quarta-feira, 2 de novembro de 2011

ESCATOLOGIA: O DISCURSO SOBRE A MORTE E O SENTIDO DA VIDA NA PÓS-MODERNIDADE

1. Introdução: O decreto de silêncio do discurso sobre a morte e a perda do sentido da vida na pós-modernidade.

No mundo atual assistimos uma verdadeira corrida frenética pela vida. Nunca se falou tanto da vida nem se defendeu com radical vigor a vida como na modernidade. Todavia, por outro lado, nesta mesma sociedade hodierna, nunca se rejeitou com tamanha veemência um discurso sobre a morte. A morte tornou-se algo estranho e ameaçador; uma realidade que deve ser, senão banida, pelo menos afastada dos grandes discursos humanos. A vida é uma fuga do morrer e falar da morte é não amar a vida.
Na verdade, assistimos uma verdadeira dicotomia entre viver e morrer. Essa constatação nos coloca em um dilema não somente teológico, mas essencial e existencial: pode existir vida ausente ou totalmente alheia à experiência da morte? Até que ponto um total desprezo pela questão da morte não constitui um ato contra a vida? A perda do sentido da vida não está exatamente na falta de entender a vida e a morte como unidade dual no ser humano e em toda a criação, que nasce morrendo e só vive enquanto é capaz de morrer? Há uma unidade inseparável entre o morrer e viver ou isso é invenção de padres e pastores para amedrontar o povo com aquelas visões escolásticas de inferno, como vale de lágrimas e um rio de dores ininterruptas?
Nosso presente ensaio deseja oferecer uma contribuição nesta questão, enfocando três momentos. Primeiro queremos refletir a situação da criação no seu aspecto biológico. Neste momento demonstraremos como a vida estar envolvida por essa realidade dual entre viver e morrer. Queremos chegar à conclusão de que a vida se alimenta da vida, e não há vida onde não acontece a experiência do morrer como entrega radical. Neste sentido demonstraremos como a perda do sentido dual da vida biológica cria uma cultura de morte, onde aquilo que se defendia torna-se mais ameaçado do que antes. Num segundo momento queremos definir o ser humano como um ser de abertura, que não tem em si mesmo a totalidade das respostas e das perguntas. Neste contexto desejamos enfocar que a vida não é somente isso que nossos olhos vêem e nossas mãos tocam; a vida é muito mais. Viver é muito mais que ter matéria biológica. O corpo não é somente matéria visível, mas há uma unidade dual entre material e espiritual. Num terceiro momento queremos refletir sobre a dimensão sagrada do ser humano. Todo ser humano carrega em si traços do sagrado. Em nós Deus fez morada, não é um estranho, ele está como presença existencial sobrenatural. A prova disso é que o transcendente não constitui um ideal pueril e impessoal, tem um nome e faz conosco uma promessa: Jesus de Nazaré, Filho unigênito do Pai pela força do Espírito Santo. Por fim, queremos afirmar a escatologia como teologia da esperança, teologia que fala da vida que vence o medo na força daquele que nos salvou. Como afirma Bento XVI spe salvi facti sumus. Nossa esperança é fidedigna graças a qual podemos enfrentar o nosso tempo presente.[1]

2. Aspecto biológico da vida humana: o nascer implica um morrer progressivamente.

A constatação de que a vida se alimenta da vida, levanta uma questão de fundo: a vida, processo biológico, é um caminho inevitável para a morte. Como afirma M. Heidegger o ser humano é um ser-para-a-morte.[2] Essa constatação é comprovada pelas experiências biológicas, todos os dias inevitavelmente morrem dezenas de células em nosso organismo. Morremos lentamente todos os dias e é isso que, de certa forma, nos mantêm vivos. Uma planta para sobreviver às estações do ano faz constantemente um processo de morte; assim as folhas caem e morrem para que desta forma a planta possa viver. Nada escapa deste ciclo: a vida é uma verdadeira metamorfose entre viver e morrer. Onde não há experiência do morrer a vida não se sustenta. Neste sentido a morte é parte integrante da vida e o sentido da morte está unido ao sentido da vida.
A realidade é clara quanto mais afastamos a morte do discurso sobre a vida por medo dela, mais desastrosamente mergulhamos na morte como um fim sem sentido. O sentido último da vida somente é encontrado plenamente no sentido da morte e vice-versa. Todo ser criado carrega essa ambigüidade: a vida não existe sem a morte. Quanto mais a morte estiver entrelaçada com a vida, mas a vida crescerá, ao passo que um desprezo pela morte pode não gerar vida e sim absolutizar a morte como um fim sem sentido. Somente na correlação entre vida e morte é que podemos encontrar o verdadeiro sentido da vida. O valor absoluto da vida não pode fechar a criação em si mesma.
O grande problema hoje é exatamente o fato das pessoas não falarem da morte como parte do discurso sobre a vida. As pessoas não gostam de falar da morte, mesmo em caso de falecimento de familiares mais ou menos chegados. Tenta se rejeita a morte e em muitos casos maquiar-se a morte de toda forma, espantando para longe qualquer vinculo da morte com a morte: se enfeita o morto com roupas de festa, flores, aromas e etc. tudo para tirar o aspecto dramático. Mas, paradoxalmente o ser humano, apesar disso, encontra na morte o seu grande mistério. Assim, pois, a rejeição da reflexão sobre a morte se revela como sendo a rejeição da reflexão sobre o ser humano.
O que conta, então é a vida e nada mais. E à medida que a vida se mostra sem sentido, apesar de toda insinuação da propaganda, a morte também se torna fato absurdo que, de repente, surpreende o ser humano. Ou, como formulou Fritz Leist: “A falta de sentido da vida e o absurdo da morte fazem um pacto”. [3]
No sentido acima exposto afirma E. Kübler-Ross que Quem se esquivar da discussão sobre a morte se esquivará da discussão sobre o que chamamos vida. “Morrer é parte integrante da vida, tão natural e previsível quanto nascer”. [4] E continua: “Mas, enquanto o nascimento é um motivo de comemoração, a morte transforma-se em terrível e inexprimível assunto, a ser evitado de todas as maneiras na sociedade moderna. Talvez porque nos relembra a nossa vulnerabilidade humana, apesar de todos os avanços tecnológicos”. [5] “O prolongamento da esperança de vida, e, num futuro muito próximo, o prolongamento da certeza de viver é uma das condições essenciais para que o homem (...) possa assumir a si mesmo. Assumir-se total e livremente perante o universo, o absoluto, o seu Deus, seja qual for o significado que se atribua a esta palavra, contanto que seja suficiente para dar sentido à sua vida”. [6]
Mas o que essa sede pela vida desvinculada da morte gerou? O que assistimos nos telejornais é uma ofensa constante a vida. Fabricam-se bombas para proteger a vida, mas que, na verdade, são uma ameaça constante de destruição em massa. As guerras preventivas dos EUA, em defesa da paz e garantia de segurança que já causaram mais mortes do que a duas guerras mundiais juntas. A tecnologia bélica cada vez mais potente que cria arma cada vez mais letal. A violência urbana, outomobilística, o submundo das favelas que se prolifera na América Latina; os milhares de mortos de fome da África; o aquecimento global causado pela ganância do capitalismo, pondo em risco a vida de todo o planeta. Tudo isso mostra que a corrida pela vida, mesmo rejeitando a morte a todo custo provocou uma cultura de morte que torna a vida uma realidade constantemente ameaçada.
Todas essas coisas fazem pensar que a corrida desenfreada pela vida, não passa de uma fuga e esvaziamento do sentido mais profundo da vida. As academias lotadas e as filas de espera nas salas de cirurgias plásticas marcam muito bem o sentido materialista que ser tornou o falar sobre a vida. A desagregação da unidade do corpo como material-espiritual fez eclodir o homem fechado e insensível.
Todavia o nosso “bios” não perdoa, por mais que queiramos não podemos nos esquivar desta unidade entre a existência presente e a ameaça inevitável da morte. A unidade do ser humano não pode ficar relegada apenas ao campo da existência material, o ser humano é mais. Uma existência justa da criação e sobremaneira do ser humano precisar respeitar-lhe a unidade estrutural dos momentos de ser e da abertura do ser. Só respeitando a unidade entre vida e morte poderemos construir um discurso plausível sobre a vida. Somente encontraremos as respostas últimas da vida quando relacionarmos o fenomenal com a questão do sentido da unidade dual do morrer e viver na totalidade ontológica de toda criação, que não é ser-para-a-morte, mas ser-para-Deus.

3. O ser humano como um ser de abertura e relação.

O ser humano não é robô, não é um programa de computador ele é uma criatura, fruto do amor de Deus. Para falar de vida é necessário entendê-la naquilo que chamamos de fundamental: o ser humano é abertura e relação. Porém nem sempre damos conta deste fato que o ser humano é projeto aberto e infinitamente aberto. Muitas vezes caímos no erro de prender-nos na ação e não no sujeito que age. O humano é um complexo interminável de experiência, e somente perscrutando-o conseguiremos compreender suas relações e atos, e assim posicionar um sentido para sua vida.
A nossa macro-relação com o mundo, e este entendido como o conjunto de todas as realidades circunscritas no cosmos, torna-se profícua quando tomamos consciência do nosso modo por excelência de viver: somos seres da transcendência relacional. Como diz Boff: “Somos seres do enraizamento e da abertura”[7]. Pode-se caracterizar o ser humano como o ser da divindade, vivendo prosaicamente no mundo.
Em uma visão radical o ser humano é o ser do interdito, que não está pronto, mas em construção; um ser inacabado com ânsia de voar ao infinito; um ser que pensa lá nas alturas, mas vive entrelaçado com o cotidiano terrestre; um ser que protesta, reclama e não aceita o pré-estabelecido; um ser que almeja o universal, mas vive preso e agarrado ao particular. O próprio Boff afirma: “Não há sistema militar mais duro, não há nazismo mais feroz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que possam enquadrar o ser humano. Sempre sobra alguma coisa nele. (...) Por mais aprisionado que ele esteja, no fundo da terra ou dentro de uma nave espacial no espaço, mesmo aí o ser humano transcende tudo. Porque, com seu pensamento, ele habita as estrelas, rompe todos os espaços.” [8] Tudo isso ele faz porque é essencialmente um ser aberto, um ser em relação, não fechado ao campo meramente material e espacial. É neste sentido que afirmamos: a vida humana é mais; daí que tudo não pode encerrar-se somente nesta experiência terrena, a vida espiritual – que não é alienação do mundo, pois exige co-responsabilidades com hoje e o futuro – abre-nos ao totalmente outros e nos lança no mundo como ser-para-Deus. Neste contexto o homem e a mulher lançam as perguntas fundamentais pelo sentido da vida, da existência e da morte. É somente no nível da abertura e da relação que a vida humana toma sentido e a morte deixa de ser uma tragédia cruel e passa a consistir o radical passo na entrega fundamental a Deus.
Jaz, portanto, no ser humano como abertura ao infinito um nó de relações. Ele é o ser-para-Deus que se relaciona numa cadeia de comunicação infinita com Deus, com os outros seres e com a natureza[9]. No reconhecimento de sua personalidade como ser-para, brotará a consciência do respeito pelos outros seres, fator fundamental na valorização da vida.
Como o ser humano é abertura infinita temos que entender a ambigüidade do binômio vida/morte como abertura e doação radicais. Por isso a estrutura de um mundo materialista fechado em si não pode aprisionar a vida numa gaiola, nem esgotar toda a expressão do viver como material experimentável e manipulável cientificamente. Pensar a escatologia é, ante de tudo, acreditar na promessa da vida em abundância que nasce em Deus; vivendo-a já aqui em tensão à plenificação do ser humano e do mundo; é acreditar que a vida vale mais do que a comida e a bebida e que nem todo pão do mundo pode saciar a fome do sentido da vida.
Dessa forma, ter esperanças é acreditar na força transformadora do amor; na abertura à sensibilidade com a vida e, sobretudo aquela mais ameaçada. Viver a tensão entre o sentido da morte e o sentido da vida é construir ethos do respeito e da co-responsabilidade, para com a vida diante do capital e do poder; em fim, num sentimento pleno é viver a compaixão, e como afirma Schopernhauer “logo que esta compaixão se torna viva, o bem e a dor do outro se encontram diretamente em nosso coração.”[10]


4. A dimensão do simbólico-sagrado no ser humano como abertura escatologica para Deus.

Encontramos cada vez mais um esvaziamento do sentido da vida; certo desprezo ou pelo menos uma indiferença pela dimensão sagrada da vida. A sacralidade da vida é rejeita porque se alega que tal estrutura não é racional, uma vez que se entende a racionalidade de modo técnico. Com isso se perde o valor simbólico da vida, da criação e do mistério.
A estrutura atual da chamada pós-modernidade vai obrigando-nos a pensar o ser humano dentro de um paradigma onde predomina a racionalidade técnico-científica como critério de verdade. Neste sentido verdadeiro é apenas aquilo que pode ser medito e comensurado pela experiência. E isso se torna mais evidente quando observamos que as diversas ciências trouxeram a possibilidade de criar e recriar numa rapidez que surpreende até o próprio homem hodierno. Entre o velho, o superado e o novo cada vez o espaço-tempo é encurtado, não há tempo para esperar.[11] Tudo é muito descartável porque tudo e passageiro e provisório. O ser humano sente-se, de algum modo, autônomo e livre, diante das questões absolutas: Deus, a vida, o sentido último da existência, o sentido da morte. Nada mais importa senão a realização imediata que a técnica pode proporcionar. Com isso a abertura simbólica da vida que impinge ao transcendente, como abertura ao sagrado fica relegada, quando muito, devoções intimistas.
No caso da fé, assiste-se, hoje, uma exacerbada visão da liberdade humana frente às religiões. O número dos que não têm fé (e estão muito bem, obrigado!) cresce a cada ano. Muitas pessoas atualmente buscam fugir das estruturas religiosas porque pensam que religião como irracionalidade e sem valor. O simbolismo neste sentido é colocado como fantasia e experiência religiosa é vista como paz espiritual, desvinculada da vida concreta.
Tal situação desafia-nos, como cristãos à medida que, esse modo de pensar recusa ou pelos menos minimiza o papel simbólico da esperança na vida humana. Como falar das questões fundamentais e do sentido dual da vida-morte como abertura do ser humano a Deus e ao próximo? Como falar do mistério de Deus para um mundo descrente e secularizado, que relega ao campo irracional todo simbolismo da vida, toda esperança? Ainda caberá um discurso escatológico num mundo como o nosso? Nossa resposta é de esperança: sim!
Acreditamos que o caminho para se construir a plausibilidade do discurso escatológico é recuperar o papel simbólico da esperança na vida e o propor como autêntico discurso humano pertinente à promoção da vida em todos os sentidos. Porque a fé não alienação, ela é garantia antecipada do que se espera. A tensão escatologia vivida na fé, na esperança abre um horizonte que oferece aquilo que nenhuma sociedade pode prescindir: uma esperança fundadora de um sentido pleno.[12] Buscando compreender o lugar do simbólico da esperança no mundo atual é preciso partir da afirmação de fé que o ser humano é criatural, e foi criado por Deus para viver em diálogo com ele. O ser humano como criatura em Deus estar capacitado para realizar-se na comunhão com Deus desde a criação.[13] Enquanto criatura de esperança o ser humano traz em seu interior o germe divino, ao qual Karl Rahner denominou de existencial sobrenatural.[14] O conceito existencial sobrenatural é a essência mais íntima no homem que o ordena para a visão beatifica. O fim concreto do homem em Deus é a primeira coisa que Deus deseja na criação do ser humano.[15] Deus depositou no coração do ser humano uma esperança que não decepciona: a promessa da benção e da abundância de vida.
O homem criado por Deus é, portanto, um ser aberto ao transcendente e em constante tensão a transcender seu mundo visível. Ele é ser sacramentalmente aberto a Deus, pela sua corporeidade capaz de construir com Deus um diálogo no qual se relacionam graça e resposta na fé. O ser humano, como afirma Borobio: “é criaturalmente sacramental, ou existencialmente sacramento.”[16]
O que se desejou esclarecer até aqui podemos sintetizar na seguinte premissa: a realidade simbólico-sacramental não é algo que se impõe ao ser humano como estranho a ele, como algo de fora que penetra o ser humano arbitrariamente. O simbólico-sacramento é algo que o ser humano carrega dentro de si, em forma potencializante de sacramentalidade da sua existência. Neste sentido são iluminadoras a guisa de ilustração as palavras de Borobio: “O homem faz parte do simbólico-sacramental, porque o simbólico-sacramental é parte do homem.”[17]
Como já afirmamos, o ser humano é simbólico. Ora, se é simbólico, então nele a marca característica de sua prensentificação no mundo consiste na vivência da fé sacramental a esperança do Reino. O ser humano, portanto, é simbólico na sua constituição de abertura de ser-para-Deus. A esperança, desta forma, não consiste numa realidade marginal, alheia, mas um modo essencial, pelo qual o ser humano cria relações e constrói comunidade com os demais seres e com todo cosmo na confiança das promessas de Deus.
A linguagem simbólica da esperança se expressa na vida concreto como ação simbólica que produz uma intercomunicação dos diversos personagens integrantes da sacramentalidade da vida: o mistério de Deus, o sentido da vida e da morte e as perguntas fundamentais do pós morte e a promessa da feliz imortalidade. Essa linguagem é sempre mediada pelo símbolo que não coincide plenamente com a realidade simbolizada, mas que ao mesmo tempo aponta para ela. Assim, a vida terrena já incita à plenitude da vida futura, e neste sentido a morte não é fim, mas plena abertura ao mistério da vida e do amor em Deus. Portanto a dimensão sagrada não é mito irreal, reflexão extrínseca ao homem, mas constitui o escopo da sacralidade da relação entre o divino e humano. Por isso, a pessoa de Jesus de Nazaré não é um mito fabricado pela psique e sim o lugar simbólico-real do encontro de Deus com a humanidade; Jesus é o sacramento do encontro de Deus com o homem.[18]
A realidade simbólico-sacramental é por assim dizer, uma maneira salutar que o homem possui para expressar no mundo sua esperança antecipada na fé. Por isso é imprescindível recuperar o valor e o papel do simbolismo na realidade do homem hodierno como condição para a relevância do discurso escatológico no contexto pós-moderno. O sentido da morte somente tocará ao homem atual quando se reconstruir a eficácia da linguagem simbólica da esperança na vida humana. O discurso sobre a morte somente terá espaço no cotidiano da pós-modernidade quando o simbolismo deixar de ser algo estranho a seu ser. Assim definimos o pensamento simbólico como algo consubstancial ao ser humano; que precede a linguagem e a própria razão discursiva, sem excluí-las. Não se trata de uma criação irresponsável da psique, mas algo que envolve todo o ser humano nas suas tarefas de ser aberto à comunicação.[19]
Negar ao homem uma dimensão sagrado-simbólica é fechá-lo; forçando-o a uma vida onde sua corporeidade é objetivada, dissecada, reduzida e coisificada; neste contexto não há lugar para a esperança. Quando isso acontece a vida perde seu sentido e sua centralidade, produzindo seu reverso, isto é, uma cultura de morte. Mas isto contradiz a existência humana que é ser aberto à salvação de Deus e, portanto, a comunicação da graça salvífica. É neste sentido que toda a teologia, de modo especial a escatologia, pode oferecer uma resposta de esperança ao ser humano de hoje.[20] Como afirma Paul Tillich o ser se caracteriza por possuir uma dimensão espiritual que une o poder de ser e o sentido de ser.[21] Assim o espiritual evoca a esperança no futuro presente já na história. Há uma esperança para o ser humano!

5. A escatologia: uma teologia da esperança diante do medo.

A escatologia apresenta-se como discurso de esperança e não como impostação sobre a morte. A partir daqui se entende a afirmação de São Paulo “se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é nossa pregação, vazia também a vossa fé... Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos (...). Se temos esperança em Cristo tão somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos como primeiro fruto dos que morreram. De fato, já que a morte veio através de um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos”[22]
A certeza da ressurreição de Jesus Cristo ilumina não apenas a morte do cristão, mas também sua vida. Se Deus chama à felicidade plena em sua casa,[23] a existência tem sentido maior que simples passagem por este mundo. Em Jesus o Pai propõe não apenas um “final feliz” após os sofrimentos desta vida, mas oferece nova perspectiva, inclusive ao sofrimento e à morte.
Não é fácil crer no amor de Deus quando se passa pela provação, pelas angústias, pela morte. Essas realidades têm profundo peso negativo no cotidiano da vida. Elas são responsáveis pela ruptura da unidade interior, pelo vazio existencial, pela falta de entusiasmo e pela sensação de inutilidade. O sofrimento provoca crise no relacionamento. A morte corta definitivamente a relação com os outros, com o mundo.
A experiência da finitude toma conta da pessoa, pondo em evidência os limites humanos, sua precariedade, sua fragilidade que torna o doente dependente dos outros, da família, dos amigos, dos médicos.
Tudo se torna ainda mais dramático no confronto com a verdadeira “paranóia” que o mundo de hoje vive em relação ao “culto à saúde”. O problema está se transformando em componente cultural e político. Além de exigir a qualidade de vida (o que é mais do que justo e compreensível), a sociedade moderna sonha com um mundo sem males, aqui e agora, com a vitória sobre a morte, com a conquista da imortalidade como uma vitória da humanidade neste mundo.
À luz da fé cristã, a morte não é uma ruptura irremediável, mas, acima de tudo, uma transformação: “Para aqueles que crêem em Cristo, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível”.[24] A morte não constitui final melancólico da existência humana, mas o término de uma etapa, em busca da vida plena. Também não deve ser vista como um castigo, mas como uma realidade que faz parte da história da humanidade, do ser humano e de tudo que vive.
Em Jesus Ressuscitado, essa perplexidade começa a ser iluminada pela fé e a esperança, e tomar sentido, porque nele brilhou para nós “a esperança da feliz ressurreição, e aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola”.[25] Ele morreu para redimir nossa morte: “Ele é a salvação do mundo, a vida dos homens, a ressurreição dos mortos”.[26]
Em Cristo ressuscitado, a ruptura interior é recomposta, a experiência do vazio dá lugar ao sentido da vida, a crise de relacionamento se transforma em comunhão com Deus e com os irmãos, os limites humanos e a precariedade do tempo presente são revestidos da imortalidade, a liberdade será definitivamente plena.
Nossa união com Cristo, aqui e agora, no transcurso desta vida, já constitui o início e a certeza da vida plena. Viver por Cristo, com Cristo e em Cristo é construir os alicerces sobre a Rocha da verdadeira esperança.
A vida eterna não constitui apenas uma realidade futura, para depois; já se inicia aqui e agora, à medida que se é fiel a Deus e se vive seus ensinamentos. A esperança na imortalidade brota de Cristo ressuscitado e se fundamenta na certeza de que Deus nos quer em sua casa, para sempre.
A Sagrada Escritura não diz a última palavra sobre a morte: o enigma e o mistério continuam. A Bíblia, no entanto, nos conduz àquele que tem a última palavra sobre tudo e sobre todos: Cristo ressuscitado! Só ele tem palavras de vida eterna! “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim, jamais morrerá”.[27]
Crer em Cristo ressuscitado é começar a viver, na esperança, a felicidade do novo céu e da nova terra, porque o Cordeiro Imolado, que reina vivo, faz novas todas as coisas.[28] Em Cristo, a humanidade poderá ter a certeza de que “nunca mais haverá maldição... não haverá noite, ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos”.[29] Seremos felizes, porque convidados para a Ceia do Senhor, a Ceia do Cordeiro! Então, nossa última palavra, mais do que um pedido, será uma aclamação: Vem, Senhor Jesus!
[1] BENTO, XVI Papa, Carta Encíclica Spe Salvi: sobre a Esperança Cristã, Paulus/Loyola, São Paulo, 2007, no 1.
[2] HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, II parte, 5ª edição, Vozes, Petrópolis, 1997, 34-37.
[3] Fritz Leist, Gesundheit krankheit de Seele, p. 34. In BLANK, R. J., Escatologia da Pessoa: vida morte e ressurreição, escatologia I, 6ª edição, Paulus, São Paulo,2006, p. 8
[4]KÜBLER-ROSS, E., Morte, estágio final da evolução, p.30. In BLANK, Op. cit, p. 9
[5]KÜBLER-ROSS Op. Cit., p. 30. In BLANK, Op. cit, p. 9
[6] KÜBLER-ROSS Op. Cit., p. 189. In BLANK, Op. cit, p. 10
[7] Boff, Leonardo. Tempo de Transcendência, O Ser Humano como um Projeto Infinito, p 27
[8] Idem, p 22
[9] cf. Jean-Paul Sartre, O Ser e O Nada. Introdução, p 12-40
[10] Schopernhauer, O fundamento da Moral, IN Boff, Leonardo. Princípio de Compaixão e Cuidado, p.96
[11] Com relaçao a essa situação é importante ler o que afirma Rahner em seu ensaio sobre a possibilidade de se crer hoje. Cf. RAHNER, K. Est-il Possible Aujourd’hui de croire? Tours-France, Maison Mane, 1966, pp. 63-71
[12]Cf. BOFF, Lina, A Spe Salvi Sugere o Vaticano II? Do Continente da Esperança, In REB, fasc. 271, jul-2008, Petrópolis, 2008, pp. 656-659.
[13]Cf. BOROBIO, D., Pastoral dos Sacramentos, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 63
[14] Cf. Rahner K., Curso Fundamental da Fé, Introdução ao conceito de Cristianismo, 2ª ed., São Paulo, Paulus, 1989, pp. 96-100
[15] Cf. RAHNER, K. O Homem e a Graça, São Paulo, Paulinas, 1970, p. 53
[16] BOROBIO, op. cit, p. 63
[17] Idem, ibidem.
[18] Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, Sacramento do Encontro com Deus:Estudo Teológico sobre a Salvação mediante os Sacramentos, 2a edição, Petrópolis, Vozes, 1968.
[19] Cf. ELIADE, M., Imagens e Símbolos. São Paulo, Martins fontes, 1996, pp. 7-9.
[20] Cf. RAHNER, K. O Homem e a Graça, São Paulo, Paulinas, 1970, pp. 23-26
[21] TILLICH, P., Teologia Sistemática, 5ª edição, São Leopoldo, Sinodal, 2005, pp. 566-582.
[22] 1Cor 15,12-22
[23] cf. Jo 14,1-3
[24] Prefácio da liturgia dos mortos
[25] Prefácio da liturgia dos mortos
[26] Prefácio da liturgia dos mortos
[27] Jo 11,25-26
[28] cf. Ap 21,5
[29] Ap 22,3-5

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