Orígenes e Origenismo: controvérsia
da Apokatástasis
Orígenes (185-254) foi mestre de famosa Escola de Teologia em Alexandria
(Egito) no séc. III. Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar nos
dados do Evangelho mediante o instrumentos da filosofia ou da sabedoria humana
(grega) anterior a Cristo. A teologia ainda estava em seus primórdios; as
fórmulas oficiais da fé da Igreja eram então muito concisas; em conseqüência,
ficava margem assaz ampla para que o estudioso propusesse sentenças destinadas
a elucidar, na medida do possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a
essa tarefa, servindo-se da filosofia do seu tempo e, em particular, da
filosofia platônica. Ao realizar isso, Orígenes fazia questão de distinguir
explicitamente entre proposições de fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação
cristã, e proposições hipotéticas, que ele formulava em seu nome pessoal, à
guisa de sugestões; além disto, professava submissão ao magistério da Igreja
caso esta rejeitasse alguma das teses de Orígenes.
Ora, entre as suas proposições pessoais, Orígenes formulou algumas que
de fato vieram a ser recusadas pelo magistério da Igreja.
2. Assim, inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega psyché
(alma) de psychos (frio), e admitia que as almas humanas unidas à matéria, tais
como elas atualmente se acham, são o produto de um resfriamento do fervor de
espíritos que Deus criou todos iguais e destinados a viver fora do corpo; a
encarnação das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um
abuso da liberdade ou um pecado dos espíritos primordiais, que Deus terá
punido, ligando tais espíritos à matéria. Banidos do céu e encarcerados no
corpo, estes sofrem aqui a justa sanção e se vão purificando a fim de voltar a
Deus; após a vida presente, alguns ainda precisarão de ser purificados pelo
fogo em sua existência póstuma, mas na etapa final da história todos serão
salvos e recuperarão o seu lugar junto de Deus; o mundo visível terá então
preenchido o seu papel e será aniquilado.
Note-se bem: Orígenes propunha essas idéias como hipóteses, e hipóteses
sobre as quais a Igreja não se tinha pronunciado (justamente porque
pronunciamentos sobre tais assuntos ainda não haviam sido necessários). Não
havia, pois, da parte de Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento comum
da Igreja a fim de constituir uma escola teológica própria ou uma heresia
(*heresia* implica obstinação consciente contra o magistério da Igreja).
3. A desgraça de Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e
admiradores... Estes atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo
depois que o magistério da Igreja as declarou contrarias aos ensinamentos da
fé.
É preciso observar ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como
possível a preexistência das almas humanas. Ora esta doutrina não significa
necessariamente reencarnação; apenas quer dizer que, antes de se unir ao corpo,
a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não
se segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria a reencarnação
propriamente dita).
Aliás, Orígenes se pronunciou diretamente contrário à doutrina da
reencarnação... Com efeito, em certa passagem de suas obras considera a teoria
do filósofo Basílides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de São
Paulo: *Vivi outrora sem lei...* (Rm 7,9). Observa então Orígenes: Basílides
não percebeu que a palavra *outrora* não se refere a uma vida anterior de S.
Paulo, mas apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo
estava vivendo; assim, concluía Origenes, *Basílides rebaixou a doutrina do
Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias* (cf. In Rom VIII).
Contudo os discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não
somente a preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas
também a reencarnação (que o mestre não chegou de modo algum a propor, nem como
hipótese).
Os principais defensores destas idéias, os chamados *origenistas*, foram
monges que viveram no Egito, na Palestina e na Síria nos séc. IV/VI. Esses
monges, como se compreende, levando vida muito retirada, entregue ao trabalho
manual e à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia; admiravam
Orígenes principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística,
disciplinas em que o mestre mostrou realmente ter autoridade. Não tendo,
porém, cabedal para distinguir entre proposições categóricas e meras hipóteses
do mestre, os origenistas professavam cegamente como dogma tudo que liam nos
escrito de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e
buliçosos quanto mais simples e ignorantes.
4. A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos
origenistas, encontrou decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos,
que a tinham como contrária à fé. Um dos testemunhos mais claros é o de Enéias
de Gaza († 5l8), autor do *Diálogo sobre a imortalidade da alma e a
ressurreição*, em que se lê o seguinte raciocínio:
*Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infligir a
punição, repito-lhe várias vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe
que não o esqueça para que não recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, que
estipula... os supremos castigos, não haveria de esclarecer os culpados a
respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a
recordação de suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito
vivamente as suas penas? Para que serviria o castigo se não fosse acompanhado
da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o réu e levá-lo à
demência. Uma tal vítima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser
punida sem ter consciência de haver cometido alguma falta?* (ed. Migne gr., t.
LXXXV, 871).
Sem nos demorar sobre este e outros testemunhos contrários à reencarnação
no séc. VI, passamos imediatamente à fase culminante da controvérsia
origenista.
*Não* à reencarnação
No início do séc. VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da
Palestina, tendo como principal centro de propagação o mosteiro da *Nova Laura*
ao sul de Belém: aí se falava, com estima, de preexistência das almas,
reencarnação, restauração de todas as criaturas na ordem inicial ou na
bem-aventurança celeste... Em 531, o abade São Sabas, que, com seus 92 anos de
idade, se opunha energicamente ao origenismo, foi a Constantinopla pedir a
proteção do Imperador para a Palestina devastada pelos samaritanos, assim como
a expulsão dos monges origenistas. Contudo alguns dos monges que o
acompanhavam, sustentaram em Constantinopla opiniões origenistas; regressou à
Palestina, para aí morrer aos 5 de dezembro de 532. Após a morte de S. Sabas, a
propaganda origenista recrudesceu, invadindo até mesmo o mosteiro do falecido
abade (a *Grande Laura*); em conseqüência, o novo abade, Gelásio, expulsou do
mosteiro quarenta monges. Estes, unidos aos da *Nova Laura*, não hesitaram
em tentar tomar de assalto a *Grande Laura*. Por essa época, os
origenistas (pelo fato de combater uma famosa heresia cristológica, dita
*monofisitismo*) gozavam de grande prestígio, mesmo em Constantinopla. Com o
passar do tempo, a controvérsia entre os monges da Palestina foi-se tornando
cada vez mais acesa, exigindo em breve a intervenção das autoridades. Foi
o que se deu em 539: o Patriarca de Jerusalém mandou pedir ao Imperador Justiniano
de Constantinopla o seu pronunciamento contra o origenismo (naquela época os
temas teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões de
administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um trato contra
Orígenes, de tom extremamente violento, que se encerrava com uma série de dez
anátemas contra Orígenes, dos quais merecem atenção os seguintes:
*1. Se alguém disser ou julgar que as almas humanas existiam
anteriormente, como espíritos ou poderes sagrados, os quais, desviando-se de visão
de Deus, se deixaram arrastar ao mal, e, por este motivo, perderam o amor de
Deus, foram chamados almas e relegados para dentro de um corpo à guisa de
punição, seja anátema.
5. Se algum disser ou julgar que, por ocasião da ressurreição, os corpos
humanos ressuscitarão em forma de esfera, sem semelhança com o corpo que
atualmente temos, seja anátema.
9. Se alguém disser ou julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não
será eterna, mas terá fim, e que se dará uma restauração apokatástasis,
reabilitação) dos demônios, seja anátema*. Justiniano em 543 enviou o seu
tratado com os anátemas ao Patriarca Menas de Constantinopla, a fim de que este
também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos abades de
mosteiros próximos igual pronunciamento. Assim intimado, Menas reuniu logo o
chamado *sínodo permanente* (conselho episcopal) de Constantinopla, o qual, por
sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais os
quatro primeiros nos interessam de perto:
*1. Se algum crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável
reabilitação das mesmas (que é geralmente associada àquela), seja anátema.
2. Se algum disser que os espíritos racionais foram todos criados
independentemente de matéria e alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram
a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más
inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais, outros menos
perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto
dos seres racionais a que se tornaram o que eles hoje são por se voltarem para
o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se
arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram
em conseqüência chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último
grau do mal tiveram como partilha corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que
chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema*.
O Papa Vigílio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses
artigos. Como se vê, tal condenação foi promulgada por um sínodo local de
Constantinopla reunido em 543, e não pelo Concílio ecumênico de Constantinopla
II, o qual só se realizou em 553. Neste Concílio ecumênico, a questão da
pré-existência e da sorte póstuma das almas humanas não voltou à baila; verdade
é que Orígenes aí foi condenado juntamente com outros escritores cristãos por
causa de erros concernentes a Cristo.
Em conclusão, observamos o seguinte:
a) A doutrina da reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva na Igreja
Católica (atestam-no os depoimentos dos antigos escritores cristãos atrás
mencionados);
b) Após Orígenes (séc. III), ela foi professada por grupos particulares
de monges orientais, pouco versados em teologia, os quais se prevaleciam de
afirmações daquele mestre, exagerando-as (daí a designação de *origenistas*,
que lhes coube);
c) Mesmo dentro da corrente origenista, a teoria da reencarnação não
teve a voga que tiveram, por exemplo, as teses da preexistência das almas e da
restauração de todas as criaturas na suposta bem-aventurança inicial;
d) Por isto as condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI
sobre o origenismo versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e
da restauração das almas (o que naturalmente implica a condenação da própria
tese da reencarnação, na medida em que esta tese depende daquelas doutrinas e
era professada pelos origenistas);
e) A doutrina da reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério
ordinário da Igreja (baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais
remotos, mas também pelo magistério extraordinário nos concílios ecumênicos de
Lião em 1274 (*As almas... são imediatamente recebidas no céu*) e de Florença
em 1439 (*As almas... passam imediatamente para o inferno a fim de aí receber a
punição*) Cf. Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio nº 857 (464) e 1306 (693). Ver
também Concílio do Vaticano II, Const. Lumen Gentium nº 48: *Terminado o único
curso de nossa vida terrestre, possamos entrar nas bodas*.
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