segunda-feira, 26 de abril de 2010

A relação entre utopia e escatologia na teologia.

Introdução.
Há relação entre utopia e escatologia? Em que sentido a utopia pode contribuir com a teologia? Essas perguntas só serão respondidas na medida em que formos capazes de reconhecer que, estando na história, a Igreja e a teologia não podem prescindir do aspecto histórico na apresentação da sua mensagem. Outra coisa muito cara neste intento será compreender que ao ser humano moderno algo só lhe diz respeito quando esse o atinge existencialmente.
A utopia há muito tempo acompanha a história humana, desde os tempos clássicos até hoje. O artigo monográfico Utopia pretende verificar como o conceito de utopia foi sendo construído ao longo da história. A meta é demonstrar que o conceito histórico de utopia possui uma relação de proximidade com a escatologia.
I. Aspectos históricos do conceito de Utopia:
A primeira pessoa a escrever de forma mais consistente sobre o tema da utopia foi Tomás More. Ele escreveu o livro Utopia no ano de 1516; período que coincide com a reforma de Lutero, o qual venha exigir uma revisão de idéias políticas e sociais, que já estavam em gestação em todos os países da Europa. Sob a bandeira da liberdade o homem moderno exigia mudanças nas estruturas do pensar e do viver concretos. Tomás More, no seu livro, vai tratar destas questões da revisão de ideais políticos e sociais, buscando uma renovação das estruturas sociais e políticas de seu tempo, mas, no entanto, sem propor uma revolução. Como veremos o conceito de utopia formulado por More não possui uma tônica de retorno ao paraíso ou volta ao passado glorioso, mas uma busca de um futuro mais justo e mais solidário, sobretudo para aqueles menos afortunados.
A utopia de More será, desta forma, um conceito bem diferente daquelas antigas visões paradisíacas das utopias clássicas, que desejavam criar uma idéia de retorno ao paraíso, reconstrução de um estado perfeito. A utopia de More fala de um estado mais justo, onde os bens são comuns e as pessoas não passam privação e opressão. A utopia de More não é idealismo irreal e sim possibilidade ético-moral de uma sociedade renovada na justiça e no direito.
Este estado ideal de More casa-se muito bem com a busca moderna por liberdade, igualdade e fraternidade, que anos mais tarde a história iria assistir com a Revolução Francesa. More formulou o nome desse estado ideal utilizando dois termos gregos: o advérbio ou (não) e o substantivo topos (lugar). Utopia seria desta forma um lugar impossível, uma realidade ideal, uma ideologia. Mas More ao escrever seu livro o fez pensando na escandalosa situação de exploração a que eram submetidas as classes pobres. O sonho de um estado utópico, na verdade é anelo em meio ao escândalo da pobreza e exploração das classes economicamente frágeis. Todavia More não pregava uma revolução em vista de um paraíso terrestre, mas desejava apresentar um programa prático de construção de uma ordem social e política mais justa. More não prega a revolução, porém incita a reforma. A sua utopia baseia-se na transformação concreta, não é idealismo vago e pueril, mas um processo irreversível em direção ao futuro. Aqui se encontra a grande diferença da utopia de More e as antigas utopias, essas últimas tinham uma visão de retorno ao “paraíso” volta ao estado perfeito; para More a utopia era algo futuro, um processo que inicia já, mas que não acaba na história porque é processo histórico. Estar presente em cada etapa da história, mas sempre aberta, lançando ao futuro e não retrocedendo passado. Por isso a utopia de More tem o significado de esperança nas capacidades humanas e numa renovação ética. É exatamente aqui que se relaciona o discurso da utopia e com a escatologia. Elas são sempre um discurso de esperança para o futuro, que não é “mais além” e sim um processo histórico em direção ao futuro realizável e esperançoso no Deus-homem Jesus e suas promessas.

II. O atual interesse pela utopia de More.
A utopia de More como vimos é uma esperança aberta ao futuro e por isso torna-se, hoje, um símbolo poderoso, sobretudo quando o homem descobre que não é somente homo faber e homo sapiens, mas que é também homo utopicus, isto é, que tem esperanças, ideais, sonhos e que está aberto ao transcendente.
Anteriormente as diversas propostas de um ser humano melhor, que vivesse num mundo mais perfeito carregavam sempre um tom de retrospectiva idealizada num estado original do homem. Nesta linha apresentam Platão, Tommaso Campanella e Francis Bacon e alguns mitos sagrados (paraíso bíblico). A novidade de More é que seu estado ideal nasce do resultado do esforço ético do homem.[1] A utopia de More é antes de tudo secularização da concepção de céu e não um retorno ao paraíso terrestre. [2] A utopia de More é a auto-realização consciente de tipo de comunidade humana ideal, mas não inatingível, que ultrapassou a fase do individualismo. E é assim que essa utopia representa um autêntico passo a frente no caminho da auto-realização do homem. Assim a utopia de More ajuda a colocar a escatologia não mais como algo do para depois da morte ou um retorno ao passado primeiro, mas como prenúncio do novo sentido de responsabilidade cristã em fase do mundo. Desta forma o escaton não é alienação e sim tensão entre ser e porvir. O teólogo não deve aceitar a afirmação de que o desejo de felicidade futura aliena o homem de si mesmo.
A verdadeira força da utopia consiste em que esta não se contenta com o status quo, e estimula a energia progressiva, que não pode ser detida pelo sentido de tragédia da realidade humana. Caso a história tenda a transformar-se em história da salvação, tal transformação não poderá nunca ser levada a cabo por meio da imitação da história passada, mas sim por práxis cristã a exercer sobre a história futura.
III. Alguns fenômenos presentes na utopia.
A superioridade de uma utopia reside no seu caráter evocativo e no estímulo que ela trás ao homem em trabalhar para transformar seu presente em vista de um futuro melhor. Todavia esse mesmo dinamismo é também seu ponto fraco, pois quando uma utopia se reduz a ideologia perde sua influência estimulante de desejo do seu objeto. Uma constatação perigosa é que a utopia é por natureza, vaga, ou seja, não está presa a um momento histórico, logo constantemente ameaçada pelas ideologias.
A ideologia possui uma convicção fundamentada na realidade, mas que só existe enquanto desejo de satisfação de interesses próprios. Já a utopia só é funcional, ou seja, somente ganha sentido de existir enquanto é ficção literária, visão utópica não é medida ou comensurada por uma realidade delimitada. Quando a ideologia invade a utopia o utopista torna-se um fanático, um alienado, um fundamentalista, pois colocará em ação todos os meios possíveis para realizar um ideal impossível (ex. a utopia ideologia marxista com o ideal do ser humano puramente produtivo; e o cristianismo com o ideal do ser humano puramente espiritual ). Os conceitos, paraíso, céu, povo de Deus, e seus contrários, deserto, inferno, pagãos, têm existência real nas utopias, mas tornam-se irreais quando neles se infiltram ideologias.
IV. A utopia e seu aspecto sócio-político.
É impossível separar os conteúdos sociais e políticos de qualquer utopia. Toda utopia traz um sonho de transformação social e política das estruturas; toda utopia é sempre uma tentativa de mudança de vida concreta, sem, no entanto se prendar a uma realidade isolada. A utopia é perigosa à ordem dominante porque implica sempre uma reação negativa a tudo que existia até aí, propondo-se criar uma nova ordem na qual os elementos atuais sejam eliminados (por isso no futuro nascerá novo céu e nova terra e não uma restauração das coisas antigas; nascerá uma nova criatura). O utopista de More deseja criar uma nova sociedade onde desapareçam o mal, o medo e as diferenças; onde o homem no seu conceito tornar-se-iá um ser puramente social.
V. A função positiva da utopia.
A utopia não se prende a uma realidade geográfica e cultural reduzida ou específica, ela ultrapassa qualquer esfera quantitativa. A grande contribuição da utopia é abrir caminhos à esperança. A função positiva da utopia, portanto, deverá ser procurada, antes de tudo, na alteração qualitativa do modo como o homem concebe o futuro. Uma esperança deliberada e consciente toma o lugar da esperança vaga e inconsciente desse futuro. Tudo isso somente acontece porque a utopia não é conceitualismo vazio, mas ação, prática responsável em vista do futuro.
VI. Qual o significado da utopia na teologia.
Primeiramente que o conceito de utopia sendo assim uma ação histórica em vista do futuro melhor e mais justo, coincide com as grandes utopias cristã e judaica, de um reino de justiça, paz e amor. As utopias judaico-cristãs ganham um fundo todo especial, pois elas exigem não ser reduzidas a arqueologias religiosas, e reivindicam seu lugar nas grandes questões da humanidade hodierna.
A reflexão da utopia na teologia comporta uma primeira conseqüência, pois a partir dessa relação não se pode mais pensar na escatologia como um retorno ao passado, uma volta ao paraíso primitivo; os novíssimos são um futuro aberto no presente.
Outra questão que a utopia acarreta à teologia consiste na efetivação de uma ética que permita ao homem realizar na sua própria pessoa essa esperança futura. A utopia gera uma exigência que consiste em começar a desenhar aqui e agora a esperança futura. Uma exteriorização da fé sem um progresso ético-moral, político-social é esperança vaga ou cega. Uma escatologia sem raízes na realidade concreta torna-se um fetiche e não atinge o homem contemporâneo. O poder convincente de uma utopia não é o paradisíaco e sim a unidade entre aquilo que se espera e a realização daquilo que se espera. Em outras palavras viver já na terra, na vida diária, aquilo que nossa esperança almeja plenamente no futuro.
[1] É claro de que para nós cristãos o Escaton não é somente fruto do ético, mas ação de Deus realizada na encarnação do Deus-homem Jesus. A Ressurreição e Glorificação são o sim de Deus ao futuro da humanidade. O escatológico neste sentido não é um idealismo vago e sem meta. Nossa segurança é a certeza do Deus vivo que ressuscitou e glorificou a Jesus de Nazaré. A carne assumida e glorificada pela ressurreição aponta ao futuro aberto, que já iniciou na vida de Cristo e deverá transparecer na vida concreta das comunidades escatológicas.
[2] Na própria bíblia também vemos desenvolvimento da utopia, pois de no Genesis fala-se do paraíso com saudosismo, já no Apocalipse se anuncia a utopia de novos céus e nova terra.

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