segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A relevância do VII capítulo da Lumen Gentium.

A relevância do VII capítulo da Lumen Gentium.


1.1 O itinerário da inclusão da Escatologia na Lumen gentium

O debate concilar sobre o VII capítulo deu-se no dia 11 de julho de 1964.
Ainda na segunda seção conciliar o tema da escatologia não havia entrado em pauta. O esquema da Lumen gentium até aquela seção conciliar constava de 81 páginas e onze capítulos, os quais nada falavam sobre a índole escatológica da Igreja. O primeiro esquema constava destes capítulos: De Ecclesiaemilitantis natura; De membrisEcclesiaemilitatiseiusdemquenecessitate ad salutem; De episcopatu ut supremo gradusacramentiOrdiniset de sacerdotio; De episcopisresidentialibus, De statibusevangelicaeacquirendaeperfectionis; De laicis; De Ecclesiaemagisterio; De auctoritate et oboedientia in Ecclesiam; De relationibusinterEcclesiae et Statum; De necessitateEcclesiaeannuntiandiEvangeliumomnibusgentibus et ubiqueterrarum; De oecumenismo[1]. Em todos eles não se encontram referencias explícitas sobre a escatologia da Igreja.
Esse primeiro esquema foi louvado por alguns e violentamente criticado por outros: “apresentava, diziam, uma Igreja excessivamente jurídica, institucional, externa, clerical e triunfalista, sem acentuar bastante o mistério da vida divina, do dinamismo sobrenatural e da união com Cristo”[2]. O texto foi acusado de ser bastante bíblico, cristocêntrico, pastoral, maternal, pouco missionário, e nada aberto às outras formas de vida e cultura. Também se dizia que era um texto pouco ecumênico e que não estava adaptado com a mentalidade moderna. Em resumo faltava o espírito da caridade cristã.[3]
Um novo esquema foi redigido entre a segunda e a terceira seção, no chamado período internacional. A modificação ocorreu na divisão e ordem dos capítulos. Assim os onze capítulos do esquema anterior deram lugar a oito, que se apresentam assim: 1. O mistério da Igreja; 2. O povo de Deus; 3. A constituição hierárquica da igreja; 4. Os leigos; 5. A vocação universal à santidade na Igreja; 6. Os religiosos; 7. A índole escatológica de nossa vocação e nossa íntima união com a Igreja celeste; 8. A Bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja. Este último esquema agradou a maioria, pois abrangia uma reflexão profunda sobre toda realidade da Igreja em suas estruturas internas. 
Mas o que levou, então, os padres conciliares a tomar uma posição diferente daquela contida na primeira estrutura da Lumen gentium? Há teólogos comentadores do Concílio (Candido Pozo, Boaventura Kloppenburg, entre outros), que defendem a introdução deste novo esquema a uma vontade expressa do Papa João XXIII, que foi bem defendida por seu sucessor, de que a Igreja deveria abrir-se ao mundo.
Já a inclusão do VII capítulo, foi um pedido expresso de João XXIII, que confiara ao Cardeal Larraona[4], auxiliado por uma comissão especial, o encargo de elaborar umtexto em que apontasse uma íntima relação entre a Igreja peregrina e o culto dos santos, como também a oração aos fiéis defuntos.
A morte de João XIII em 1962, não pôs fim a esse ideal. O Papa Paulo VI, que foi uma figura singular no desenvolvimento do Concílio, não excitou em aprovar prontamente a decisão, de seu predecessor e, por conseguinte, o texto da comissão.  Aasim durante a seção plenária de março de 1964 foi instituída uma subcomissão encarregada de rever o texto e enquadrá-lo no contexto e estilo da De Ecclesia.
O texto da subcomissão foi apresentado com quatro parágrafos para ser discutido na terceira seção do Concílio em 1964. O primeiro apresentava a índole escatológica da nossa vocação na Igreja: nele se exprimia a tendência da nossa vocação escatógica que começa aqui e culmina no céu. Já o segundo expressava a comunhão entre a Igreja celeste e a Igreja peregrinante: nele o texto salientava que a nossa morte não rompe a unidade entre as realidades eclesiais (Igreja peregrina e a Igreja celeste). O terceiro traz a relação da Igreja peregrina em união com os Santos: neste ponto a reflexão valoriza muito a intercessão poderosa dos santos e a oração pelos mortos. O quarto e último falava de algumas disposições pastorais: neste contexto o esquema aponta alguns perigos e exageros que seguem o culto aos santos.
O mencionado texto apresentado pela comissão para discussão na aula conciliarproduziu muito debate. O cardeal Ernesto Ruffini, Arceb. de Palermo, na Itália classificou o texto de piedosíssimo no tocante a exposição da doutrina sobre os novíssimos e disse que nele se omite, quase completamente, uma posição sobre o inferno[5].
O cardeal IgneceZiade, Acerb. Maronita de Beirut, no Líbano, faz uma intervenção valiosa ao colocar a necessidade de uma maior presença pneumatológica na Lumen gentium. Ele alega que não é possível falar de índole escatológica da nossa vocação sem referência a missão do Espírito Santo. Elesalientou que para os Orientais um capítulo de escatologia sem uma clara missão do Espírito é igual a uma liturgia sem epíclese ou anáforas, na qual se apresentaria a missão do Filho, tocaria um pouco no papel do Pai, mas  nada se falaria do Espírito Santo. Esse capítulo sem um autêntico aceno ao papel Espírito não poderia ser aceito pelas Igrejas Orientais[6].
Também é salutar a intervenção do bispo alfredAncel, auxiliar de Lião, na França, ao salientar que a índole escatológica de nossa vocação deve manifestar-se na nossa vida cotidiana, em todas as nossas obras, principalmente de duas maneiras: por meio das virtudes teologais: fé, esperança e caridade, que nos impinge a agir, buscando os valores eternos; depois por meio da consciência de que a índole escatológica de nossa existência faz-nos trabalhar sem nos tornarmos escravos das estruturas e ocupações.    
Após o fim de todos os debates e mais de 17 intervenções encerraram-se as reflexões acerca do VII capítulo da Lumen gentium que foi aprovado por quase todos os 2.204 padres conciliares presentes na octogésima primeira congregação geral do Concílio em 16 de setembro de 1964. 

1.2 POR QUE UM CAPÍTULO DE ESCATOLOGIA NA CONSTITUIÇÃO SOBRE A IGREJA.


Como ponto de partida, queremos salientar, no início desta pesquisa, a importância que teve a inclusão do tema sobre a escatologia para toda a Constituição Dogmática Lumen gentium. Não é nosso interesse tratar aqui da penetração do VII capítulo em toda Constituição, mas poderia deixar de registrar a relevância que teve a escatologia em todo o documento sobre a Igreja.  A escatologia, como veremos ao longo deste trabalho, não é apêndice ou uma reflexão justaposta dentro do horizonte conciliar, ela representa parte de um projeto maior que tem como finalidade unir, numa mesma reflexão, a Igreja como mistério e sacramento da Salvação com a realidade concreta da vida dos fiéis. A finalidade é demonstrar que a Igreja visível nas suas estruturas é sinal e instrumento que apontam à vida nova da comunidade cristã.
É importante salientar, neste itinerário histórico, que o VII Capítulo, sobre a índole escatológica da Igreja, não estava presente no primeiro esquema da De Ecclesia, apresentado pela comissão preparatória. A inclusão foi fruto de um amadurecimento do horizonte teológico conciliar. O teólogo RiundorIgnacio, assim como Boaventura Kloppenburg defendem a tese de que ainclusão do capítulo escatolágico, na Carta Magna De Ecclesia condiz com avontade do Papa João XXIII, que desejava que na reflexão sobre a Igreja se fizesse referências a temas como: o Culto dos Santos e a comunhão da Igreja peregrina com a Igreja celeste[7].
Assim a inserção do caráter escatológico da Igreja aponta parauma tomada de consciência dos Bispos em perceberem na natureza e na missão da Igreja uma tensão escatológica. Tal índole escatológica projeta a Igreja na história humana como instrumento de salvação; como sinal sacramental e visível da presença da graça na história atual. Por causa disso os bispos decidiram criar um capítulo inteiro sobre escatologia e colocá-lo dentro do esquema De Ecclesia.
Todavia, não foi fácil essa inclusão. A primeira discussão acerca do VII capítulo se deu em meio a esclarecimentos e propostas dos bispos presentes, na III seção ordinária de 1964,  onde se discutiu, entre outros, os detalhes sobre a conclusão da De Ecclesia. Para entendermos melhor isso, cabe-nos voltar um pouco para recordar a valiosa contribuição do Cardeal Suenens[8] na Congregação geral n°33 de 4 de dezembro de 1962. Seu pronunciamento marcou muito o itinerário do Concílio.Ele buscava organizar um plano harmônico (RatioipsiusConcilii) para todo o Concílio. Seu projeto consistia em apresentar a Igreja como luz das nações (ecclesiaLumen gentium), dividindo o tema sobre a Igreja em dupla vertente: como Igreja ad intrae como Igreja ad extra[9].
Segundo o esquema do Cardeal Suenens, a Igreja,ad intra, abordaria temas como: a natureza da Igreja, seuofício ou missão. A Igreja,ad extra, seria explicada em tríplece diálogo: com os fiéis, com irmãos separados e com o mundo moderno.  Essa proposta agradou muito a todos os bispos, chegando a influenciar diretamente a formulação das duas principais constituições: aLumen gentium e a GaudiumetSpes[10].
No esquema do Cardeal, que agradou muito aos Padres, a escatologia ainda não sefazia presente, mas, como veremos mais adiante, já aparecem elementos que tornam necessária uma abordagem escatológica na Lumen gentium, como  parte essencial da Constituição.
A própria localização do VII capítulo entre a vocação universal a santidade, a vida religiosa e a santíssima Virgem Maria, demonstram a centralidade da escatologia em todo o esquema da Constituição.
A proposito da importância do VII capítulo na estrutura da Lumen Gentium é relevante lembrar a contribuição do Cardeal Giovanni Urbani, patriarca de Veneza, na Itália, que afirma satisfação para com o texto apresentado, sobretudo por perceber nele um caráter eminentemente cristológico e eclesiológico, tão relevante à estruturação de todo o horizonte conciliar[11].
Desta forma fica evidente que com a incisão do tema escatológico na Lumengentiumos padres conciliares propõem uma visão escatológicaaberta ao mistério, unida a um contexto sacramental, sem distanciá-la e isolá-la do mundo real, como acontecia anteriormente nos tratados de escatologia. A escatologia dentro da eclesiologia não somente revitalizou a Igreja como faz justiça à sua missão e natureza escatológica. A escatologia unida à eclesiologia torna mais consciente a íntima união que se processa pelo batismo em cada fiel com Cristo.

1.3 A escatologia do VII capítulo: superação do esquema juridicista e apologética da Igreja.

Desde início do Concílio muitos temiam que ele se tornasse uma espécie de “Sínodo Romano”. Que valorizasse os velhos esquemas apologéticos pós-trento: ou seja, de defesa da fé e aplicação de anátema. Como podemos confirmar nos relatos de Boabentura Kloppenburg, o primeiro esquema apresentado da Lumen gentium, privilegiava tal posição[12]. Algum, como o bispo de Borogan, nas Filipinas, Vicente Reyes, defendia a ideia da Igreja triunfante e eram defensores do esquema juridicista da Igreja. 
Todavia, a maioria dos bispos tinha consciência de que os anátemas de Trento já não respondiam as inquietações da modernidade. Não adiantava falar em tom puramente apologético e autoritário. A mentalidadesociocultural exigia uma nova postura eclesial. Graças a Deus a mentalidade foi pouca a pouco clarificando e abrindo-se para aquilo que haveria de ser o Concílio Vaticano II: uma experiência de abertura a ação do Espirito Santo em unidade com a fé da Igreja, em diálogo com o mundo moderno.
Um fator muito positivo do Concílio foi o legado de ter superado uma mentalidade que se poderia chamar de antirreformista, identificada com a Igrejahierárquica, onde os leigos eram visto apenas como súditos obedientes. Isso pode ser constatado no item a seguir, onde exporemos os dois esquemas De Ecclesia, o primeiro com seus onze capítulos enquadra-se muito bem neste esquema de Igreja hierarquicamente perfeita e o final que foi aprovado na terceira seção, que se alinha com o pensamento de abertura e renovação muito presente, na maioria dos bispos.
A superação do esquema juridicista e apologético da Igreja devem-se muito ao desejo explícito de João XXIII, que sonhava em trazer a comunidade cristã para dentro dos problemas do mundo moderno, a fim de que a mensagem cristã encontrasse eco no coração humano. Neste sentido o esquema final trouxe mobilidade e novidade para toda reflexão eclesial. E a inclusão do VII capítulo responde a uma exigência de abertura e profundidade da reflexão eclesial num contexto nova: a escatologia presente no corpo da Lumen gentium, marca uma nova mentalidade da discussão teológica dentro do Concílio, posteriormente em todas as camadas teológica, visto que agora a Igreja é apresentada num contexto esperança que se lança para o fim, sem desvincular-se do real. Nisto se afirma o já e o ainda não da nossa vocação.     




[1]KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. II Primeira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, p.234
[2]KLOPPENBURG, Frei Boaventura, op. Citp.p24
[3] Ibidem.
[4]Cf. Congregatio Generalis, 80, Schema Constitutionis de Ecclesia C7, relatio Gerenalis: ActsynConcVatSec Vol III, periodus tertio, pars I, p. 351; cf. POZO, Candido. Teologia del mas Allá, (Biblioteca de autores cristianos), Madrid Ed. Catolica, 1968, p. 544-545
[5] Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-14.
[6] Ibidem
[7] Cf. RiudorIgnacio, S.I. IN Vaticano II: Documentos, enciclopédia conciliar, historia douctrina, Editorial Regina, 1971, 108-113; Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-14.

[8] Cardeal Suenens é teólogo e Arcebispo de Malanes,na Belgica, defenso, como outros bispos, de uma Igreja mais aberta, sem, no entanto, perder asua razão última. A defesa de seu esquema da Igreja ad intra e ad extratruxe muita contribuição ao longo do Concílio. O chamado esquema treze, ou seja, a Gaudiumetspes é uma resposta a isso. Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-17; PHILIPS, Mons., A Igreja e seu mistério no Concílio Vaticano II, Tomo I, Herder, São Paulo, 1968, pp. 50-70
[9] Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, pp. 11-17
[10] Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IIPrimeira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, p.243
[11]Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IV Terceira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 15
[12] Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, Concílio Vaticano II, Vol. IIPrimeira sessão conciliar, Vozes, Petrópolis, 1972, p.243

[13] Cf. KLOPPENBURG, Frei Boaventura, OFM, A Natureza e Missão da Igreja, In REB, Vol XXIX, Fasc. 4, Vozes, Petrópolis, 1969, pp. 801-802
[14] KÜNG, H., La Eglesia, Herder, Barcelona, 1968, p. 101
[15]Cf. SCHOONENBERG, P. Creio na Vida Eterna, in CONCILIUM: Revista Internacional de Teologia, n° 1 Dogma, jan./1969, pp. 86-94
[16] Cf. MEDARD, K.,A Igreja: Uma Eclesiologia Católica, Loyola, São Paulo, 1997, p.86
[17] Cf. KÜNG, H., La Eglesia, Herder, op. Cit 108-110


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