quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A comunidade Joanina: desafios e intuições para uma renovação eclesial e pastoral.

A comunidade Joanina: desafios e intuições para uma renovação eclesial e pastoral.

No centro da comunidade joanina está a sua cristologia. Nesta transitam Cristo, o amor e o serviço como estrutura de toda realidade eclesial. A preocupação da comunidade é dupla, por um lado, assim como os Sinóticos, ela quer apresentar Jesus, mas por outro lado, é também deseja demonstrar que o fiel é um bem-aventurado por crer ser ter visto. “Jesus lhe disse: porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram” (Jo 20,29).
A cristologia joanina é marcadamente permeado pelos títulos cristológicos que constituem o núcleo fundamental da comunidade: Jesus é o Filho do Homem, o Messias e o Logos que o Pai enviou ao mundo para salvar todos os que nele crer. O evangelista deseja buscar elucidar que a compreensão do Jesus terreno (cristologia sárquica) está em unidade com o Cristo presente na fé da comunidade através do seu Espírito (Cristologia doxológica). Ana Maria Tepedino, em sua tese de doutorado, defende a idéia de que a comunidade utiliza uma mútua interpenetração ligando o Jesus joanino preexistente, terreno e exaltado com a introprojeção das imagens para revelar a identidade de Jesus.[1]
O Jesus do Quarto Evangelho (QE) não é ausente e muito menos um rei lá nas alturas, todo poderoso que habita numa luz inacessível. Jesus é um companheiro que caminha com os/as irmãos/as, um amigo que está presente nas horas de alegria, mas também na dor e sofrimento. A pessoa de Cristo se torna na comunidade uma realidade audível, visível e palpável pelo testemunho dos que crêem. Por isso a expressão o verbo se fez carne é uma afirmação paradigmática, pois diz daquele que veio morar conosco. Mas este que se encarnou, não é um ser qualquer ele é o Filho de Deus. A comunidade confirma isso ao dizer: vimos a sua glória (Jo 1,14). Ora, Jesus não é somente um profeta, ou um mestre como aqueles tantos presentes em Israel, Jesus é o Cristo, o enviado, o Messias. A Professora Tepedino já aponta essa realidade quando alude à tensão que a comunidade criou com a sinagoga ao afirmar Jesus como o Senhor e Salvador.[2]
A unidade da crsitologia sáquica e doxológica terá muita importância na vivência prática da comunidade, visto que a fé não é algo gnóstico, mas uma dimensão que perpassa toda a vida do fiel. Daí o Jesus do QE é alguém próximo da comunidade que caminha com ela.
Essa presença constante de Jesus na comunidade é sustentada pela presença atuante do Espírito Santo que provoca uma progressiva aceitação e reconhecimento de Jesus. O Paráclito lança os fìéis ao encontro de Jesus pela fé e pelo testemunho da comunidade, fazendo os/as discípulos/as experimentar a corporeidade carismática de Cristo no meio deles.
É pelo testemunho dos/as discípulos/as que a comunidade comunica a pessoa do mestre aos seus ouvintes. Por isso no evangelho o verbo crer e permanecer, que por sua vez trazem inevitavelmente uma forte exigência do testemunho estão muito presentes nos escritos joaninos. O verbo crer aparece em quase todo o evangelho; no todo ele é utilizado 98 vezes. Daí se pode perceber que o texto foi escrito com a finalidade de confirmar a fé em Jesus e animar os fìéis na caminhada neste mundo.
O verbo crer aponta à vocação, pois crer é comprometer-se, e não uma adesão apenas intelectual, mas sim existencial que envolve integralmente a pessoa.[3] Na comunidade joanina a experiência da fé desemboca no testemunho. Por isso, o discípulo amado é a testemunha fìel do evangelho. Disso denota que no QE o discípulo amado é anônimo, pois todo aquele que é fìel tornar-se discípulo amado de Jesus. Neste ínterim nasce uma grande novidade na eclesiologia joanina, pois no centro está a adesão e o seguimento ao mestre. Na comunidade o serviço e o amor têm a presciência diante da hierarquia entendida como poder e autoridade. Como afirma R. E. Brown, “a maior dignidade que se deve ambicionar é a de pertencer à comunidade dos discípulos amados de Jesus Cristo”.[4]
Neste sentido o testemunho é a expressão concreta de que a fé não consiste em algo puramente gonóstico, mas que implica um compromisso de vida daqueles que vivem a experiência do discipulado. Quem acredita no anúncio da comunidade ver Jesus pela ação do Espírito que guia e anima a comunidade; quem acredita ouve a palavra de Jesus por meio do serviço de amor ao qual o Paráclito incita os/as discípulos/as a viverem; por fim quem acredita permanece no amor e no serviço como testemunha do ressuscitado. Oxalá todos os que ocupam cargos eclesiásticos nas igrejas cristãs tivessem diante dos olhos essa convicção de que não é o título, mas o testemunho que garante a autêntica autoridade na Igreja.
É importante lembrar como já acenamos que o verbo permanecer assim com o verbo crer são centrais na mensagem joanina. O verbo permanecer aparecerá 90 vezes no evangelho. O permanecer denota que a fé é algo que envolve toda existência. Em 1Jo lemos que permanecer na palavra e nos mandamentos é condição para se viver na comunidade. “ Nisto reconhecemos que estamos nele. Aquele que diz permanece que nele deve também andar como ele andou.”[5] Portanto na vida dos fìéis que constituem a comunidade joanina a fé leva cada pessoa a envolver-se com o mestre. Quem se encontra com Jesus e segui seus ensinamentos permanece aberto a ele em todo tempo e lugar.
Nesta perspectiva o encontro com Jesus produz uma verdadeira unidade entre o Jesus histórico e a comunidade de fé, resultando numa experiência de salvação e esperança, onde fé e compromisso se fundem dando ânimo e força na caminhada eclesial. Este encontro com o Jesus eclesial marca a adesão e a continuidade da comunidade no seguimento de Jesus e na unidade da Igreja.
Na esteia do testemunho do amor e do serviço inerentes ao seguimento de Cristo, o QE é um sinal significativo do vivo testemunho eclesial em todos os tempos. A experiência do amor/serviço constitui o imperativo e o fundamento dos/as seguidores/as de Cristo. No evangelho a vivência do amor feita pela comunidade não é utopia nem teoria, mas algo concreto marcado pelo serviço no testemunho, na compaixão, na solidariedade e na fraternidade: “O que ama seu irmão permanece na luz, e nele não há ocasião de queda. Mas o que odeia o seu irmão está nas trevas; caminha nas trevas, e não sabe aonde vai, porque as trevas cegaram os seus olhos”.[6] O amor é o eixo que sustenta a fidelidade a Cristo. Os membros da comunidade para produzirem frutos devem permanecer no amor, unidos entorno da comunhão de fé e vida.
Com relação ao amor que permeia o QE, é importante saber que tal amor nasce do relacionamento fìlial de Jesus com o Pai, que se sustenta pelo amor mútuo dos dois, na unidade do Espírito Santo. Por isso esse amor não é fruto do medo. O amor aqui supera o medo. A comunidade joanina é gerada no amor e por isso o substantivo medo não faz parte da vida dela.[7] A única vez que aparece o termo é em Jo 20,19 na narração da aparição do ressuscitado. O amor, ao contrário, suscita uma vida de dinamismo e coragem no compromisso com Cristo. “No amor não existe medo, ao contrário, o perfeito amor lança para fora o temor, porque o temor implica um castigo, e o que teme não chegou à perfeição do amor”.[8]
O amor, desta forma, é a expressão máxima de incorporação a comunidade, quem vive o amor permanece fìel aos mandamentos e está livre para seguir a Jesus. É bom sempre lembrar que o amor é vivido como entrega, por isso compromete a pessoa integralmente.
Assim entende-se que mesmo sem ser do mundo a comunidade é enviada ao mundo e deve sofrer por amor, assim como seu mestre sofreu e foi rejeitado. Da mesma forma que Cristo não veio condenar o mundo mais salvá-lo os/as discípulos/as são chamados a ir ao mundo para apresentar Jesus de Nazaré como salvador da humanidade. Mas como veremos o mundo comportou-se hostil aos/as discípulos/as exatamente como fez com o mestre (Jo 1,10; 1Jo 3, 1).
A comunidade joanina sabia que tinha uma missão importante: de ser sinal da presença de Cristo no mundo, continuando a missão do enviado do Pai. Aqui se abre uma estrada que conduz até nós cristãos, filhos e membros desta comunidade cristã primitiva. O que uma comunidade que viveu a dois mil anos atrás poderá ensinar às comunidades de hoje? Será possível apresentar uma eclesiologia joanina que traga luzes aos modelos atuais de pastoral?
Penso que é possível apresentar uma eclesiologia joanina que ajude a construir uma Igreja aberta e acolhedora. Porém há alguns desafìos a serem superados tais como: a hierarquização da Igreja; o poder visto como status e não serviço e o formalismo catequético. Nestes e em outros problemas a comunidade joanina tem belas contribuições a oferecer-nos atualmente.
Quero começar pelo problema da hierarquia. Primeiramente é bom lembrar que a questão da hierarquia não é central em João. O QE não está preocupado com a estrutura de poder, pois segundo a compreensão joanina a comunidade é dirigida pelo Espírito. Nesta comunidade todos possuem a unção que vem do Pai e do Filho pelo Paráclito, para viverem unidos em comunhão. Portanto, na vida prática dos/as discípulos/as ninguém é visto como chefe, com pleno poder. Só Jesus pelo Consolador é quem guia a comunidade. Como Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir, os seus discípulos também devem ter como máxima autoridade o serviço e não o cargo. A comunhão na fé, no amor e no serviço unia a comunidade em torno do anúncio cristológico.
Todavia, dizer que no QE não existia hierarquia não se deseja declarar que ela não conhecesse estruturas ou que fosse anárquica. As relações eram realizadas no amor e no serviço, sem moralismo, mas com muito compromisso e fìdelidade. Assim a hierarquia, se é que podemos falar nestes termos, era medida pela intensidade do serviço aos irmãos. Talvez aqui se entenda porque não aparecem as instituições dos sacramentos em João. A eucaristia é remetida ao texto do lava-pés Jo 13, 1-15 e o batismo está unido a paixão máxima expressão do serviço. (Jo 20, 34). Desta forma o serviço e não o poder é uma das marcas fundamentais desta comunidade. Cabe-nos lembrar neste momento o comentário de R. E. Brown:

Como um ramo da comunidade joanina, nós, católicos nos sentimos satisfeitos com o fato de o papel pastoral de Pedro ser verdadeiramente querido pelo Senhor ressuscitado, mas a presença em nossas Escrituras de um discípulo a quem Jesus amava mais que a Pedro é um comentário eloqüente do valor relativo do cargo eclesiástico. O cargo de autoridade é necessário porque deve ser cumprida uma missão e a unidade deve ser preservada, mas a escala de poder em vários cargos não é necessariamente a escala de estima e do amor de Jesus. Nos dias de hoje, quando os católicos discutem sobre quanta autoridade deverão ter o papa, os bispos, os sacerdotes e até os leigos e quando os cristãos discutem se a mulher deveria ser ordenada ministra da eucaristia, a voz de João faz-se ouvir em advertência. A maior dignidade que se deve ambicionar não é nem a papal, nem a episcopal, nem a sacerdotal, a maior dignidade é a de pertencer à comunidade dos discípulos amados de Jesus Cristo.[9]
Como nos aponta R. E. Brown a unidade requerida no evangelho de João não repousa na autoridade entendida como poder, mas na fìdelidade do discípulo amado que não abandona seu mestre mesmo nas horas mais difíceis da vida. A ortodoxia a que devemos almejar é a que consiste em ser fìel a Cristo, permanecendo no seu amor, acolhendo os/as irmãos/as como o Senhor fez em toda sua vida. O poder pedrino é importante para garantir a visibilidade da unidade, mas todos nós somos iguais pela unção batismal, porque nascemos da mesma água e do mesmo Espírito. O papa, o bispo ou o sacerdote não é mais digno do amor do mestre do que os/as leigos/as das pastorais. Pelo batismo todos somos povo de Deus. “Este povo tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito como em seu templo.”[10]
As comunidades hierarquizadas com suas estruturas catequéticas dogmatizadas, muitas vezes, impossibilitam o avanço pastoral e a ação evangélica. As fórmulas rígidas, às vezes, ultrapassadas limitam a compreensão do conteúdo central da evangelização, que é Cristo. Falamos, em muitos momentos, mais das estruturas e instituições do que da mensagem da boa nova. É preciso ter a ousadia da comunidade joanina para superar o formalismo e abrir-se à inculturação das fórmulas e dos modos de apresentação da mensagem de Jesus.
A eclesiologia do QE pode contribuir muito no que tange a vivência do poder e da autoridade, porque numa comunidade, onde o Espírito Santo é o guia, as relações de poder e autoridade são vividas diretamente baseadas no serviço e no amor fìel ao Espírito e não no status de chefe, pois só existe um chefe, uma cabeça e um Senhor na Igreja. Talvez aqui se encontre o filão do caminho ecumênico, como também do diálogo com as diversas religiões. Pois os escritos joaninos nos ensinam a galgar espaços de inculturação que respeita o diferente e valoriza as sementes do evangelho presentes nas outras culturas[11]


BIBLIOGRAFIA.
BATTAGLIA, O. Introdução aos Evangelhos, Petrópolis, Vozes, 1984.
BLANK, Josef, O Evangelho Segundo João, 1ª Parte A, Petrópolis, Vozes, 1990.
BÍBLIA DE JERUSALÉM, 7º impressão, edição revisada, São Paulo, Paulus, 1985.
BORGES, Fantico Nonato Silva, (A questão da Inculturação presente no Quarto Evangelho – Trabalho Monográfico não publicado – 2008)
BROWN, R. E., A Comunidade do Discípulo Amado, São Paulo: Paulinas, 1983.
CONCÍLIO ECUMENICO VATICANI II, Contituição Dogmatica Lumen Gentium, 2ª ed., São Paulo, 1997.
FILHO, Manuel Bernadino de Santana, (Cristologias Sáquica e Doxológica do Quarto Evangelho – Trabalho Monográfico não publicado – 2008).
LEIPOLOT & GRUNDMANN, W. El Mundo del Novo Testamento, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1973.
MATEOS, J. & BARRETO, J. O Evangelho de São João, col. Grandes Comentários Bíblicos, São Paulo, Paulinas, 1989.
MEEKS, Wayne A., The Prophet-King, MoseTraditions and The Johannine Christology, Leiden E. J. Brilll, 1967.
PINAS, Romildo Henrique, (Crer e Confessar: movimento dinâmico cristológico – Trabalho Monográfico não publicado – 2008).
SANTOS, Bento Silva, Fé e Sacramentos no Evangelho de São João, São Paulo, Santuário, 1995.
TEPEDINO, Ana Maria. Espiritualidade e Ética: Jesus e a História da Comunidade Joanina: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1993.
WEILER, Lúcia, Fonte e Dinâmica do Mandamento do Amor Mútuo: uma releitura trinitária a partir da exegese e hermenêutica de Jo 15,9 Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica: Rio de Janeiro, 1992.


Autor: Pe. Fantico Nonato Silva Borges, CM

[1] Cf. TEPEDINO, Ana Maria, in FILHO, Manuel Bernadino de Santana, (Cristologias Sáquica e Doxológica do Quarto Evangelho – Trabalho Monográfico não publicado – 2008)
[2] Cf. TEPEDINO, Ana Maria. Espiritualidade e Ética: Jesus e a História da Comunidade Joanina: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1993, p. 167
[3] PINAS, Romildo Henrique, (Crer e Confessar: movimento dinâmico cristológico – Trabalho Monográfico não publicado – 2008).
[4] BROWN, R. E., A Comunidade do Discípulo Amado, São Paulo: Paulinas, 1983, p. 171
[5] 1Jo 2, 5-6
[6] 1Jo 2, 10-11
[7] Cf. WEILER, Lúcia, Fonte e Dinâmica do Mandamento do Amor Mútuo: uma releitura trinitária a partir da exegese e hermenêutica de Jo 15,9 Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica: Rio de Janeiro, 1992, p. 82
[8] 1Jo, 4, 18
[9] BROWN, R. E., A Comunidade do Discípulo Amado, São Paulo: Paulinas, 1983, p. 171
[10] Contituição Dogmatica Lumen Gentium, n. 9
[11] Borges, Fantico Nonato Silva, (A questão da Inculturação presente no Quarto Evangelho – Trabalho Monográfico não publicado – 2008)

Um comentário:

  1. Isso é o conteúdo original das comunidades cristãs primitivas... quando ainda não existiam católicos, orientais, protestantes, pentecostais, neopentecostasis... mas apenas comunidades da comunhão dos cristãos.

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