TEMAS
LITÚRGICOS
A
inculturação da liturgia romana
na
história da Igreja
1. A Antiguidade
apostólica e o nascimento da liturgia romana
A liturgia cristã nasce e desenvolve-se em estreita ligação e
dependência da tradição judaica. Não são abolidos os antigos ritos, ao menos em
totalidade, mas outorga-se-lhes um novo significado. O próprio estilo e modo de
rezar sofre uma forma de inculturação 1.
A liturgia cristã não nasce, portanto, como algo totalmente novo,
mas, sob a orientação do Espírito Santo, desenvolve-se sobre matrizes
preexistentes mediante um discernimento: de acolhimento de tudo aquilo que está em harmonia
com a tradição apostólica e fiel à história da salvação; de exclusão (ou de purificação) de aquilo que é
contrário ao Evangelho e à prática cristã; de reinterpretação,
dando aos sinais, ritos e modelos, novos conteúdos e novos significados 2.
Pouco a pouco, fez-se sentir uma certa influência helénica. Com a
paz de Constantino (édito de Milão, 313), dá-se um mais aberto contacto com a
cultura helénica, atenua-se a oposição aos ritos pagãos e alguns elementos
desta tradição são assumidos na liturgia.
Mas olhemos para Roma, pois o presente artigo pretende tratar da
inculturação da liturgia romana. A Igreja localizada no território romano
começa a ser Igreja Romana. Assumem-se na liturgia e, particularmente, no
cerimonial pontifical certos elementos provenientes da corte imperial. A
linguagem e os sinais são, no entanto, espiritualizados à luz da Sagrada
Escritura e referidos ao mistério de Cristo 3.
Posteriormente, a sociedade sofrerá profundas transformações, no
entanto estas insígnias e elementos permanecerão tal como foram assumidos. São
institucionalizados e estilizados. Tornam-se, assim, sinais de uma cultura que
já não é civil, profana, mas puramente simbólica, «sacra» 4.
Foi tradicional durante muito tempo considerar a existência de uma
única liturgia para toda a Igreja, que depois viria a dar lugar às restantes
tradições litúrgicas. Actualmente, alguns autores começam a pôr em dúvida essa
uniformidade litúrgica dos primórdios da Igreja. No entanto, derivada de uma
única liturgia ou não, com o tempo, nas sedes das grandes metrópoles antigas
(Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Roma, Milão, Ravena,
Aquileia, etc.) nascem tradições litúrgicas, ou também chamadas famílias
litúrgicas. A estas sedes estava ligada a memória e a voz autorizada de santos
bispos, e deve-se tanto à necessidade de uma adequação a diversas culturas,
como à busca de diferentes formas e fórmulas que permitissem conservar
inalterada, mais facilmente, a vitalidade da tradição litúrgica 5.
Este fenómeno pode ser descrito como sendo simultaneamente de desenvolvimento,
adaptação e inculturação.
Tanto a Oriente como no Ocidente, depois de um período de gestação
caracterizado por uma incipiente criatividade de textos e da estruturação do
tempo litúrgico, passa-se, na tentativa de se adaptar aos novos contextos
culturais, a um período de verdadeira e própria criatividade litúrgica, tanto
no que diz respeito aos textos, como às estruturas para os ciclos litúrgicos ou
para a celebração dos sacramentos, de modo a alcançar a codificação ou
cristalização dos tipos de famílias litúrgicas.
Encontramo-nos, portanto, hoje em dia numa situação diferente
daquela da antiguidade apostólica. A inculturação que tratamos neste artigo, e
que é impulsionada pela Igreja, a partir do Vaticano II, é a inculturação da
liturgia romana, e é neste sentido que deve ser entendida. Não tem por
objectivo a criação de novas famílias rituais. Por isso, para responder às
necessidades de uma cultura determinada, o Concílio Vaticano II abre a
possibilidade de adaptar o Rito romano 6,
partindo das edições típicas estabelecidas 7.
Nesta época inicial começa a desenvolver-se a liturgia romana ou o Rito romano.
Foi opinião generalizada durante o século XX por parte dos estudiosos a
existência de uma liturgia romana «pura», que teria existido entre os séculos V
e VII. Alguns falam especificamente dessa liturgia «pura» e procuram analisá-la 8.
Outros, ao tratar a história da liturgia parecem, de alguma forma, partir dessa
pressuposição 9.
Por fim, surgem ainda autores que preferem falar, mais do que de um momento
estático e bem delimitado no qual se formou a «essência» do Rito romano, de um
desenvolvimento orgânico de enriquecimento e crescimento progressivo. Neste
sentido, a liturgia romana pura nunca teria existido e, se alguma vez existiu,
nunca foi igual a si mesma. Isto é, preferem falar de uma liturgia romana em
evolução, de uma liturgia que se encontra continua e simultaneamente
desenvolvida e em fase de desenvolvimento 10.
Este rito, que talvez nunca tenha existido numa forma «pura», era
a liturgia vigente na metrópole de Roma e nas dioceses sufragâneas. Havia
substituído uma liturgia em língua grega e comum à cristandade dos primeiros
dois ou três séculos. Os Papas Dâmaso (366-384), Inocêncio I (401-461), Gelásio
I (492-496), Vigílio (537-555) e Gregório Magno (590-604), são os grandes
responsáveis da sua implantação e formação. Com Gregório Magno promove-se a
codificação da liturgia e alcança-se uma estrutura fixa em que a criatividade
litúrgica é mínima.
2. Período franco-alemão:
de Gregório Magno (590) a Gregório VII (1073)
Os livros da liturgia romana passam com relativa rapidez ao
território franco-germano e aqui entram em contacto com a liturgia galicana
(que existia e florescia já há vários séculos). Inicia-se assim uma múltipla e
recíproca penetração.
Já com Pipino difunde-se o sacramentário gelasiano e verifica-se
um início de reforma litúrgica. Posteriormente, no séc. IX, o imperador Carlos
Magno, com a intenção de unificar o império, recorre à unidade da fé e da
liturgia. Para tal, manda trazer os livros da liturgia romana e adapta-os à
cultura galicana e, concretamente, à liturgia vigente nesse ambiente. Este
período em questão constitui a época da liturgia romana sujeita ao influxo
franco-germano. Confrontando tanto com os Ordines
Romani originais como com o
Pontifical Romano posterior, é fácil reconhecer o tipo de liturgia preferida
por estes povos: desenvolvimento riquíssimo, material variado e abundante,
estilo novo (mais longo, verboso, e dramático por vezes). O resultado é,
portanto, uma combinação harmónica da herança romana antiga (caracterizada pelo
equilíbrio, simplicidade, sobriedade, expressão estática) com o vigor dos novos
povos (mais dinâmico, expansivo, vital, com tendência por vezes a uma espécie
de anarquia) 11.
Por volta do século X sucede um processo similar com os
imperadores da Germânia. Neste período Roma está em forte decadência litúrgica
e a cúria está sem controlo. Os próprios imperadores, nas suas visitas a Roma,
impõem o uso destes livros litúrgicos, outrora romanos, mas agora
romano-germanos 12.
O carácter simples, sóbrio e prático da liturgia romana cede lugar a uma nova
cultura com outro tipo de mentalidade.
Vemos então como, sobre a base da liturgia romana, se adicionaram
tradições tanto galicanas como germânicas que, posteriormente, foram
introduzidas em Roma como próprias.
Parece conveniente salientar que, durante esta continua evolução,
se realizaram inculturações erradas, que foram corrigidas ou eliminadas, em
conjunto com as legítimas e verdadeiras, que perduraram 13.
Como a história demonstra, são casos pontuais de inculturações
abusivas movidas por finalidades pastorais desviadas que a Igreja corrigiu e
rejeitou.
3. De Gregório VII (1073)
ao Concílio de Trento (1545)
No século X a vida litúrgica em Roma encontrava-se bastante
degenerada e sofre uma influência muito positiva da obra litúrgica dos
mosteiros franceses e germanos que, entretanto, tinham chegado a Roma graças
aos imperadores. Efectivamente, Cluny, com a sua reforma, constituiu um
fundamento seguro para a reforma da Igreja e da liturgia. A liturgia volta a
florescer sob o influxo dos Papas da reforma: Gregório VII e Inocêncio III.
Gregório VII protesta contra a destruição da velha liturgia romana
e procura restaurá-la. No entanto, ao não conhecer a real situação histórica,
instaura e consolida a liturgia romano - franco - germana.
Os Papas ao retomarem o controlo da liturgia romana, põem fim às
ingerências imperiais, e é imposto a todos os bispos da Igreja o uso dos livros
litúrgicos de Roma. A partir de então, o nascente centralismo romano apenas
permite a coexistência das liturgias de Milão e de Espanha. Para tal, a ordem
mendicante de S. Francisco de Assis desempenhou um importante papel.
Efectivamente, centrada, desde o segundo decénio do séc. XIII, num tipo de
apostolado itinerante, constituiu-se em propagadora involuntária de uma forma
muito concreta de liturgia romana: a liturgia da cúria romana. A razão é
simples, tratava-se de uma liturgia adaptada às exigências dos capelães do
Papa, que necessitavam de um ofício mais simples e prático 14,
e que, portanto, possuía livros de transporte mais cómodo e de fácil
manuseamento. Desta forma, por obra dos frades franciscanos, estas redacções
práticas e, especialmente, o «Missal» e o «Breviário da cúria romana», correram
por todo o mundo, conseguiram uma boa aceitação e, evidentemente, foram
copiadas. Assim, os discípulos de S. Francisco, facilitaram à liturgia
ocidental uma standartização não só teórico - jurídica, mas sim
efectiva.
Se este período se caracteriza pela adesão das dioceses ocidentais
à liturgia romana e na progressiva unificação litúrgica, também se adverte que
a atitude dos fiéis diante da liturgia se modifica profundamente. A liturgia,
acção comum de sacerdotes e povo, parece reduzir-se agora a uma incumbência
quase exclusivamente clerical. O povo assiste à missa, mas atento às suas
devoções subjectivas, extra-litúrgicas. A assistência contenta-se com «ver»,
sem participar verdadeiramente, e produz-se uma distancia cada vez maior entre
o celebrante e os fiéis 15.
(continua no próximo número)
2Cfr. Ibíd.,
p. 41; A. TRIACCA, Sviluppo -
Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della
liturgia, Roma 1993, p. 85.
3Cfr. A. CHUPUNGCO, Liturgia e inculturazione, em
A. CHUPUNGCO (ed.), Scienzia
liturgica, II, Casale Monferrato 1998, pp. 363 ss.
5No entanto, através destas variadas
manifestações continua, no seio dos povos que aderem ao cristianismo, sem
variações através dos tempos e dos testemunhos humanos, a única e comum
(católica) tradição litúrgica. Da unidade primordial (judaico-cristã) passa-se
à pluralidade expressivo-litúrgica. Por outras palavras, a universalidade da
tradição litúrgica encarna-se na lei do particularismo das diversas tradições
litúrgicas. Cfr. A. TRIACCA, Liturgia
e tradizione, em A. BERNARDINO (ed.), Dizionario
patristico e di antichità cristiane, II, Casale Monferrato 1983, pp. 1980
ss.
6Cfr. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A
DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Instrução Varietates
legitimae (25.I.94), 36: AAS 87 (1995) 302.
7Cfr. SC,
38-39. Deve-se respeitar “a unidade substancial do Rito romano” (SC, 38)
e partir das edições típicas estabelecidas (SC, 39).
8Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le
epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 57-74. Este autor descreve desta forma
os elementos formais característicos do génio da liturgia romana: “(...)
notiamo subito la loro semplicità precisa, sobria, breve, non verbosa, poco
sentimentale; la loro disposizione chiara e lucida; la loro grandeza sacra e
umana insieme, spirituale e di gran valore letterario” (Ibíd., p. 67).
9Cfr. E. CATTANEO, Il culto cristiano in occidente,
Roma 1984, pp. 97-123; M. RIGHETTI, Manuale
di storia liturgica, I, Milano 1964, pp. 187-696; T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia
occidental, Barcelona 1968, pp. 28 ss.
10Cfr. A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento
- Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento
culturale della liturgia, Roma
1993, p. 73-75.
11Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le
epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 80 e 84.
13Citamos por exemplo, os casos enunciados
por Vogel, como é o caso das missas secas (sem ofertório, nem comunhão, nem
cânon), as missas bi-, tri-, quadrifacciatas (vários formulários de missa com
apenas um cânon e uma só comunhão), etc. (cfr. C.
VOGEL, Introduction aux
sources de l’histoire du culte chrétien au moyen âge, Spoleto 1966, p.
136). Neunheuser explica estes abusos como
consequência de uma evolução na espiritualidade e na prática pastoral. Começam
a celebrar-se muitas missas nas Igrejas, capelas e santuários que se vão
construindo. Esta multiplicação parece dever-se a facilitar uma maior
participação dos fiéis, no entanto, posteriormente, esta diversificação
verifica-se por razões puramente devocionais, privadas, especialmente pelo
sufrágio dos defuntos. São necessárias, assim, uma maior quantidade de missas e
começa-se a celebrar mais de uma vez por dia. As autoridades eclesiásticas
reagem proibindo a binação que, nos séculos X-XI, desaparece. Então, para
satisfazer a piedade de muitos que requerem missas por intenções pessoais
surgem os abusos antes referidos.
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