A relevância do VII capítulo da Lumen Gentium.
1.1 O
itinerário da inclusão da Escatologia na Lumen gentium
O debate concilar sobre o VII capítulo deu-se no
dia 11 de julho de 1964.
Ainda na segunda seção conciliar o tema da
escatologia não havia entrado em pauta. O esquema da Lumen gentium até aquela seção conciliar constava de 81 páginas e
onze capítulos, os quais nada falavam sobre a índole escatológica da Igreja. O
primeiro esquema constava destes capítulos: De
Ecclesiaemilitantis natura; De membrisEcclesiaemilitatiseiusdemquenecessitate
ad salutem; De episcopatu ut supremo gradusacramentiOrdiniset de sacerdotio; De
episcopisresidentialibus, De statibusevangelicaeacquirendaeperfectionis; De
laicis; De Ecclesiaemagisterio; De auctoritate et oboedientia in Ecclesiam; De
relationibusinterEcclesiae et Statum; De
necessitateEcclesiaeannuntiandiEvangeliumomnibusgentibus et ubiqueterrarum; De
oecumenismo[1]. Em todos eles não se encontram referencias
explícitas sobre a escatologia da Igreja.
Esse primeiro esquema foi louvado por alguns e
violentamente criticado por outros: “apresentava, diziam, uma Igreja
excessivamente jurídica, institucional, externa, clerical e triunfalista, sem
acentuar bastante o mistério da vida divina, do dinamismo sobrenatural e da
união com Cristo”[2]. O texto foi acusado de ser bastante bíblico,
cristocêntrico, pastoral, maternal, pouco missionário, e nada aberto às outras
formas de vida e cultura. Também se dizia que era um texto pouco ecumênico e que
não estava adaptado com a mentalidade moderna. Em resumo faltava o espírito da
caridade cristã.[3]
Um novo esquema foi redigido entre a segunda e a
terceira seção, no chamado período internacional. A modificação ocorreu na
divisão e ordem dos capítulos. Assim os onze capítulos do esquema anterior
deram lugar a oito, que se apresentam assim: 1. O mistério da Igreja; 2. O povo
de Deus; 3. A constituição hierárquica da igreja; 4. Os leigos; 5. A vocação
universal à santidade na Igreja; 6. Os religiosos; 7. A índole escatológica de
nossa vocação e nossa íntima união com a Igreja celeste; 8. A Bem-aventurada
Virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja. Este último esquema
agradou a maioria, pois abrangia uma reflexão profunda sobre toda realidade da
Igreja em suas estruturas internas.
Mas o que levou, então, os padres conciliares a
tomar uma posição diferente daquela contida na primeira estrutura da Lumen gentium? Há teólogos comentadores
do Concílio (Candido Pozo, Boaventura Kloppenburg, entre outros), que defendem
a introdução deste novo esquema a uma vontade expressa do Papa João XXIII, que
foi bem defendida por seu sucessor, de que a Igreja deveria abrir-se ao mundo.
Já a inclusão do VII capítulo, foi um pedido
expresso de João XXIII, que confiara ao Cardeal Larraona[4], auxiliado por uma comissão especial, o encargo
de elaborar umtexto em que apontasse uma íntima relação entre a Igreja
peregrina e o culto dos santos, como também a oração aos fiéis defuntos.
A morte de João XIII em 1962, não pôs fim a esse
ideal. O Papa Paulo VI, que foi uma figura singular no desenvolvimento do
Concílio, não excitou em aprovar prontamente a decisão, de seu predecessor e,
por conseguinte, o texto da comissão.
Aasim durante a seção plenária de março de 1964 foi instituída uma
subcomissão encarregada de rever o texto e enquadrá-lo no contexto e estilo da De Ecclesia.
O texto da subcomissão foi apresentado com quatro
parágrafos para ser discutido na terceira seção do Concílio em 1964. O primeiro
apresentava a índole escatológica da nossa vocação na Igreja: nele se exprimia
a tendência da nossa vocação escatógica que começa aqui e culmina no céu. Já o
segundo expressava a comunhão entre a Igreja celeste e a Igreja peregrinante:
nele o texto salientava que a nossa morte não rompe a unidade entre as
realidades eclesiais (Igreja peregrina e a Igreja celeste). O terceiro traz a
relação da Igreja peregrina em união com os Santos: neste ponto a reflexão
valoriza muito a intercessão poderosa dos santos e a oração pelos mortos. O
quarto e último falava de algumas disposições pastorais: neste contexto o
esquema aponta alguns perigos e exageros que seguem o culto aos santos.
O mencionado texto apresentado pela comissão para
discussão na aula conciliarproduziu muito debate. O cardeal Ernesto Ruffini,
Arceb. de Palermo, na Itália classificou o texto de piedosíssimo no tocante a
exposição da doutrina sobre os novíssimos e disse que nele se omite, quase
completamente, uma posição sobre o inferno[5].
O cardeal IgneceZiade, Acerb. Maronita de Beirut,
no Líbano, faz uma intervenção valiosa ao colocar a necessidade de uma maior
presença pneumatológica na Lumen gentium.
Ele alega que não é possível falar de índole escatológica da nossa vocação sem
referência a missão do Espírito Santo. Elesalientou que para os Orientais um
capítulo de escatologia sem uma clara missão do Espírito é igual a uma liturgia
sem epíclese ou anáforas, na qual se apresentaria a missão do Filho, tocaria um
pouco no papel do Pai, mas nada se
falaria do Espírito Santo. Esse capítulo sem um autêntico aceno ao papel
Espírito não poderia ser aceito pelas Igrejas Orientais[6].
Também é salutar a intervenção do bispo
alfredAncel, auxiliar de Lião, na França, ao salientar que a índole
escatológica de nossa vocação deve manifestar-se na nossa vida cotidiana, em
todas as nossas obras, principalmente de duas maneiras: por meio das virtudes
teologais: fé, esperança e caridade, que nos impinge a agir, buscando os
valores eternos; depois por meio da consciência de que a índole escatológica de
nossa existência faz-nos trabalhar sem nos tornarmos escravos das estruturas e
ocupações.
Após o fim de todos os debates e mais de 17
intervenções encerraram-se as reflexões acerca do VII capítulo da Lumen gentium que foi aprovado por quase
todos os 2.204 padres conciliares presentes na octogésima primeira congregação
geral do Concílio em 16 de setembro de 1964.
1.2 POR QUE UM CAPÍTULO DE ESCATOLOGIA NA CONSTITUIÇÃO
SOBRE A IGREJA.
Como ponto de partida, queremos salientar, no
início desta pesquisa, a importância que teve a inclusão do tema sobre a
escatologia para toda a Constituição Dogmática Lumen gentium. Não é nosso interesse tratar aqui da penetração do
VII capítulo em toda Constituição, mas poderia deixar de registrar a relevância
que teve a escatologia em todo o documento sobre a Igreja. A escatologia, como veremos ao longo deste
trabalho, não é apêndice ou uma reflexão justaposta dentro do horizonte
conciliar, ela representa parte de um projeto maior que tem como finalidade
unir, numa mesma reflexão, a Igreja como mistério e sacramento da Salvação com
a realidade concreta da vida dos fiéis. A finalidade é demonstrar que a Igreja
visível nas suas estruturas é sinal e instrumento que apontam à vida nova da
comunidade cristã.
É importante salientar, neste itinerário
histórico, que o VII Capítulo, sobre a índole escatológica da Igreja, não estava
presente no primeiro esquema da De
Ecclesia, apresentado pela comissão preparatória. A inclusão foi fruto de
um amadurecimento do horizonte teológico conciliar. O teólogo RiundorIgnacio,
assim como Boaventura Kloppenburg defendem a tese de que ainclusão do capítulo
escatolágico, na Carta Magna De Ecclesia
condiz com avontade do Papa João XXIII, que desejava que na reflexão sobre a
Igreja se fizesse referências a temas como: o Culto dos Santos e a comunhão da
Igreja peregrina com a Igreja celeste[7].
Assim a inserção do caráter escatológico da Igreja
aponta parauma tomada de consciência dos Bispos em perceberem na natureza e na
missão da Igreja uma tensão escatológica. Tal índole escatológica projeta a
Igreja na história humana como instrumento de salvação; como sinal sacramental
e visível da presença da graça na história atual. Por causa disso os bispos
decidiram criar um capítulo inteiro sobre escatologia e colocá-lo dentro do
esquema De Ecclesia.
Todavia, não foi fácil essa inclusão. A primeira discussão
acerca do VII capítulo se deu em meio a esclarecimentos e propostas dos bispos
presentes, na III seção ordinária de 1964, onde se discutiu, entre outros, os detalhes sobre
a conclusão da De Ecclesia. Para
entendermos melhor isso, cabe-nos voltar um pouco para recordar a valiosa
contribuição do Cardeal Suenens[8] na Congregação geral n°33 de 4 de dezembro de
1962. Seu pronunciamento marcou muito o itinerário do Concílio.Ele buscava
organizar um plano harmônico (RatioipsiusConcilii)
para todo o Concílio. Seu projeto consistia em apresentar a Igreja como luz das
nações (ecclesiaLumen gentium),
dividindo o tema sobre a Igreja em dupla vertente: como Igreja ad intrae como Igreja ad extra[9].
Segundo o esquema do Cardeal Suenens, a Igreja,ad intra, abordaria temas como: a
natureza da Igreja, seuofício ou missão. A Igreja,ad extra, seria explicada em tríplece diálogo: com os fiéis, com
irmãos separados e com o mundo moderno.
Essa proposta agradou muito a todos os bispos, chegando a influenciar
diretamente a formulação das duas principais constituições: aLumen gentium e a GaudiumetSpes[10].
No esquema do Cardeal, que agradou muito aos
Padres, a escatologia ainda não sefazia presente, mas, como veremos mais
adiante, já aparecem elementos que tornam necessária uma abordagem escatológica
na Lumen gentium, como parte essencial da Constituição.
A própria localização do VII capítulo entre a
vocação universal a santidade, a vida religiosa e a santíssima Virgem Maria,
demonstram a centralidade da escatologia em todo o esquema da Constituição.
A proposito da importância do VII capítulo na
estrutura da Lumen Gentium é
relevante lembrar a contribuição do Cardeal Giovanni Urbani, patriarca de
Veneza, na Itália, que afirma satisfação para com o texto apresentado,
sobretudo por perceber nele um caráter eminentemente cristológico e
eclesiológico, tão relevante à estruturação de todo o horizonte conciliar[11].
Desta forma fica evidente que com a incisão do
tema escatológico na Lumengentiumos padres conciliares propõem uma
visão escatológicaaberta ao mistério, unida a um contexto sacramental, sem
distanciá-la e isolá-la do mundo real, como acontecia anteriormente nos
tratados de escatologia. A escatologia dentro da eclesiologia não somente
revitalizou a Igreja como faz justiça à sua missão e natureza escatológica. A
escatologia unida à eclesiologia torna mais consciente a íntima união que se
processa pelo batismo em cada fiel com Cristo.
1.3 A escatologia do VII
capítulo: superação do esquema juridicista e apologética da Igreja.
Desde início do Concílio muitos temiam que ele se tornasse
uma espécie de “Sínodo Romano”. Que valorizasse os velhos esquemas apologéticos
pós-trento: ou seja, de defesa da fé e aplicação de anátema. Como podemos
confirmar nos relatos de Boabentura Kloppenburg, o primeiro esquema apresentado
da Lumen gentium, privilegiava tal
posição[12]. Algum, como o bispo de Borogan, nas Filipinas,
Vicente Reyes, defendia a ideia da Igreja triunfante e eram defensores do
esquema juridicista da Igreja.
Todavia, a maioria dos bispos tinha consciência de
que os anátemas de Trento já não respondiam as inquietações da modernidade. Não
adiantava falar em tom puramente apologético e autoritário. A mentalidadesociocultural
exigia uma nova postura eclesial. Graças a Deus a mentalidade foi pouca a pouco
clarificando e abrindo-se para aquilo que haveria de ser o Concílio Vaticano
II: uma experiência de abertura a ação do Espirito Santo em unidade com a fé da
Igreja, em diálogo com o mundo moderno.
Um fator muito positivo do Concílio foi o legado
de ter superado uma mentalidade que se poderia chamar de antirreformista,
identificada com a Igrejahierárquica, onde os leigos eram visto apenas como
súditos obedientes. Isso pode ser constatado no item a seguir, onde exporemos
os dois esquemas De Ecclesia, o
primeiro com seus onze capítulos enquadra-se muito bem neste esquema de Igreja hierarquicamente
perfeita e o final que foi aprovado na terceira seção, que se alinha com o
pensamento de abertura e renovação muito presente, na maioria dos bispos.
A superação do esquema juridicista e apologético
da Igreja devem-se muito ao desejo explícito de João XXIII, que sonhava em
trazer a comunidade cristã para dentro dos problemas do mundo moderno, a fim de
que a mensagem cristã encontrasse eco no coração humano. Neste sentido o
esquema final trouxe mobilidade e novidade para toda reflexão eclesial. E a
inclusão do VII capítulo responde a uma exigência de abertura e profundidade da
reflexão eclesial num contexto nova: a escatologia presente no corpo da Lumen gentium, marca uma nova
mentalidade da discussão teológica dentro do Concílio, posteriormente em todas
as camadas teológica, visto que agora a Igreja é apresentada num contexto
esperança que se lança para o fim, sem desvincular-se do real. Nisto se afirma
o já e o ainda não da nossa vocação.
[1]KLOPPENBURG, Frei
Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II,
Vol. II Primeira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, p.234
[2]KLOPPENBURG, Frei
Boaventura, op. Citp.p24
[3] Ibidem.
[4]Cf. Congregatio Generalis, 80, Schema
Constitutionis de Ecclesia C7, relatio Gerenalis: ActsynConcVatSec Vol III,
periodus tertio, pars I, p. 351; cf. POZO, Candido. Teologia del mas Allá, (Biblioteca de autores cristianos), Madrid
Ed. Catolica, 1968, p. 544-545
[5]
Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio
Vaticano II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972,
pp. 11-14.
[6] Ibidem
[7]
Cf. RiudorIgnacio, S.I. IN Vaticano II: Documentos, enciclopédia conciliar,
historia douctrina, Editorial Regina, 1971, 108-113; Cf. KLOPPENBURG, Frei
Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II,
Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-14.
[8]
Cardeal Suenens é teólogo e Arcebispo de Malanes,na Belgica, defenso, como
outros bispos, de uma Igreja mais aberta, sem, no entanto, perder asua razão
última. A defesa de seu esquema da Igreja ad
intra e ad extratruxe muita contribuição ao longo do Concílio. O chamado
esquema treze, ou seja, a Gaudiumetspes é uma resposta a isso. Cf. KLOPPENBURG,
Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano
II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-17; PHILIPS,
Mons., A Igreja e seu mistério no
Concílio Vaticano II, Tomo I, Herder, São Paulo, 1968, pp. 50-70
[9] Cf. KLOPPENBURG, Frei
Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II,
Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-17
[10]
Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio
Vaticano II, Vol. IIPrimeira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972,
p.243
[11]Cf. KLOPPENBURG, Frei
Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II,
Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 15
[12]
Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio
Vaticano II, Vol. IIPrimeira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972,
p.243
[13]
Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, A
Natureza e Missão da Igreja, In REB, Vol XXIX, Fasc. 4, Vozes, Petrópolis,
1969, pp. 801-802
[14] KÜNG, H., La Eglesia, Herder, Barcelona,
1968, p. 101
[15]Cf.
SCHOONENBERG, P. Creio na Vida Eterna, in
CONCILIUM: Revista Internacional de Teologia, n° 1 Dogma, jan./1969, pp. 86-94
[16]
Cf. MEDARD, K.,A Igreja: Uma Eclesiologia
Católica, Loyola, São Paulo, 1997, p.86
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