Questões Teológicas:
O que é
central na noção de salvação cristã?
A noção de salvação do ser humano é o
centro da noção de salvação cristã. O fundamental da existência da idéia de
salvação são os homens e as mulheres que precisam ser salvos. O termo salvação
aplica-se a salvar o ser humano, esse não pode eximir-lo ou abandonar ou ainda
desconsiderar o contexto no qual o ser humano está inserido. Portanto a
salvação diz respeito a tudo aquilo que é experiência do ser humano. Se o termo
salvação for concebido num sentido mais amplo, então deve responder às
inspirações e carências humanas, não satisfeitas pela razão e pelos esforços do
próprio homem.
Analisando a salvação cristã como
salvação do ser humano, então na medida em que mudam as condições de vida,
surgem novos desafios e transformam-se contextos socioculturais, pode e deve a
Igreja acompanhar tais mudanças com pastorais, instituições e visões teológicas
novas condizentes com o momento histórico.
As diversas expressões de salvação
apresentam-se já presentes no Novo Testamento. Os discípulos utilizavam
diversas expressões para exprimir o conteúdo da salvação cristã. Bem facilmente
entendida essas expressões trazem em voga que a salvação cristã desde o começo
foi sendo compreendida como algo unida a realidade vivencial de cada pessoa e
comunidade de fé, por isso os diversos termos para exprimir o conteúdo da
salvação cristã: santificação do ser
humano, justificação, capacitados do alto, libertos da escravidão. Em
Agostinho: sacrifício meritório; em Anselmo: satisfação de nossas culpas só
encontra resposta em Cristo; St. Tomás: satisfação, mas vista como fundamento
do amor de Deus à humanidade; Lutero: a justiça punitiva de Deus. Mas uma coisa estava por trás de todas essas
expressões: a realidade da experiência de ser salva. A salvação é uma
experiência que acontece na história de cada pessoa e que encontra seu acento
objetivo no sujeito eclesial. Há diversas expressões porque diversas são as
experiências humanas. Nenhuma experiência pode por antonomásia esgotar o
conteúdo da salvação e a realidade salvífica. Assim nasce idéia de um núcleo
comum nas diversas experiências de salvação. Esse núcleo denomina-se autêntica
experiência de salvação.
A experiência humana é sempre uma
experiência interpretada. Na experiência a percepção e o pensamento se
encontram mutuamente. A experiência neste sentido é interpretada e vivida ao
mesmo tempo. Mas então ela é somente subjetiva? Não. Existe uma autonomia da
realidade que ultrapassa a experiência subjetiva. A realidade possui uma objetividade
e uma subjetividade, pois cada experiência não esgota a realidade, mas revela
parte dela. Assim dependendo da qualidade da experiência se pode chegar a uma
conclusão diferente, porém que não exclui outras experiências e conclusões da
tendo a mesma realidade como paradigma. Mas existe uma realidade autônoma que
não depende nem da experiência, nem do quadro interpretativo: a realidade de
Jesus Cristo como salvação. Essa realidade é fundamental, permanente e comum a
toda experiência de salvação cristã. As diversas expressões não vazia e nem
criam uma poção de salvações porque estão enraizadas na realidade fundamental
de Cristo como salvador e portador absoluto da Salvação. Daí que conservando
essa centro real e intransponível a experiência de salvação que acontecem na
humanidade e, portanto, na história podem exprimir-se diversamente sem perder a
unidade da fé da comunidade em Cristo.
2. Como sair do
dilema: a salvações não-cristãs se são autênticas relativizam a salvação
cristã, ou se não são autênticas então não passam de mentiras ou quimera!
A solução do dilema não pode ser
resolvida sem primeiramente empreendermos uma verdadeira transmutação das
questões até então elencadas para construir uma equilibrada saída. Primeiro é
preciso deixar claro que a salvação cristã não só acontece por meio de Deus, mas acontece
em Deus. Deus mesmo é a salvação do ser humano. A realização do ser humano
não somente através de Deus e sim é Deus mesmo a sua felicidade. Deus é assim
realidade final da salvação cristã, e não apenas como sua causa instrumental.
Essa salvação, todavia não é algo
futurista e para o pós-morte. Ela é essa autocomunicação
de Deus na vida e na história que atinge o ser humano em todas as suas
dimensões e abri-o ao escaton numa
unidade entre o Reino celeste e a construção dos meios aqui e agora.
Ora, se já falamos que a salvação
cristã está ligada a realidade do ser humano, se esta salvação é vontade
universal de Deus para todos os homens e mulheres então a realidade da salvação
deverá atingir a todas as experiências de salvação. Ora, a salvação é vivida na
história e a história é limitada pelo contexto como afirmar que a salvação
cristã é a única verdadeira se ela não abarca a totalidade das experiências
humanas?
Então, se é assim existe algo comum
entre nossa salvação e a salvação dos não-cristãos que contribui para cumprir a
vontade salvífica de Deus? Mas isso não relativiza nossa pretensão de
universalidade e totalidade da salvação?
Há segundo Pe. França Miranda um ethos comum a cada religião e com ele
uma cosmovisão. Cada religião busca exprimir sua salvação baseando na
realidade, vivência e contexto específico, portanto a partir de sua cosmovisão.
A base comum neste contexto é a
salvação do ser humano e esse na sua multiforme realidade de experiência.
Assim, a avaliação e análise da experiência de salvação devem levar em conta a
contextualização de cada experiência. Desta forma não podemos negar que há
elementos de salvação fora do cristianismo e que as salvação não-cristãs
possuem caminhos de salvação. Mas ao mesmo tempo não podemos aceitar que
diversidade de expressões e experiência nos leva a aceitar a irreal idéia de
uma multiplicidade de salvações. A salvação é única porque Deus é o conteúdo
mesmo da salvação, Deus é a meta e o fim da salvação do ser humano. As
religiões e as instituições não podem esgotar toda a realidade de Deus. Nem o
cristianismo, nem o judaísmo, nem islamismo ou o budismo, ou ainda o hinduísmo
ou as religiões africanas entre tantas podem reter a totalidade de Deus. Uma
coisa é reter o fenômeno (phainomenon)
que o que o ser humano e a religião têm acesso outro coisa é Deus mesmo
enquanto tal (noumenon).
3. Como pode um
único Deus (Espírito) provocar experiências salvíficas plurais diversas?
Não podemos confundir o fim com os
meios nem a ação salvífica com os meios históricos de expressão desta única
salvação. Aqui entra o papel do Espírito na raiz da salvação como aquele que
possibilita falar de salvação universal ou de vontade salvífica universal para
toda a humanidade. A ação do Espírito tem como lugar privilegiado a própria
Igreja, por isso Santo Ireneu afirmava “onde está o Espírito do Senhor aí está
a Igreja, e onde está a Igreja aí está o Espírito do Senhor, e toda a graça”
(Adv. Haer. III, 24,1).
Mas o Espírito é derramado sobre toda a
humanidade, pois como diz a Escritura, Ele sopra onde quer, precedendo com sua
atividade a proclamação explícita da mensagem cristã. Neste sentido, queremos
dizer que o Espírito do Senhor é livre e age onde que independentemente da
presença histórica das instituições ou não. Em outras palavras, Ele age fora
dos muros confessionais cristão, e o conceito de Igreja de Santo Ireneu aqui é
alargado e abre muito mais que as expressões históricas que encontramos dentro
dos contextos cristãos. Um é o mesmo Espírito que faz aparecer os diversos dons
e talentos. O corpo possui um único Espírito que o conduz. Desta forma a ação
do Espírito não se limita ao interior do cristianismo. A atividade universal do Espírito é levar
Jesus Cristo, vida e verdade, aos seres humanos.
Como a encarnação implica não somente a
salvação do homem, mas também a restauração do cosmos e de tudo que existe,
então a salvação desencadeia um processo histórico que culmina na atual
realidade e destina-se ao criar relação de comunhão entre Deus e a criação.
Ora, sendo assim a ação do Espírito do Senhor é acolhido e experimentado na
história e portanto diversamente, pois
como vimos cada etapa da história trás novos desafios existenciais aos quais a
salvação de Deus tem que ser sinal visível na vida e no contexto de cada povo
em cada época.
Todavia, não podemos esquecer que a
salvação em plenitude só pode ser Deus. Neste sentido todo anseio de salvação
plena se dirige a Deus, quer o aceitemos ou não, quer o chamemos por este nome
ou aquele, já que é uma realidade transcendente. A Palavra de Deus está aqui
para ser transcendente, que pode receber denominações diversas nas religiões,
mas nunca ser substituído por qualquer outra realidade. A verdade é que Deus
ultrapassa toda e qualquer estrutura e nada pode esgotar sua realidade. Da
mesma forma que todas as realidades e estruturas podem dizer coisas sobre Deus
e apresentar aspectos de Deus a partir de seu ethos e sua cosmovisão, porém não
podem dizer possuir Deus totalmente nos seus muros e esquemas: Deus é mais.
Qual, pois, o critério para não cairmos no subjetivismo de uma fé ilusória e
intimista? A comunidade de fé. O sujeito por excelência da fé é a comunidade,
por isso a importância do sensus
fidellius.
O critério do cristianismo é o amor
(agape), o dom do Espírito e fora dele é a promoção do bem. Nestes critérios
Deus age como ação do Espírito que faz surgir diversas expressões da mesma
realidade que é Deus. Daí que cada experiência e expressão salvífica do passado
são verdadeiras, mas não exaustivas, porque toda experiência é contextualizada
e limitada, e Deus transcende a tudo isso.
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