sábado, 21 de janeiro de 2012

Exortação Evangélica a pobreza

O Novo Testamento é rico em lições, diretas e implícitas, de pobreza para o Reino. A passagem do Evangelho de Mt 2, 1-12 tem para nós, religiosos, um dinamismo especial: é uma proposta clara da experiência, do significado e do valor da pobreza no amor cristão, no abandono da fé. O Pai nos indica a indispensabilidade da pobreza quando, em sua providência, ordena a Anunciação a uma virgem simples e pobre; o nascimento do menino na impotência, na pura nudez, num ambiente estranho, com o mínimo indispensável, sem comodidade. Os acontecimentos da Epifânia pareceriam quase imprudentes e contraditórios aos olhos de quem não tem fé... Reis deixam o seu ambiente seguro para oferecer presentes à “classe inferior” sem garantia de restituição, de interesse, de recompensa. Além disso, a mensagem do anjo a José não é unir-se aos reis para viver eternamente na miragem encantada de proteção e de abundância dos seus castelos, mas continuar em sua pobreza fiel e criativa com força renovada e restaurado vigor.
As narrações do Evangelho sublinham de novo o valor da pobreza. Cristo fala da confiança das aves e dos animais. Ele e seus seguidores vivem frugalmente do que possuem numa caixa comum, e socorrem os pobres. Cristo promete a bem-aventurança aos pobres de espírito e convida o jovem a vender tudo... Cristo nos lembra que quem ama seu pai, sua mãe ou a própria família mais do que a ele, não é digno do seu Reino. Finalmente, o último abandono de Cristo na cruz nos fala da essência da pobreza.
No convite à pobreza por parte da Escritura vemos que Deus propõe um modo de vida novo para curar a velha concupiscência. Ele nos diz que, para segui-lo, devemos deixar tudo, viver uma vida contemplativa na ação, desenvolvendo a imagem de Cristo em nós mesmos por meio da aceitação humilde da nossa necessidade de sermos salvos, por causa da nossa finitude: a nossa consciência e das nossas capacidades. Portanto, para todos os cristãos, viver segundo o Evangelho implica necessariamente a pobreza.
Além disso, se estudarmos as características da consagração do cristão a Cristo na fé, na esperança e na caridade, dentro da estrutura da vida religiosa, veremos que o conselho de pobreza é uma de seus elementos: a vida religiosa encarna a fé, a esperança e a caridade através de uma pobreza radical “voluntariamente abraçada à imitação de Cristo”[1]. Teologicamente, é uma consagração do corpo, dos bens e da vontade como expressão de nossa presença diante de Deus e de nossa presença no mundo e diante do mundo, um “condividir a pobreza de Cristo, que de rico se fez pobre para nossa salvação, para enriquecer todos nós com sua pobreza”[2]. Se procurarmos, pois, ser autênticos religiosos, o conselho de pobreza será indispensável. Mas o que significa, o que é o conselho de pobreza?



II. Definição do conselho de pobreza: os ideais

O conselho de pobreza pode ser definido de dois modos: especificando o que não é, e descobrindo o que é.
Antes de tudo, a pobreza não é um conceito, não é um alei, não é uma coisa ou uma substância que pode ser analisada, dividida ou vista através de um filtro para separar-lhe os elementos culturais e psicológicos da essência puramente evangélica[3]. A pobreza, diz-nos Orsy, é um dom intangível: uma atitude que nasce de uma relação com o mundo material é transformada: alguns objetos, alguns níveis do nosso ser, mesmo permanecendo vitais e necessários, diminuem de importância; outros tornam-se ricos de significado.
Reconhecendo o amor pessoal de Deus em nossos corações, a sua ação em nossa vida, nasce em nós a consciência de que pertencemos a Cristo. Verifica-se uma mudança de corações, de atitudes. Tornamo-nos conscientes do fato de que alguém entrou em nossa vida. A dura crosta do nosso egoísmo foi penetrada. Consentimos em abrir nossos corações ao amor de Deus, abandonar-nos a ele, e estamos dispostos a aceitar toda alegria e dor que estão ligadas a esta mudança de viver de uma maneira mais profunda do que no passado.
A pobreza, portanto, deveria ser um testemunho dos nossos valores interiores: a fé, a esperança e a caridade em Cristo. Deveria revelar a nossa total e atenta confiança nele. A pobreza torna-se uma atitude interior, que se desenvolve a partir de um valor profundo. Vista deste modo, a pobreza não é simplesmente um comportamento, assim como não é um interesse pelas coisas; é antes, um interesse por um Ser, por uma Pessoa. É uma atitude que se torna uma condição, uma situação, um complexo de atitudes, e a dimensão de uma vida integrada entre as comunidades e dentro delas. É uma atitude encarnada em um modo de vida que se torna um símbolo exterior de um abandono interior. O Pe. Thomas Clarke define-o como símbolo criativo de um tipo de compromisso que assumimos com Deus e entre nós: um modo característico de ser com Deus e com os outros homens[4].
Segue-se, além disso, que a pobreza não é a privação de bens materiais, de pessoas ou de interações sociais. A pobreza é uma integração, uma libertação e uma revelação. É uma íntima consciência de tudo o que Deus nos deu a nível mais profundo da nossa existência; é, ademais, um modo de dar a nossa limitação àquele que nos deu todas as coisas, de modo a sermos completados e transformados nele. Assim, a pobreza é uma expressão da integração do nosso ser, um ordenar coisas e pessoas segundo o significado essencial que elas têm em si mesmas e para nós. A pobreza se torna a expressão daquele Cristo e pelo Reino, vista deste modo, torna-se uma libertação. Organiza e integra. É uma libertação de preocupações excessivas no que se refere à alimentação, ao vestuário, a casa, às pessoas particulares. É uma disponibilidade e um desapego num sentido mais amplo. O fato de não pertencermos mais a nós mesmos, isto é, este despojar-nos de nós mesmos, implica desarraigar o nosso senso de posse em todos os níveis e, ao mesmo tempo, radica-lo em Cristo. A pobreza torna-se liberdade para consolidar um modo de viver que manifesta, mais que tudo, o fato de pertencermos a Cristo. O nosso desprendimento exterior exprime, portanto, uma inspiração fundamental: um desapego interior positivo do nosso ser.
É claro, portanto, que a pobreza não é uma privação, mas uma integração de todos os níveis do nosso ser, um distanciar-nos de cristalizações em um nível específico para sermos livre de conseguir revelar a intimidade total e integrada com Cristo através destes. Deixar-se a si mesmo é um abandono, não uma privação, porque no abandono se encontra a pobreza do ser verdadeiramente humano e a riqueza que Cristo possuía através da intimidade com o Pai.
Como não é um caminho, não é uma privação, mas uma atitude universal íntima, a pobreza não se exprime necessariamente em formas externas que sejam totalmente uniformes. Inácio não era Benedito, tampouco Francisco. Clarke escreve:

“Os juízos que se referem a esta dimensão da nossa pobreza, o nível da sobriedade material, a medida da autonomia dada aos indivíduos ou aos grupos locais, o problema dos ganhos etc. não deverão ser considerados com base em princípios prefixados ou com referência a um ponto específico, mas através de um discernimento de congruidade, referindo-se sempre à totalidade da vida do indivíduo... ou da comunidade”[5].

A atitude interior é a do abandono, e as expressões externas devem ser coerentes com esta atitude, mesmo que possam assumir formas diversas. Não existe uma maneira “perfeita” de viver a pobreza, porque esta é um meio, não um fim. Nenhum amante verdadeiro se sente satisfeito com as satisfações do seu amor. Mesmo quando deu tudo, acha que não basta, que é nada. Embora o nosso ideal de pobreza seja abandono de Cristo ao Pai, cada um tem uma simbolização particular, (Istoé, uma expressão vivida) desta atitude interiorizada, com base nas prescrições da própria Congregação, que é única e particular[6]. Cada um procura a liberdade do coração, mas alguns encontram dificuldades interiores em responder plenamente. Por este motivo, as manifestações exteriores diferem, porque o valor da pobreza pode ser interiorizado, em graus diversos, em cada pessoa.
Finalmente, não se pode falar da pobreza em termos isolados. Podemos, por motivos de discernimento, focalizar nela a nossa atenção, mas devemos pô-la em relação com a comunidade, com a virgindade, com a obediência, com a consagração a Deus, com o serviço e o testemunho apostólico. Como assim? Simplesmente porque a mesma relação de amor implícita permeia os outros votos e atos de religião e encontra complementação nestes.
[1] Decreto Perfectae Caritatis sobre a renovação da vida religiosa, nº 15, Edições Paulinas, Roma, 1966, p. 392.
[2] 2Cor 8,9; Mt 8,20.
[3] T. Clarke, S.J., “Witness and Involvement” in The Way. Supplement, nº 9, 1979, p.49.
[4] T. Clarke, op. Cit.
[5] Id, “Discerning the Ignatian Way in Poverty Today”, in The Way. Supplement, nº 9 (1979), p. 58.
[6] W. Yeomans, “ Come Follow Me” in The Way. Supplement, nº 9 1970, p. 58.

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