quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

STATUS QUESTIONIS: O Pensamento Pós-moderno


A estrutura atual da chamada pós-modernidade obriga-nos a pensar o ser humano dentro de um paradigma onde predomina a racionalidade técnico-científica como critério à veracidade de tudo. Isto se impõe como um problema à fé cristã, à medida que, tal racionalidade coloca-se como oposta ao discurso de um deus pessoal. Na tentativa de dialogar com esse paradigma o presente trabalho deseja colher as frutuosas intuições lançadas por Karl Rahner neste intento. O giro antropológico que Rahner elaborou pode ser de grande proveito no diálogo com o homem hodierno. E esse trabalho tentará demonstra isto.
A elaboração sobre Deus parte, não mais da natureza, como se fazia na escolástica, mas da existência humana. Neste sentido Rahner aplicou à teologia o método transcendental que se perguntava pelas condições de possibilidade do sujeito que conhece a Deus. Assim Rahner partia da inteligência e liberdade humana chega a afirma Deus como mistério último e horizonte infinito que sustenta a própria subjetividade humana. Com essa idéia o mistério da revelação que se dá plenamente na encarnação não é algo totalmente alheio, mas satisfaz a nossa natureza. Com isso se afirma que no ser humano coabita uma realidade sobrenatural que nosso autor vai chamar de “existencial sobrenatural” que orienta o homem à busca de Deus. Se Deus não consiste numa existência totalmente fora do mundo, mas está sempre implicando na experiência humana, então todos os aspectos da vida, mesmo os mais profanos estão inexoravelmente ligados a ele.
O problema que vamos enfrentar como pode perceber é a relação entre natureza e graça. A problemática da graça é central à teologia cristã. A questão que se impõe é como conciliar a transcendência e a gratuidade da graça com a natureza humana, que de algum modo se sente atraída por ela. Na tradição católica o primeiro a tematizar isso foi o doutor angélico. Para Santo Agostinho a natureza humana possui um desejo de Deus, de encontrar nele seu refugio. Ele assim expressava nas Confissões: “Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.”[1]
Também Santo Tomás de Aquino que se debruçou sobre o tema. Ele declarou que o fim último do ser humano é a visão beatifica de Deus, mas que isso está para além das possibilidades da criatura espiritual. A tese de Tomás é a que o ser humano possui simultaneamente um fim natural e outro sobrenatural. O primeiro é a beatitude terrena e o outro é o objeto da revelação de Deus. Ora, enquanto o primeiro é possível mediante a natureza o segundo é impossível sem o auxilio divino. Mas qual o problema que subjaz daí? Como fica a gratuidade da graça: ou ela é algo totalmente estranho e se salva a sua gratuidade, porém ela seria para o homem algo imposto de fora, ou a ela está no homem como elemento presente na natureza última do homem e salva a relação graça e natureza, mas elimina-se a gratuidade, pois a graça não seja mais uma ação livre de Deus e sim algo obrigatório uma vez que ela é inerente à natureza humana.
A corrente da teologia neoescolástica para proteger a gratuidade da graça, negou a existência de qualquer tendência natural do ser humano ao destino sobrenatural da visão beatifica de Deus. Desta forma, a graça consistiria numa realidade justaposta à natureza. Ela nesta corrente de pensamento tem que ser concebida como algo imposto à natureza humana por um decreto divino extrínseco a ele. A natureza humana por si mesma não manifesta por si mesma nenhuma tendência a vida sobrenatural da graça. A natureza humana possuiria apenas a Potentia Oboedientialis,[2] que se expressaria como uma não repugnância ao destino sobrenatural. A fim de salvaguardar a gratuidade da graça é preciso negar Deus como fim último da natureza enquanto tal. O único fim que o ser humano inevitavelmente necessita está ligado à sua natureza e proporcional a ela.
Essa posição acima exposta tem duas vertentes uma agostiniana (o desejo pelo sobrenatural) e outra aristotélica (com a idéia de natureza como o princípio essencial permanente que faz cada coisa ser o que ela é). Tomás buscou conciliar essas duas posições afirmando, como já vimos, que o fim de toda criatura racional se encontra no conhecimento de Deus. O homem deseja naturalmente conhecer a causa primeira de tudo que existe. E se Deus é princípio fundante de tudo, o fim último do homem é conhecer a Deus. [3]
Segundo a posição de Tomás o ser humano busca simultaneamente os fins últimos: o natural e o sobrenatural. O primeiro diz respeito com a beatitude aqui na terra, sendo proporcional à natureza; o segundo é o objeto da revelação, e consequentemente é inacessível sem a ajuda divina e implica em ver a Deus como ele é. O problema desta posição tomista é como conciliar as afirmações de que a natureza possui um desejo de ver a Deus com a insistente questão de que o fim sobrenatural não pode ser atingido pelos próprios meios naturais sem a ajuda divina.
Desse questionamento nasceu a posição que ficou conhecida como externalismo. Segundo essa corrente o desejo natural de conhecer surge pelo conhecimento naturalmente adquirido dos efeitos sobrenaturais. A graça é concebida como algo transcendente e totalmente fora do alcance humano, não havendo nenhum ponto de convergência entre ela e o ser humano, pois a natureza humana somente busca aquilo que lhe é proporcional à sua natureza. A graça é relegada a algo imposta de fora sobre a natureza humana, que se encontra fechada em si mesma.
Na tentativa se solucionar essa questão teólogos renomados como Henri De Lubac, Bouillard, R. V. Talthasar e K. Rahner enfretaram o desafio. Aqui não vou entrar em pormenores, só quero destacar as intuições de Rahner neste ponto. Rahner entra no debate primeiramente apontando os perigos da posição externalismo, mas também critica De Lubac por forjar uma posição que punha em risco a gratuidade da graça. Para resolver a questão o nosso teólogo parte da idéia do existencial sobrenatural presente na natureza humana, mas que não se confunde com a essência da natureza.[4] É importante lembrar que este existencial sobrenatural não é a graça e sim a disposição positiva que divina presente na natureza que a faz buscar a visão beatifica de Deus. Com ele Rahner buscará explicar a ordenação da natureza humana para a visão beatifica de Deus. Ele apela à noção de “natureza pura” como condição necessária para preservar a gratuidade da graça. Para aludir sobre a relação entre natureza e graça ele fará uso da noção de potência obediência entendida como uma receptividade positiva para graça e não apenas como mera resistência ou não repugnância à graça divina.
Com o existencial sobrenatural Rahner tentava salvaguardar a gratuidade da graça, mantendo simultaneamente um ordenamento intrínseco da existência humana para a visão beatifica de Deus. Para nosso autor, anteriormente a qualquer decisão livre, todo ser humano encontra-se intrinsecamente ordenado, pela graça, para a visão de Deus. Se a humanidade encontra-se sempre no desejo de Deus (1Tm 2,4), todos são chamados para um fim sobrenatural. Assim o existencial sobrenatural é a chão concreto oferecido por Deus para que todos os seres humanos possam buscar a visão beatifica de Deus.
Todavia, para Rahner a natureza humana é uma realidade complexa que coexiste tanto a natureza pura como o existencial sobrenatural. A natureza pura é um postulado necessário para explicar a situação do ser humano, que mesmo sendo natureza pura, nunca a experimenta como natureza pura separada do existencial sobrenatural. Isso quer dizer que mesmo sendo necessária a noção de natureza pura, para salvaguardar a gratuidade de Deus, na prática, nunca poderemos precisas o conteúdo exato desta natureza. Ora, isso fez perceber que os dois conceitos não resolvem de tudo o problema da relação entre natureza e graça. Rahner terá que apelar para tanto ao conceito de potência obediência. Trata-se da própria natureza humana como um todo, que é capaz de se abrir para a comunicação divina. Tal potência não é algo externo, mas uma ordenação íntima de união do ser humano com Deus no existencial sobrenatural. Mas é bom salientar que essa potência não é constitutiva da natureza humana. O existencial sobrenatural ordena a existência humana ao encontro com Deus. E desta forma, o ser humano é caracterizado por uma potência de obediência que torna possível a revelação divina.
O centro da solução rahneriana ao problema da relação entre natureza e graça encontra-se no fato de que a ordenação humana para a visão beatifica de Deus é parte constitutiva de sua própria historicidade, e não de sua essência como espírito. Isso quer dizer que o ser humano é constituído pela natureza pura e pelo existencial sobrenatural.
Nosso trabalho buscará analisar como Rahner sustentou essa posição que buscava sair do externalismo e sem também por em risco a gratuidade da graça. A tarefa será, portanto, traçar os caminhos que nosso autor perfez para construir seu argumento.
[1] AGOSTINHO, S.Confissões,18º edição, São Paulo, Paulus, 2005, p. 15
[2] Cf. RAHNER, K. O Homem e a Graça, São Paulo, Paulinas, 1970, pp. 39-41.
[3] Cf. AQUINO, Tomás de, Summa Teológica, Tomo III parte I. Vozes, Petrópolis, 2004.
[4] O conceito existencial sobrenatural é essência mais íntima no homem que ordena-o para a visão beatifica. “Se Deus quer um fim sobrenatural e indevido e quando ele o quer (ou deve querê-lo) de tal forma que o ser criado tenha para com ele uma disposição de caráter positivo e absoluto, então Deus também deve dar-lhe essa disposição para tal fim. Mas não se segue daí que essa disposição deva pertencer à sua natureza...” Cf. RAHNER, K. O Homem e a Graça, São Paulo, Paulinas, 1970, p. 53

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