo questionar as matrizes e matizes que utilizamos até o presente momento. É necessário verificar com cuidado o modo como organizamos nosso ambiente formativo, desde seu aspecto físico, programação, conteúdos. Porque se quisermos comunicação e comunhão, precisamos criar e distribuir tempos e espaços convergentes. Se quisermos contemplação e meditação, precisamos de quietude e silêncio. Se quisermos conhecimento e profundidade, precisamos de estudo e pesquisa. Assim antes de mudar é preciso saber aonde se deseja chegar.

Perguntas para aprofundamento do assunto:
1. Como podemos iniciar na nossa comunidade formativa ou outrem essa mudança de mentalidade?
2. Queremos dinamizar a formação nos moldes para chegar aonde? O que desejamos alcançar com nossos esforços (formandos e formadores)?


[1]Ver neste sentido, Manfredo Araújo Oliveira, Desafios Éticos da Globalização, São Paulo, Paulinas, 2001, pp. 53-166; Prof. Dr. Everaldo Cencon, Ser Discípulos num Tempo de Mudanças, In REB fasc. 268, Outubro/2008, pp. 948-961.
[2] Ver Moacir Casagrande, OFM Cap. In Convergência fasc. 413, ano XLIII, Julho/Agosto 2008, 468-489.
[3] RUBIO, Alfonso Garcia, O Encontro com Jesus Cristo Vivo, um ensaio de cristologia para nossos dias, São Paulo, Paulinas, 2001, 119-154.

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