quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A MORTE NA EXPERIENCIA CRISTÃ

1. Entre o medo e a esperança
Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é nossa pregação, vazia também a vossa fé... Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1Cor 15,12-20)
A certeza da ressurreição de Jesus Cristo ilumina não apenas a morte do cristão, mas também sua vida. Se Deus chama à felicidade plena em sua casa (Jo 14,1-3), a existência tem sentido maior que simples passagem por este mundo. Em Jesus o Pai propõe não apenas um “final feliz” após os sofrimentos desta vida, mas oferece nova perspectiva, inclusive ao sofrimento e à morte.
Não é fácil crer no amor de Deus quando se passa pela provação, pelas angústias, pela morte. Essas realidades têm profundo peso negativo no cotidiano da vida. Elas são responsáveis pela ruptura da unidade interior, pelo vazio existencial, pela falta de entusiasmo e pela sensação de inutilidade. O sofrimento provoca crise no relacionamento. A morte corta definitivamente a relação com os outros, com o mundo.
A experiência da finitude toma conta da pessoa, pondo em evidência os limites humanos, sua precariedade, sua fragilidade que torna o doente dependente dos outros, da família, dos amigos, dos médicos.
Tudo se torna ainda mais dramático no confronto com a verdadeira “paranóia” que o mundo de hoje vive em relação ao “culto à saúde”. O problema está se transformando em componente cultural e político. Além de exigir a qualidade de vida (o que é mais do que justo e compreensível), a sociedade moderna sonha com um mundo sem males, aqui e agora, com a vitória sobre a morte, com a conquista da imortalidade como uma vitória da humanidade.
À luz da fé cristã, a morte não é uma ruptura irremediável, mas, acima de tudo, uma transformação: “Para aqueles que crêem em Cristo, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio dos mortos). A morte não constitui final melancólico da existência humana, mas o término de uma etapa, em busca da vida plena. Também não deve ser vista como um castigo, mas como uma realidade que faz parte da história da humanida de, do ser humano. Sua dramaticidade, sim, se deve à situação de pecado, na qual a humanidade foi envolvida desde as origens.
Em Jesus Ressuscitado, essa perplexidade começa a ser iluminada pela fé e a tomar sentido, porque nele brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição, e aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola (Prefácio dos mortos). Ele morreu para redimir nossa morte: “Ele é a salvação do mundo, a vida dos homens, a ressurreição dos mortos” (Prefácio dos mortos).
Em Cristo ressuscitado, a ruptura interior é recomposta, a experiência do vazio dá lugar ao sentido para a vida, a crise de relacionamento se transforma em comunhão com Deus e com os irmãos, os limites humanos e a precariedade do tempo presente são revestidos da imortalidade, a liberdade será definitivamente plena.
Nossa união com Cristo, aqui e agora, no transcurso desta vida, já constitui o início e a certeza da vida plena. Viver por Cristo, com Cristo e em Cristo é construir os alicerces sobre a Rocha.
A vida eterna não constitui apenas uma realidade futura, para depois; já se inicia aqui, agora, a medida que se é fiel a Deus e se vive seus ensinamentos. A esperança na imortalidade brota de Cristo ressuscitado e se fundamenta na certeza de que Deus nos quer em sua casa, para sempre.
A Sagrada Escritura não diz a última palavra sobre a morte: o enigma e o mistério continuam. A Bíblia, no entanto, nos conduz àquele que tem a última palavra sobre tudo e sobre todos: Cristo ressuscitado! Só ele tem palavras de vida eterna! “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim, jamais morrerá” (Jo 11,25-26).
Crer em Cristo ressuscitado é começar a viver, na esperança, a felicidade do novo céu e da nova terra, porque o Cordeiro Imolado, que reina vivo, faz novas todas as coisas (Ap 21,5). Em Cristo, a humanidade poderá ter a certeza de que “nunca mais haverá maldição... não haverá noite, ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,3-5). Seremos felizes, porque convidados para a Ceia do Senhor, a Ceia do Cordeiro! Então, nossa última palavra, mais do que um pedido, será uma aclamação: Vem, Senhor Jesus!

2. Entre a morte e a Ressurreição: Alma e imortalidade da alma


Do acima exposto, ficou claro que para Ratzinger é despropositado falar em ressurreição na morte, pois que isso implicaria algo impossível: a entrada do homem na eternidade de Deus, em que passado e futuro estão atualmente presentes no único e eterno presente divino. O homem passa, sim, a outra dimensão ao deixar o bíos, mas não entra na eternidade pura. Ratzinger usou a expressão “tempo da memória” para falar dessa realidade nova. Isso, então, quer dizer que o homem está a espera da consumação de todas as coisas em Deus, está a espera da plenitude do Corpo de Cristo.
Daí a verdade profunda da insistência das Sagradas Escrituras na ressurreição no “último dia”, no “fim dos tempos”. Ademais, dizer que o homem entra na eternidade por ocasião da morte implicaria uma desvalorização da história que está acontecendo e ainda não terminou. Ora, qual o elemento que garante a permanência da identidade do homem que deixou esta vida, passou ao puro “tempo da memória” e aguarda ainda a consumação de todos e de tudo, inclusive da matéria, em Deus? Esse elemento, a tradição cristã denominou-o alma.
Segundo Ratzinger, é evidente que no homem, ser unitário em virtude da criação, distinguem-se o elemento permanente e o transitório. O homem é uno, mas não um bloco monolítico. São palavras do teólogo que se tornou Papa: “A matéria como tal não pode ser o fator de permanência no homem: inclusive durante a vida terrena se encontra em contínua mutação. Nesse sentido é inegável uma dualidade que distingue o constante e o variável, dualidade exigida simplesmente pela lógica do assunto.
Por esta razão resulta irrenunciável a distinção entre corpo e alma”.
Segundo Ratzinger, a concepção tradicional que distingue no homem o elemento material e o elemento espiritual é profundamente lógica e, tal como encontrou sua expressão em Tomás de Aquino e no Concílio de Vienne (“anima forma corporis”), não cai em nenhum dualismo. Distinguir não significa separar. O homem segue sendo uma realidade unitária. Corpo e alma aqui não são duas substâncias completas em si mesmas, mas dois princípios de que resulta o homem enquanto tal. Entre o monismo inadmissível e o dualismo não-cristão, há a dualidade.
Muito se tem invocado a Sagrada Escritura para desbancar a visão que se fixou na tradição cristã. A Escritura não falaria de distinção de corpo e alma, mas apenas do homem como ser uno e indivisível, ainda que sob diversos aspectos: enquanto ser frágil, a Escritura o chama de basar-sarx; enquanto animado pelo sopro vital, nephesh-psiqué; enquanto capaz de relacionamento com Deus, o homem é chamado de ruah-pneuma.
É verdade, a Escritura não trata do homem senão como um ser uno como exige a doutrina da criação (Deus criou o homem inteiro, sem justaposição), e, no geral, não se preocupa em fazer a distinção que a reflexão teológica depois tratou de fazer. A Escritura não está preocupada em apresentar uma reflexão sistemática sobre o homem. Em vão procuraríamos aí uma antropologia sistematizada.
Entretanto, pode-se seguramente afirmar que a antropologia que distingue no homem corpo e alma resulta de uma análise que contempla o todo da Escritura e, de modo especial, o elemento determinante do Novo Testamento, a cristologia. Está na linha da Escritura afirmar que não há interrupção entre a morte do homem e a consumação do mundo. O elemento que permanece e que garante a identidade de quem deixou esta vida e vai ressuscitar não pode ser senão o seu núcleo pessoal, que a tradição chama de alma.
Deve-se dar conta, em primeiro lugar, que a Igreja primitiva, Paulo e mesmo Jesus moviam-se no terreno da tradição judaica. Embora, como dissemos, o homem seja visto pela Escritura numa perspectiva, o que lhe ocorre depois da morte é curioso. Nos textos mais antigos, a Escritura afirma que, enquanto o corpo é levado à sepultura, as sombras -refaim- do falecido juntam-se à sua parentela no sheol. Às sombras não compete uma vida consciente, mas uma existência espectral e despersonalizada.
Mas, com o aparecimento da esperança de que Deus poderia tirar essa existência do sheol, esperança testemunhada já em Jó e em alguns Salmos, o judaísmo intertestamentário passou a distinguir no sheol a morada dos justos de um lado e dos pecadores de outro, como se constata no livro etiópico de Henoc, ou como, de modo mais desenvolvido, em 4Esd, que já atribui prêmio e castigo às almas dos defuntos que continuam vivendo antes da ressurreição esperada.
Assim, no judaísmo intertestamentário, por ocasião da morte do homem, distingue-se o seu elemento permanente, o seu “eu” que logo após a morte é já merecedor de prêmio ou castigo, do elemento transitório, que vai para o sepulcro. Repercussões desse modo de pensar se fazem presentes no Novo Testamento, como em Mt 10,28: “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na Geena”, ou como em Ap 6,9, que fala das almas dos justos sob o altar, ou ainda em Lc 16,23, que coloca de um lado o seio de Abraão, e de outro o lugar de tormentos.
Mas o Novo Testamento desenvolveu ainda mais as concepções do judaísmo de então, afirmando a comunhão com o Senhor logo após a morte e antes do fim do mundo. Em Paulo, vemos claramente isso quando, por exemplo, diz aos Filipenses que gostaria de desprender-se para estar com Cristo. Mas o apóstolo também reconhece que, de acordo com 1Ts 4, 17, a ressurreição como tal só se dará no último dia. Em João, a comunhão com o Senhor se dá já nesta vida, o que garante sua permanência mesmo após a morte.
Apesar de a comunhão com Cristo ser real e duradoura, João não exclui a ressurreição do dia derradeiro, que levaria esta comunhão à plenitude. Alguns exegetas reconhecem a insistência de João na ressurreição do último dia como reação a concepções gnosticizantes e por demais espiritualistas. Aliás, João, com sua insistência sobre a teologia da carne-sarx, desenvolve uma polêmica contra o gnosticismo então nascente. O episódio do bom ladrão registrado por Lucas 23,43 mostra que os elementos herdados do judaísmo foram interpretados cristologicamente. A recompensa que os justos aguardavam no sheol realiza-se em Cristo; o paraíso é ele; ele é a água viva; é a vida em plenitude.
Ratzinger diz que “as idéias que se desenvolveram na antiga Igreja sobre a sobrevivência do homem entre a morte e a ressurreição se apóiam nas tradições que se davam no judaísmo sobre a existência do homem no sheol e que se transmitiram no novo testamento, corrigidas cristologicamente”.
A determinação cristológica assegurou a permanência do sujeito da comunhão, isto é, o “eu” do justo permanece em comunhão com Cristo mesmo depois da morte, e, uma vez que, segundo a cristologia da ascensão, Cristo subiu à direita do Pai, o homem, logo após a morte e antes da ressurreição final, já se encontra em situações provisoriamente definitivas.
É porque Cristo, Cabeça do Corpo, subiu aos céus que os membros também podem fazê-lo, ainda que a história não tenha sido consumada. Esta compreensão aparece claramente na alta Idade Média com a bula Benedictus Deus de Bento XII, que define solenemente que a alma do justo, plenamente purificada, imediatamente depois da morte, tem a felicidade plena da visão intuitiva de Deus. A ressurreição do derradeiro dia será o efeito dessa visão na matéria, matéria que, enquanto criatura de Deus, na linguagem de São Paulo, aguarda com gemidos e dores de parto a libertação total.
De tudo que ficou dito, percebe-se que para Ratzinger a antropologia que afirma uma dualidade no homem não pode ser classificada como simples intrusão grega. É, antes do mais, o resultado de um esforço para sistematizar os dados que a fé apostólica transmitiu à Igreja, esforço que se valeu, sem dúvida, de elementos da cultura grega, sem, contudo, aceitá-los sem qualquer modificação. Não se pode encontrar tal antropologia em nenhum dos pensadores gregos. Nem Platão nem Aristóteles chegaram a tal visão do homem.
“Também resulta claro”, diz Ratzinger, “que a fé cristã apresentava exigências à antropologia, exigências que não poderiam ser satisfeitas por nenhuma das antropologias existentes, mas podiam e deviam ser úteis os conceitos destas, supondo-se as mudanças necessárias. Porque era necessário desenvolver uma antropologia que, por uma parte, reconheça o homem como criatura de Deus, criado e querido por Deus em sua totalidade. Por outra parte, neste homem deve-se distinguir entre o passageiro e o que é permanente. Tal distinção teria de se realizar, por sua vez, de tal modo que se mantivesse aberta a aproximação à unidade definitiva do homem e da criação”.
Por fim, não poderíamos deixar de registrar uma contribuição muito importante de Ratzinger sobre o conceito de imortalidade da alma. Franz-Josef Nocke, no Manual de Dogmática dirigido por Theodor Schneider, diz que Ratzinger reabilitou o conceito de imortalidade da alma, mas deslocou a sua chave de compreensão: a imortalidade da alma deve ser vista, antes de tudo, pelo seu caráter relacional-dialógico com Deus. É porque Deus criou o homem como seu parceiro de diálogo que o homem é imortal. O estar na memória de Deus é que faz o ser humano existir para sempre. Essa abertura para Deus pertence à essência mesma do homem.
E aquilo que permite tal abertura chamamos exatamente de alma, que, como forma corporis, de um lado pertence a este mundo material, mas, de outro, porque tende a Deus, faz com que o mundo vá além de si mesmo. Ter alma e ser parceiro de diálogo com Deus significam o mesmo. A alma, então, não é imortal por si mesma, hermeticamente isolada; é imortal em sua essência, sim, mas porque aberta ao relacionamento com Deus.
“A alma nada mais é senão esta capacidade de relações que o homem pode ter com a verdade, com o amor eterno”. Platão, de algum modo, intuiu isto ao dizer que o que faz o homem imortal é sua relação com a verdade imutável; entretanto, no Cristianismo, essa Verdade, que é Amor, não é algo, mas Alguém. Desse modo, a dualidade fundamental para Ratzinger não é a dualidade corpo-alma, mas a dualidade Criador-criatura.

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