“IGREJA MISTÉRIO”
NA
CONSTITUIÇÃO
DOGMÁTICA “LUMEN GENTIUM”
As nações caminharão à sua luz (Ap 21,24)
Fazendo
memória do Concílio Vaticano II, após seus quarenta anos, o Conselho Nacional
do Laicato do Brasil realizará um seminário cujo tema é a “Constituição
Dogmática Lumen Gentium”. Criando esse espaço convoca o seu laicato para
entender, aprofundar e retomar os ensinamentos conciliares sobre a Igreja,
objetivando reacender a chama e o espírito de renovação do Concílio Vaticano II
a fim de que os ajude a perceber que este Concílio não foi um acontecimento
passado, mas o ponto de partida de toda ação eclesial, no presente e no futuro,
conforme se expressou o Papa Paulo VI em carta de 21/ 09/1966, dirigida ao
Congresso de Teologia pós-conciliar:
“A tarefa do Concílio Ecumênico não está
completamente terminada com a promulgação de seus documentos. Esses, como
ensina a história dos Concílios, representam antes um ponto de partida que um
alvo atingido. É preciso, ainda, que toda a vida da Igreja seja impregnada e
renovada pelo vigor e pelo espírito do Concílio, é preciso que as sementes de
vida lançadas pelo Concílio no campo que é a Igreja cheguem a plena
maturidade”.[1]
Estas palavras
ecoaram em grande parte da Igreja do Brasil e o CNLB atento a essa escuta
acolhe esse vigor e esse espírito conciliar à luz também das novas exigências
dos novos sinais dos tempos e recebe com entusiasmo a tarefa fontal do Concílio
Vaticano II.
O lugar
central das preocupações conciliares foi ocupado pela própria Igreja. Os dois
temas basilares sobre os quais se construiu a eclesiologia[2] do
Concílio foram: A Igreja como “Mistério” e a Igreja como “Povo de Deus”. Esta
reflexão se concentrará no capítulo I da Constituição Dogmática “Lumen Gentium”
que apresenta com riqueza o tema da Igreja “Mistério”.
1. O CONCÍLIO,
A IGREJA E O MUNDO MODERNO
“O povo que andava nas trevas viu
uma grande luz”(Mt 4,16)
O Concílio
Vaticano II marcou a entrada da Igreja no mundo moderno: o encontro da Igreja
com a humanidade,[3] que a
fez reafirmar sua aliança com a vida humana[4].
Por paradoxal que pareça esse encontro foi decisivo para que ela se encontrasse
consigo mesma. Até então a Igreja - desde os tempos da cristandade – exauria-se
em crise de identidade. Pois, todo “estranhamento” com relação à história
compromete o próprio sentido e a razão de ser da Igreja: na maneira de
entender-se a si mesma, e na maneira de entender sua relação com a história[5].
Daí, o Concílio ser recebido como uma lufada de “ar” do Espírito Santo a ponto
de ser denominado pelo Papa João XXIII como um “Novo Pentecostes” e pelo papa
Paulo VI “uma passagem do Senhor”[6]. A
Igreja ao assumir o desafio de “dialogar”
com o pensamento moderno é levada a buscar uma nova maneira de estar no mundo e
o pré-requisito básico é o seu “Aggiornamento”
que o Concílio procurou realizar ao propor o diálogo da Igreja consigo
mesma. Fruto desta opção foram os dois
documentos de fundamental importância: A Lumen Gentium e a Gaudium et Spes, que
tiveram grande influência na orientação e conteúdo dos demais documentos
conciliares[7].
A Igreja
necessitava de aggiornamento para
viver e anunciar o conteúdo da Revelação, perceber os sinais dos tempos,
responder evangelicamente aos desafios, muitos e variados, de cada época
histórica. Em homilia às vésperas do encerramento do Concílio, o Papa Paulo VI
esclarece os dois grandes eixos norteadores das preocupações da Igreja
conciliar: Como evangelizar o mundo
atual e como o homem
entende o Evangelho hoje.
“A Igreja interessa-se pelo mundo
moderno e sente necessidade de conhecer, de aproximar, de compreender, de
penetrar, de servir, de evangelizar a sociedade que a rodeia e, por assim
dizer, de a seguir nas suas transformações rápidas e contínuas (...) A Igreja
do Concílio ocupou-se muito do homem como ele se apresenta na nossa época(...)
o homem tal como é, que pensa, que ri, que trabalha, que espera sempre alguma coisa (...). Grandeza, beleza, mas também miséria,
orgulho”. E finalizando, diz ainda o Papa: “... para conhecer a Deus é preciso
conhecer o homem”.E mais: “Amar o homem (...) não como um simples meio, mas
como um primeiro termo da subida para o termo supremo e transcendente, para o
princípio e causa de todo o amor”[8].
O ponto de
partida desta renovação, deste rejuvenescimento diz o Concílio é Cristo. Cristo
é a Luz na qual a Igreja encontra sua autoconsciência, sua razão de ser.
Espelhando-se em Cristo, a Igreja procurará atualizar-se, renovar-se,
rejuvenescer: Ao Cristo vivo deve
corresponder uma Igreja viva (PauloVI)[9].
Cristo é o Verbo de Deus; é por Ele, é Nele que Deus fala ao mundo, que faz
história com os homens. É com Jesus, o Cristo, o Verbo Eterno que é Revelação
do Pai e Revelação do homem que a Igreja aprende a dialogar.
A renovação,
propugnada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, é, sem dúvida, uma profunda
renovação interior, da qual as reformas externas devem ser sinal. A novidade
maior do Concílio adverte, o Papa Paulo VI dirigindo-se aos Bispos da Itália[10],
“não são as mudanças exteriores, mas o modo
de considerar a Igreja”. Ao dizer isto o Papa estava consciente que o
Concílio, no fundo, estava removendo algo considerado intocável durante séculos:
superar uma etapa de profunda desistorização da fé e da Igreja. E iniciar uma
etapa histórica nova, sob o signo de uma consciência clara da historicidade da
fé, da Igreja e de toda reflexão teológica e eclesiológica[11].
Por isso, não mais fuga do mundo, mas presença evangélica atuante no mundo.
2. O CONCÍLIO
NASCE PASTORAL[12]
“Eu vim para
que todos tenham a vida e a tenham em abundância”(Jo 10,10)
Essa inserção
nas realidades do mundo caracteriza a novidade do seu agir: Ela quer realizar
aqui e agora, nesse dado momento histórico a sua missão salvífica em relação ao
mundo e ao homem como serviço à vida, serviço à comunidade dos homens[13].
Acentuando, então, a sua dimensão pastoral explicita o caráter dinâmico e eficaz
de sua presença preocupada e solícita com as realidades terrenas e deixando-se
guiar pelas mãos de Deus que investiga o segredo das coisas concentra sua
atenção no aspecto de Igreja-Mistério de Salvação.
Importa
salientar que a perspectiva pastoral identificou o Concílio desde a sua
abertura como se pode constatar no discurso inaugural do Papa João XXIII, no
dia 11-10-1962:
“Uma é a substância da antiga
doutrina do depositum fidei e outra é a formulação que a reveste: e é disto que
se deve, – com paciência se necessário – ter grande conta, medindo tudo nas
formas e proporções do magistério prevalentemente pastoral... Sempre a
Igreja se opôs aos erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade.
Nos nossos dias, porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da
misericórdia que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de
hoje mostrando a validez da sua doutrina que condenando erros... A Igreja
Católica, levantando por meio deste Concílio o facho da verdade religiosa,
deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de
misericórdia e bondade com os filhos dela separados”[14].
O impacto
deste pronunciamento do Papa foi surpreendente: a mudança no modo de falar e de
conceber a Igreja definiu o rumo do Concílio: de uma Igreja mestra, juíza, dona
da verdade, para uma Igreja mãe amorosa, compreensiva, humilde, dialogante...[15] A
pastoralidade deste Concílio está marcada por uma abertura inédita à criação, à
história e às realidades terrestres.[16]É
no meio desta história e desta criação que a Igreja recebe a missão de anunciar e estabelecer em todas as gentes o
Reino de Cristo e de Deus (LG 5). Vinculada à realidade histórica
incorpora-se no novo “Povo de Deus” reunido por Cristo: comunidade dos homens
que testemunha na história a Revelação de um Deus que ama e chama o seu “povo”
a fazer dessa história, uma História da Salvação. Pode-se afirmar que este
discurso“é, do princípio ao fim, uma só e contínua reflexão sobre o
condicionamento histórico do cristianismo e sobre a grande importância deste
dado para o acontecimento conciliar”[17].
D.Aloísio assim interpreta a orientação pastoral do Concílio:
É na sua dimensão pastoral que a
Igreja se abre às justas exigências do mundo de hoje (democracia, liberdade,
responsabilidade. (...),diálogo(...) direitos fundamentais da pessoa humana )
para ajudá-lo num espírito de doação total que é o serviço dos pobres. É a
pastoral que considera a maneira de pensar dos homens, a sua linguagem, o seu
modo de vida para apresentar o Evangelho de Jesus Cristo como mensagem que
liberta e plenifica o homem. É a presença crítica da fé no mundo de hoje, a
releitura da Palavra de Deus dentro das mudadas condições de nossos tempos.[18]
Ao apresentar
o novo modo de considerar a Igreja a
partir de sua natureza e de sua missão (LG 1), o Concílio na sua Constituição
Dogmática Lumen Gentium assume que a Revelação e a Igreja são realidades
acontecidas e constituídas na história e através de acontecimentos históricos concretos.
A exigência desse novo modo de sentir
a Igreja orientou a perspectiva pastoral assumida prioritariamente pelo
Concílio “que deseja ardentemente
iluminar todos os homens com a claridade de Cristo que resplandece na face da
Igreja”(LG 1). É Cristo, a luz das nações, o fundamento do “Mistério da
Igreja”. Ao descentrar a Igreja de si mesma o Concílio deu um salto: pastoral,
ecumênico.[19] Este
salto, ou seja, a mudança histórica conciliar pressupõe um novo paradigma de
compreensão: uma concepção, dinâmica, histórico-evolutiva da realidade do mundo
e, dentro dele, uma compreensão lúcida do caráter histórico do cristianismo e
da Igreja, e da historicidade constitutiva de toda eclesiologia[20].
As presentes condições do mundo tornam ainda mais urgente este dever da Igreja
(LG 1).
“A
Igreja, hoje mesmo está dando Jesus. Explica-mo, ensina-me a vê-lo, conserva
para mim sua presença. Dizer isto é dizer tudo. Que poderia eu saber de Jesus,
que vínculo haveria entre nós dois sem a Igreja?” (Henri de Lubac)
O Concílio
propõe-se explicar com maior rigor, aos fiéis e a toda a gente, a natureza e a
missão universal da Igreja (LG 1). A Natureza da Igreja é ser “sacramento” de
Cristo. Cristo é o “Sacramento” do
Pai, enquanto sinal: sensível, palpável e eficaz do plano divino (LG 1). A
Igreja é “sacramento”, enquanto chamada a traduzir em visibilidade histórica o
próprio desígnio de Deus, sacramentalizado na humanidade visível de Cristo.
Cristo é o sacramento fundamental e a Igreja é o sacramento geral derivado de
Cristo. A vocação profunda da Igreja é ser instrumento, da união íntima com
Deus e da unidade de todo o gênero humano.
O Concílio ao
entender a Igreja como “sacramento” inaugurou uma eclesiologia que supera a
compreensão de uma Igreja em termos de razão refletida e comprovada -
“sociedade perfeita”- , e passa a compreendê-la como “mistério” de unidade a
serviço do mundo. Ao reconhecer a presença de Deus nela que chama os homens à
comunhão entre si mediante a graça de Cristo - inter-relacionando ambas as
dimensões a visível e a invisível -, o Concílio quis propor a concepção de
Igreja em termos de experiência a partir da concepção de “mistério”. Essa
mudança do modelo eclesial hegemônico anterior ao Concílio que se caracterizava
por uma estrutura estática, na sua doutrina e disciplina, é, saudada por muitos
eclesiólogos católicos como uma abertura para a Igreja encontrar o caminho de
sua “sacramentalidade”. Assim Rufino Velasco:
“O concílio abre caminho de uma
Igreja entendida como “instituição”, como meio de acesso dos homens a Deus,
para uma Igreja entendida como “mistério”, isto é, “sacramento” que veicula o
acesso de Deus aos homens. Neste sentido, Cristo é “Sacramento”, e a Igreja o é
“em Cristo”.[21]
A Lumen
Gentium ao definir a natureza sacramental da Igreja está assumindo o sentido
patrístico de sacramento entendido como o “mysterion” do Novo Testamento,
referido ao “mistério de Deus, que é Cristo” (Cl 2,2) e que foi traduzido pelos
Padres da Igreja por “sacramentum”.[22]A
Igreja é “sacramento” quando através dela transparecem historicamente as
realidades invisíveis, evangélicas, que está chamada a veicular; ela é
participante da História da Salvação. A Igreja brota do desígnio amoroso do Pai
concretiza-se na Encarnação Redentora do Filho, completa-se na ação
santificadora e rejuvenescedora do Espírito Santo. O Verbo feito Carne (Jo
1,14) é, pois, a fonte que acentua a noção fundamental da Igreja “Mistério”,
uma realidade única e complexa na qual se fundem dois elementos, o humano e o
divino (LG 1). A Igreja é mistério: lugar onde é revelado o projeto salvífico
de Deus realizado em
Jesus Cristo. A Igreja é acesso ao conhecimento e à
participação neste mistério, espaço de participação nessa salvação.
A verdadeira
realidade da Igreja só pode ser vislumbrada à luz da fé. A sua inteligibilidade
não vem de sua condição de sociedade perfeita, mas de ícone da Trindade, em sua
realidade de comunhão interpessoal, solidariedade mútua, inter-relação. O Pai
envia Jesus para reunir o Povo de Deus disperso, o Espírito é o começo da nova
criação. A Trindade congrega continuamente a Igreja à sua imagem nesta nova
criação[23].
Vem da Trindade, vive da Trindade, caminha para a Trindade.[24]
Quando se fala
do “mistério” da Igreja, costuma-se dizer, e o próprio Concílio disse (LG 8),
que isto significa que a Igreja é uma “realidade complexa”, constituída por um
elemento humano e outro divino, por uma dimensão visível e outra invisível.
Duas dimensões que por sua própria razão de ser não podem ser separadas, mas
cuja relação mútua não se costuma precisar[25].
Não é o mesmo que reduzir a concepção de mistério às verdades sobrenaturais que
estão acima da razão, nem a uma realidade ‘inacessível’de Deus, à qual o homem
procura se achegar por diversos caminhos. O Concílio na Lumen Gentium deslocou
o sentido de mistério, encerrado na eclesiologia anterior numa categoria
a-histórica para a vivência concreta do mistério da Encarnação. A aplicação à
Igreja dessa concepção geral do mistério foi apresentada por Paulo VI em sua
alocução inaugural da segunda sessão do Concílio:
“A Igreja declarou o Papa, é “ um
mistério”. É uma realidade imbuída da presença oculta de Deus.Está, por
conseguinte, na própria natureza da Igreja manter-se sempre aberta a uma nova e
cada vez mais ampla exploração”.[26]
D. Aloísio Lorscheider assim
explicita a concepção de mistério no capítulo primeiro da Lumen Gentium:
“No
mistério da Igreja devemos distinguir dois aspectos: divino, sobrenatural um;
humano outro.
1.O aspecto divino, sobrenatural: É o
mistério do Verbo Encarnado em toda sua profundidade: Deus e Homem; Eterno e
temporal; infinito e limitado. Na base da Igreja está o Verbo Encarnado
Redentor, o Filho Único, o bem amado, que está no seio do Pai (Jo 1,18).
Permanecendo no seio do Pai, o Filho, o Verbo se fez carne e colocou a sua
tenda entre nós (Jo 1,14). A partir deste seio, Ele, o Verbo, nos revela o Pai,
a Si mesmo, e o Espírito Santo (Jo 3,11; Mt 11,27).
2.O aspecto humano: A Igreja continua o
Verbo Encarnado Redentor. Encarna-se nas diferentes culturas, nos diferentes
povos, nos diferentes ritos; peregrina
com os homens na fé (não possui a visão, não conhece claramente a solução
de todos os problemas, deve procurar, refletir, meditar, ouvir os outros,
sempre atenta às sementes de verdade que Deus espalhou pelo mundo inteiro,
também nas religiões do mundo; ela é posta à prova: a perda de Jesus no templo
é muito elucidativa; a atitude de Maria que conservava todas estas coisas no
seu coração e as meditava é um exemplo para a Igreja), na esperança (ela geme esperando ansiosamente a libertação: Rm
8,19-25), na caridade (que é serviço no sentido de Fl 2,6-8), sempre vigilante à
espera do esposo para as bodas (Mt 25,1-13), em crescimento, o grão de mostarda
(Mt 13,31s); o pequeno rebanho (Lc 12,32). Cresce visivelmente por virtude
divina; em contínua tensão pensando nas coisas do alto (Cl 3,1s)”. [27]
A inspiração
que enriqueceu a visão rica e profunda da Igreja como “mistério” é contribuição
das tradições bíblicas, orientais e patrística. Chama atenção também o uso
intenso e constante na Lumen Gentium de citações bíblicas o que manifesta a
importância da Revelação para a vida da Igreja e a história dos homens. A
Palavra de Deus na Bíblia volta a ser a “alma da teologia e da pregação”(DV 6) ,
o que caracterizou a chamada volta “às fontes da fé”.
4. O MISTÉRIO EM SUA SIMBOLOGIA
“É
grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja”(Ef 5,32)
O capítulo I que trata do mistério da Igreja
é construído em torno da Bíblia, notadamente do Novo Testamento. No ‘Corpus
Paulinum’ o mistério por excelência não é tanto Deus na sua natureza essencial
ou os conselhos da mente divina, mas, sobretudo, o plano divino da salvação
quando vem a realizar-se concretamente na pessoa de Cristo[28].
É nas cartas de São Paulo –, quando esclarece a natureza da Igreja que ele
apresenta quase que exclusivamente por imagens - que o termo “mistério” (1 Cor
15,51; Cl 1,26.27;2,2; 4,4 e Ef 1,9;3,3.4.9;5,32; 6,19) adquire para o Novo
Testamento todo seu sentido.
Ao definir a
Igreja como “mistério” o Concílio lançou mãos de categorias que manifestam a
mais profunda realidade da Igreja – o mais importante constitutivo do seu ser –
que é o divino dom de si mesmo. No citado discurso de abertura do Papa João
XXIII ele já a descreve por imagens que funcionam como símbolos: ‘esposa de
Cristo’, ‘mãe amorosa’... Isto equivale dizer que as imagens falam
existencialmente ao homem, encontram eco nas profundezas do seu psiquismo e
focalizam de um modo novo a sua experiência[29].
O mistério da comunhão do homem com Deus exclui a possibilidade de partir de
conceitos claros e unívocos ou de definições na acepção da palavra. Entre os
instrumentos positivos para iluminar os mistérios da fé, o Concílio considerou
primeiramente as imagens.
“O resultado mais significativo
do debate foi a persuasão profunda de que a Igreja, nos seus dois mil anos, foi
descrita não tanto mediante definições verbais quanto à luz de imagens. A
maioria das imagens é, por certo, bíblica.O valor teológico das imagens foi
vigorosamente afirmado pelo Concílio. Da noção que se deve começar por uma
definição Aristotélica, simplesmente não se tomou conhecimento.Em seu lugar foi
proposta uma análise bíblica do significado das imagens[30].
Esse uso das
metáforas bíblicas pelo Concílio está a serviço da compreensão da Igreja como
“mistério” que, não só sugere que ela transcende incomensuravelmente todos os
conceitos e formulações humanos, mas retoma uma eclesiologia simbólica Bíblico-Patrística: A Igreja é o
Povo de Deus, a Igreja é o Reino já presente em mistério, a Igreja é o Corpo de Cristo, a Igreja é o
rebanho, a Igreja é a vinha, a Igreja é o templo, a Igreja é a mãe, a Igreja é
a esposa, que é muito sintomática de uma eclesiologia aberta e plural que a
concepção de Igreja como “mistério” de salvação induz e favorece. Estas várias
imagens, sem contradizer-se diretamente, realçam diferentes aspectos e funções,
insinuando a diversidade de prioridades e metas.
O Concílio
concentrando sua atenção mais no aspecto de Igreja-Mistério de Salvação na
dimensão da história dos homens - sem rejeitar as outras formas de expressão –
elegeu como a que melhor manifesta o dinamismo de sua natureza sempre em
missão, sempre um projeto que deve buscar entre os homens a realização do Reino
de Deus a imagem de Igreja “Povo de Deus”. Esta imagem contempla de forma
especial, o seu novo modo de presença no mundo. O campo de ação da Igreja,
sendo o mundo dos homens, inclui a todos e a sua missão será a missão de todos
os batizados. Portanto, como mistério de comunhão e de unidade ela se propõe
uma comunidade de batizados onde todos participam a seu modo do múnus
sacerdotal, profético e real de Cristo – realizam na Igreja e no mundo, na
parte que lhes compete, a missão de todo o povo Cristão (LG IV/31). Esta
novidade restaura a igualdade fundamental proveniente do Batismo, a comum
dignidade, a comum missão de todos os seus membros e recupera de modo
surpreendente a condição eclesial dos cristãos “leigos”: O Apostolado dos
leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. Por isso
esforcem-se os leigos com diligência por conhecer mais profundamente a verdade
revelada e peçam incessantemente a Deus o dom da sabedoria (LG IV/35).
A Lumen
Gentium (LG 8) ao dizer que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica,
reconhecendo, ao mesmo tempo que fora dela pode-se encontrar realmente vários
elementos de santificação e de verdade que, como dons próprios da Igreja de
Cristo, impulsionam para a unidade Católica
abre suas portas ao Ecumenismo. A concepção de Igreja, que se desenvolve
depois do Concílio, valoriza sua face espiritual e misteriosa. Deixa-se de lado
a insistência unilateral sobre o aspecto visível, jurídico, organizativo. Ela é
percebida mais como sinal, um anúncio do projeto de salvação para toda a
humanidade do que como aquele lugar necessário fora do qual as pessoas se
condenam[31].
À dimensão
pastoral assumida pelo Concílio se devem os méritos do retorno dessa
metodologia eclesial, cuja riqueza do símbolo na ação evangelizadora, típica
das primeiras comunidades cristãs, permite, quando atualizada e em sintonia com
as diversas experiências de inculturação, o enraizamento nas diversas culturas
do anúncio do Reino de Deus (LG 5) que foi a preocupação básica de Jesus e é a
missão da Igreja.
“A
estes quis Deus tornar conhecida qual é entre os povos a riqueza da glória
deste mistério, que é Cristo em vós, a esperança da glória”(Cl 1,27).
.
CONCLUSÃO
A Igreja é o que de mais divino e mais humano
opera eficazmente no mundo, como fermento, luz, sal, para a glória do Pai e a
felicidade do gênero humano.(A.Lorscheider)
Com o que
ficou dito poder-se-á compreender com que profundidade no capítulo I da Lumen Gentium
se refletiu sobre o mistério da Igreja. Este novo modo de sentir a Igreja de
uma maneira peculiar e inovadora traz consigo incalculáveis conseqüências.
·
Porque animada pelo Espírito do Ressuscitado, a
Igreja é viva e dinâmica, é comunhão com os irmãos na fé, comunhão solidária
com os pobres. Mistério que é o do Cristo pobre e sofredor: “Como Cristo
realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim também, para
poder comunicar aos homens os frutos da salvação, a Igreja é chamada a seguir o
mesmo caminho” (LG 8).
·
Outra é, de que não existe Igreja à margem da fé
do povo de Deus: aos que acreditam em Cristo, o Pai quis convocá-los na santa
Igreja (LG 2). “Assim aparece a Igreja inteira como povo congregado na unidade
do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4). A imagem da Vinha expressa o
mistério do Povo de Deus.
·
Também
convém destacar a ternura da Igreja, sua face materna ao acolher a todos como
Filhos “amados e eleitos do Pai” (1Ts 1,1), sem acepção de pessoas, a fim de
que todos possam compreender a caridade de Deus e de Cristo para com os homens,
amor que excede todo conhecimento (LG 6) a ponto de reunir em seu seio os
pecadores. Por isso mesmo, ao mesmo tempo, que, é santa, precisa também de
purificação, e sem descanso prossegue no seu esforço de penitência e renovação
(LG 8).
Assim, toda a importância da Igreja deriva de
sua ligação com Jesus Cristo, porque em seu ministério Galilaico-judeu se
cumpriu o desígnio do Pai de manifestar o Reino prometido há séculos: “os
tempos estão cumpridos e o Reino de Deus está iminente”(LG 5). Continuando a
missão de Jesus de Nazaré, a Igreja continua também o seu peregrinar entre as
perseguições do mundo e as consolações de Deus. Anunciando a cruz e a morte do
Senhor até que ele venha, a Igreja encontra força no poder do Senhor
ressuscitado para revelar ao mundo, com fidelidade, embora entre sombras, o
mistério de Cristo, até que por fim se manifeste em luz total (LG 8).
Em síntese o
“mistério” da Igreja é o mistério da Manjedoura de Belém, da Epifania, do
Batismo no Jordão, da Proclamação do Reino, da Cruz, do Túmulo vazio, da
Ressurreição, do Pentecostes, da Trindade, da Comunhão e da Unidade, isto é, é
o “MISTÉRIO DE CRISTO”.
Este Concílio
Vaticano II que nasceu de uma experiência espiritual e foi recebido como um
“Novo Pentecostes” é uma inspiração para que o laicato do Brasil se repense
como Igreja, repense a sua comunidade, e sua vida pessoal, em função do bem do
mundo, e de toda a humanidade que aspira pela justiça e paz.[32]
Recordando o
apelo do Papa Paulo VI para atualizar o vigor e o espírito do Concílio, citado
no início deste artigo, podemos fazer nossas as palavras de Rufino Velasco:
“Não se trata apenas de entender e aprofundar
os documentos conciliares trata-se de continuar o Concílio, de fazê-lo avançar
para a mudança histórica começada por ele. Não se pode ser fiel ao Concílio a
não ser indo para além dele, em inovação e criatividade permanente.
Decididamente, o Vaticano II foi um acontecimento do Espírito, desse Espírito
que continua“criador” de sua Igreja, e que continua “fazendo novas todas as
coisas”[33].
Tânia Maria Couto Maia[34]
BIBLIOGRAFIA
-
Compêndio do Vaticano II- Ed. Vozes, RJ- 1968
-
Constituição Dogmática sobre a Igreja – Lúmen Gentium, 11ª edição, Ed.
Paulinas, 1966
-
Concilium / 208 – 1986/6 Ed. Vozes, RJ. 1985
-
Dulles, A. A Igreja e seus modelos, Ed. Paulinas, SP 1978
-
Gonçalves,P. e Bombonatto,V.: Concílio Vaticano II- Análise e Perspectivas Ed.
Paulinas 2004
-
Libânio, J.B. – Igreja Contemporânea: Encontro com a modernidade, Ed. Loyola,
SP 2000
-
Lorscheider,A.-Idéias Fundamentais do Concílio E. Vaticano II, Santo Ângelo,
RS, 1968
-
Lorscheider,A.- O Mistério da Igreja no Vaticano II – Teologia I, Santo Ângelo,
RS 1965
-
Velasco Rufino. – A Igreja de Jesus – Ed. Vozes, RJ- 1995
TEXTOS (mimeo)
Batista,
Libânio: Concílio Vaticano II: Abordagem pastoral. ITEP, Semana Teológica - CE
-2003
Ernando,
Paulo: Reacendendo a chama do Concilio Vaticano II-ITEP, Semana Teológica, CE,
2003
Kosubeck,
Miguel: A Igreja do Vaticano II- Semana Teológica do ITEP – Fortaleza, Ce 2003
[1] Papa Paulo VI in Kloppenburg, B.: Introdução Geral aos
Documentos do Concílio Vat.II, p.7 - Ed. Vozes 1968 .
[2]
Eclesiologia é a abordagem da dimensão eclesial da fé cristã
[3]
Humanidade aqui tem o sentido de reconhecimento dos valores humanos =
humanismo.
[4] Papa
Paulo VI, Discurso final do Concílio em 7 de Dez. de 1965 in Kloppenburg, B.:
op.cit , p.7
[5] Velasco,
Rufino: A Igreja de Jesus – p.234 e 238 – Ed. Vozes, 1995
[6] Citado
por Lorscheider, A. in Idéias Fundamentais do Concílio.Vat.II – Santo Ângelo,
RS - 1968
[7] Velasco
Rufino: A Igreja de Jesus – p.234 – Ed. Vozes, RJ, 1995
[8] Papa
Paulo VI – Homilia em 7/12/1965 in artigo de Ernando Paulo N. Barbosa – ITEP –
Fortaleza, 2003
[9]
Lorscheider, A.; Idéias fundamentais do Concílio Vaticano II, Santo Ângelo, RS,
1968
[10] Papa
Paulo VI, citado por Kloppenburg, in Introdução Geral aos Doc. do C. Vat.II,
p.8 – Vozes, RJ, 1968
[11]
Velasco, Rufino: op.cit. p. 234
[12]
Libânio, JB in artigo: Vaticano II: Abordagem pastoral, p.1 – Semana Teológica
do ITEP – Ceará, 2003
[13] Cf.
Lorscheider, A. in Gonçalves, P. e Bombonatto, V.:Concílio Vaticano II –
Análise e Perspectivas p. 7, Paulinas, 2004
[14] Papa
João XXIII in Kloppenburg: Intr. Geral aos Doc. do C. Vaticano II , p.8
-Ed.Vozes 1968 (O grifo é nosso)
[15] Cf. Lorscheider, A. in op. cit. p.5
[16] Cf. Bingemer.M.C. in Gonçalves, P.
e Bombonatto, V. – op. cit. p.192
[17] Joseph
Ruggiori in Velasco, R. op. cit. p.236
[18]
Lorscheider,A. in Grandes Linhas Eclesiológicas do Concílio Vaticano II:
Novidades - in Revista Kairós, p.45 Dez.2004
[19] Cf.
Libânio, JB op.cit, p8
[20]
Velasco,R. op. cit, p.236
[21]
Velasco,R. op. cit.,p 246
[22]
Velasco,R. op.cit. p 244
[23] Cf.
Igreja, Mistério de Koinonia,,p. 62-64 in artigo de Mikael Kosubeck – ITEP –
Fortaleza, 2003
[24]
Cf.Libânio, J.B. op.cit, p.8
[25]
Velasco,R. op. cit., p. 245
[26] Citado
por Dulles, A.. op cit p.15
[27]
Lorscheider,A. in Curso sobre a Constituição Dogmática Lumen Gentium, Santo
Ângelo, RS- 1965
[28]
Dulles,A.: A igreja e seus modelos,p.14, Ed.Paulinas, 1978
[29] Ibidem, idem
[30] G. Wiegel, in Dulles.A: Op. cit.
p.16
[31]
Libânio,J.B. – Igreja Contemporânea: Encontro com a Modernidade, p.95 -Ed. Loyola, SP 2000
[32] Cf. Catão, F. in Gonçalves, P. e
Bombonatto V. in op. cit. p.106
[33] Velasco, R., op. cit. p 239
[34] Casada, mãe de cinco filhos já adultos, Téologa,
professora de Bíblia desde 1984 do Instituto Teológico e Pastoral do Ceará,
ITEP, da Escola de Pastoral Catequética, presta assessoria ao CEBI, faz parte
da atual Comissão de Formação e é membro nato do CNLB.
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