segunda-feira, 26 de abril de 2010


LITURGIA DAS HORAS: A MEMÓRIA DE CRISTO AO LONGO DO DIA

Resumo

A liturgia das Horas é um método de oração que nos coloca em horas determinadas em comunhão com Cristo e, assim, nos mantém imersos no seu mistério pascal, Tem sua fonte na tradição judaica, que a cada três horas costuma fazer, através do canto dos salmos, a memória de Deus Criador, a fim de reforçar os compromissos da Aliança. A Igreja primitiva seguiu a mesma intuição, direcionando-a a Cristo. Mas foi, aos poucos, transformando esta oração preciosa de todos os cristãos em uma oração de alguns membros seletos, ligados geralmente à vida sacerdotal, monástica ou consagrada. A reforma do Concílio Vaticano II restaurou a liturgia das Horas e pretende que seja devolvida a todos os fiéis.



Cantar as maravilhas de Deus através dos salmos

Entre outras finalidades, certamente os textos bíblicos foram escritos para serem proclamados na Liturgia. Há um livro, porém, o Saltério, que foi escrito para ser cantado pelo Povo de Deus em memória das maravilhas da Salvação. Estas maravilhas são páscoas realizadas nos momentos em que as forças humanas se esgotam e o homem se encontra no seu limite. Só uma intervenção de Deus poderia salvá-lo. Assim foi com o Êxodo, que a é maravilha mais visível e simbólica do Antigo Testamento, pela qual Israel atravessou o Mar Vermelho a pé enxuto rumo à Terra Prometida, quando estava encurralado entre o mar e o poderoso exército do Faraó, arrependido de ter deixado o povo sair do Egito. Se não fosse a intervenção de Deus, Israel teria sucumbido ali.
Então, as maravilhas representam sempre uma passagem libertadora, uma páscoa de salvação.
O Saltério é composto de 150 salmos. São canções litúrgicas que expressam o louvor, a gratidão, as súplicas ou os gemidos de quem precisa ser salvo. Há salmos de súplica que representam situações em que a pessoa está prostrada diante de uma doença grave, um julgamento iníquo, um deságio carregado de solidão e desespero, às vezes motivado pelo próprio pecado, etc.
Os salmos são o principal conteúdo da Liturgia das horas, tendo como contorno cantos bíblicos, leituras bíblicas, patrísticas, dos santos, do magistério, com seus responsórios.[1]

Porque Liturgia das Horas?

Chama-se liturgia das Horas, porque se trata de uma oração em momentos determinados ao longo do dia, para santificá-lo e consagrá-lo como realidade fundamental da nossa existência. Na sua alternância de luz e trevas, o dia nos dá a noção básica do tempo. Cada dia vivido é uma chance ímpar que não convém desperdiçar: ensinai-nos a contar nossos dias, para que tenhamos um coração sábio (Sl 90, 12).
O dia representa ao mesmo tempo a força e a fragilidade humanas. Cada amanhecer é um dom da vida, uma graça ofertada. Viver cada dia nos dá a noção do provisório de uma existência de peregrinação em busca de algo que se esconde atrás do horizonte e se ofusca nas brumas da noite, mas renasce em cada amanhecer. É como um sonho bom que insinua em cada gesto de comunhão, ensaio saboroso do que experimentaremos no futuro em plenitude.
Então, viver é um dom recebido, que de tão gratuito torna-se uma missão e compromisso. Viver é uma aventura que recomeça a cada dia.
Como a luz é o fator preponderante que nos fascina e representa a energia cósmica e ecológica que sustenta a vida, tornou-se símbolo da vida e da fé. No tempo, o dia é interrompido pela noite. Mas na nossa relação com Deus não pode haver interrupção. A Bíblia diz que devemos orar sem interrupção. Esta tese é muito desenvolvida no Novo Testamento: Orai sem cessar (1Tes, 5,17; 1, 1; 2,13; Lc 18,1; Rm 1,10; 12,12; Ef 6,18; Fl 1, 3-4; 4,6; Cl 1,3; 4,2; 2Ts 2,8; 5,5; 2Tm 1,3).
Uma forma de se interpretar esta oração contínua é a liturgia das Horas, pois no decorrer do dia, a Igreja e cada cristão vão desfilando suas preces como um rosário ininterrupto. Hoje sabemos que o dia, teoricamente dividido em 24 horas corresponde ao movimento de rotação que a terra faz em torno da linha dos seus pólos exatamente em 23 horas, 56 minutos e 4 segundos. Interessante notar que esta rotação se faz de oeste para leste, isto é, versus oriente, direção em que se inspira a oração, já que o nosso Salvador veio do Oriente. Até parece que a terra mesma executa o seu movimento vital sempre em direção do Oriente, atraída pelo sol, símbolo maior de Cristo, como uma oração sem interrupção. Por isso é que uma vida de oração é orientada, isto é, voltada para o Oriente de onde nos proveio da salvação.

As horas canônicas da oração.

As horas canônicas ou consagradas para a oração são as horas tradicionais das preces litúrgicas à base dos salmos. Conforme sua origem judaica, constituem o horário ternário, ou seja, a alternância de três em três horas, que substancialmente dividem o dia entre oração e trabalho: 6 horas da manhã (primeira hora), 9 horas da manhã (hora terceira), meio dia (hora sexta), três horas da tarde (hora nona) e 6 horas da tarde (hora décima segunda). A forma mais simplificada de cumprir este esquema é fazer a oração da manhã, do meio dia e da tarde.
A Igreja primitiva continuou o costume hebraico de rezar de três em três horas para fazer memória do mistério de Cristo e, assim manter-se sempre orientada ao longo do tempo. Suposto que a primeira hora da oração é pelas seis da manhã, os Apóstolos aparecem fazendo também a oração das nove horas (At 2,15), que foi justamente quando ocorreu o Pentecostes (At 2,15), do meio dia (10,9), das três horas da tarde, também conhecida como a hora do sacrifício vespertino (At 3,1). Certamente rezavam no momento que correspondia ao lucernário do Templo, onde o acendimento das luzes representava a iluminação interior diante das trevas da noite.
No século III, em Roma, a tradição de orar de três em três horas, inclusive à meia noite, estava não só assimilada, mas reforçada teologicamente. O documento que nos relata isto é a Tradição Apostólica de Hipólito (TA)[2]. Hipólito teria sido um zeloso defensor da tradição litúrgica das origens. Então, ele não só recomenda a oração das Horas, mas a associa aos aspectos do mistério de Cristo.
No século IV, Santo Atanásio e São Crisóstomo mencionam o Ofício Divino como uma oração oficial feita nos mosteiros em seis momentos diferentes. No Oriente (Belém) se introduziu a hora Prima nesta época.[3]
Então, o dever de orar ao longo do dia foi sendo considerado pela Igreja como um ministério (ofício) dos monges e clérigos para que o louvor e adoração a Deus não cessassem no tempo. Tornou-se, então, um Ofício Divino.
Então, tínhamos já ganhos e perdas. O principal ganho era uma estrutura mais elaborada desta oração e a mais grave perda foi o afastamento paulatino dos fiéis leigos. Agora era uma oração que a Igreja elevava a Deus por intermédio dos seus ministros e não mais de todo o povo batizado.
O maior avanço na sua estrutura deu-se no século VI, com a vida monástica intuída por S. Bento. O Ofício constituiu-se de oito horas canônicas, a saber, Matinas, Laudes, Prima, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas, Completas. Por trás desta visão está a prática das vigílias e a intuição das 24 horas do dia, divididas em oito momentos de oração. Não que isso fosse planejado, mas a prática foi construindo este esquema. Então, as doze horas do dia foram divididas em quatro horas menores: Prima, Tércia, Sexta e Noa. As Matinas estão muito próximas das laudes. Não se sabe bem porque ficaram separadas. Parece que vem do costume romano de desde meia noite se fazer quatro trocas de sentinelas. As matinas representariam as três primeiras e as laudes, a última. Nesta prática está reforçada a idéia de que os cristãos são os soldados de Cristo, sempre de pé, em vigília para o combate contra as trevas. De fato, as matinas representavam o momento mais denso da oração da manhã, e as laudes, o encerramento de louvor. A reforma do Concílio Vaticano II chamou esta primeira hora simplesmente laudes.
A hora Prima surgiu no século IV como a oração da manhã pelos monges de Belém, porque depois das matinas eles voltavam a repousar ainda um pouco. Então, na verdade, as matinas acabavam sendo realizadas de madrugada e a oração da manhã era realizada na primeira hora do dia (prima). Aos poucos, a matina se transformou em um ofício noturno de oração.
Este refinamento estrutural da liturgia das Horas comporta já uma complexidade que se aproxima da complicação. Ninguém pode viver as 24 do dia realizando interrupções para a oração a cada três horas, sobretudo à noite. No entanto, é preciso não perder a mística da interrupção das atividades diurnas para orar em tempos determinados.
Por isso, no século XII se começou a falar em Oficio mais abreviado e em um livro que o pudesse conter. Este livro foi chamado de breviário. Ele continha, portanto, as partes principais do Ofício da Igreja com muitas abreviações. Era, no entanto, só para clérigos, monges, religiosos e consagrados. Os fiéis leigos estavam completamente descartados desta prece fundamental do cristão.
É com este nome de Ofício Divino que a liturgia das Horas chegou até a reforma do Concílio Vaticano II, no início da década de 1960.
Na reforma do Concílio Vaticano II, se adotou o nome oficial de Liturgia das Horas. Se bem que Ofício Divino represente um ministério orante, a expressão Liturgia das Horas parece retomar aquela propriedade das origens, em que era entendida como oração de todos os fiéis cristãos.
As horas menores passaram a chamar-se de horas médias, sendo reduzidas a três: das nove horas, doze horas e quinze horas. A hora Prima foi suprimida, e a oração da manhã chamou-se simplesmente a oração de Laudes.
O Ofício de Matina ou noturnos transformou-se em Ofício de Leituras, e agora pode ser realizado em qualquer hora do dia ou da noite.

Rezar ao longo do dia.

Hipólito diz que pela manhã se deve rezar antes de começar qualquer trabalho (TA 41). Na estrutura da liturgia das Horas, a oração da manhã é chamada laudes, porque se define como momento de louvor a Deus pela vida e pelo dia.
Rezar antes de trabalhar é dar um golpe muito sutil, mas eficaz, na ideologia do trabalho.[4] O trabalho é uma ação boa em si, mas se endeusado, torna-se uma perigosa idolatria, que pode levar à aversão a Deus e ao narcisismo do encantamento pelas potencialidades humanas. Os padres do deserto, que surgem como comunidades dedicadas ao silêncio, à oração e ao trabalho, por volta do século IV, no Ocidente e um pouco antes no Oriente, têm um cuidado muito especial em levar uma vida de trabalho equilibrada. O trabalho pode ser motivo de louvor a Deus, mas também pode quebrar a comunhão do homem com o Transcendente e a relação plenamente humana consigo mesmo. Geralmente, a ideologia do trabalho se torna um instrumento de exploração das classes dominantes sobre as dominadas.
Um dos motivos da sede do povo de Deus de escapar da escravidão do Egito, era o sonho de organizar o seu tempo de acordo com a primazia do culto sobre o trabalho e da harmonia de ambos. A Deus o melhor tempo! Essa norma já estava infusa no projeto da Criação, quando tudo se direcionou para o descanso do sétimo dia, consumação da obra divina e plenitude do tempo.
Na Criação, o trabalho é o processo que vai dando vida aos seres, mas o objetivo final é o sétimo dia, o dia sem trabalho, dia de descanso e restauração. Descanso de Deus, que se tornou a inspiração e conteúdo para o descanso do homem. Este descanso assume no Novo Testamento o tom de santificação pela celebração.
Hipólito diz que quem reza antes de trabalhar poderá evitar a malícia do dia e não se esquecerá que é preciso freqüentar a comunidade eclesial, porque lá se recebe a santa instrução, se lê o Livro santo e o Espírito Santo floresce (TA 41). Então,

orar antes de trabalhar não é somente preparar o espírito para enfrentar o trabalho, mas também preparar-se para enfrentar um sistema, geralmente organizado de forma pagã, a fim de não entrar no roldão do consumo e da exploração. É pedir que o labor de nossas mãos não dê os frutos amargos do egoísmo e da ganância. É dispor-se a fazer a liturgia vivencial para que as horas trabalhadas, estejam em consonância com as horas rezadas e, neste intercâmbio, a salvação seja o fruto mais doce do trabalho humano como aperfeiçoamento da criação.[5]

Hipólito também diz que é preciso rezar às nove horas, embora neste momento as pessoas estejam em trânsito ou em seus trabalhos. No entanto, deve-se fazer uma prece no coração, porque nesta hora Cristo foi pregado no madeiro da Cruz. No Antigo Testamento, este era o momento em que se ofertavam os pães da proposição como símbolo do corpo e do sangue de Cristo. A imolação dos milhares de cordeiros no Templo era símbolo da imolação do único Cordeiro Perfeito, imolado na Cruz.
A associação das nove horas com a crucificação de Cristo se dá no Evangelho de Marcos: “era a terceira hora, quando crucificaram Jesus” (Mc 15, 25).
Mais tarde, a liturgia das Horas associa esta hora ao Espírito Santo, por causa do Pentecostes: “estes homens não estão embriagados como pensais, porque é apenas a terceira hora do dia” (At 2,15).
Os hinos da liturgia das Horas mostram claramente como esta hora está associada ao Pentecostes. Vejamos, por exemplo, no Tempo Comum:

Vinde Espírito de Deus,
com o Filho e com o Pai,
inundai a nossa mente,
nossa vida iluminai.
Queremos ser os templos
do Espírito Santo outrora
descido sobre os Doze
em chamas nesta hora.

Hipólito pede igualmente para se rezar ao meio dia (hora sexta), porque foi a hora da morte de Jesus, segundo S. Marcos, e recorda que nesta hora houve trevas sobre toda a terra até às três tarde (Mc 15, 33). Recomenda que nesta oração se faça uma poderosa prece à imitação dos justos e santos. É a hora do derramamento de sangue de Cristo na Cruz. Segundo Hipólito, foi este derramamento que clareou o resto da tarde.

Nesta hora foi-nos dada
gloriosa salvação
pela morte do Cordeiro
que na cruz trouxe o perdão.

O meio dia, de fato não é uma hora serena.[6] É a hora da cruz, do cansaço, da fome, das perturbações afetivas por causa dos desencontros ocorridos ao longo da manhã. Os padres do deserto e a tradição monástica consideram este período correspondente ao período das trevas bíblicas como um período perigoso para os cristãos, porque é hora das investidas do demônio meridiano. Aproveitando as nossas fragilidades, brechas e desencantos, ele atacaria o lastro das nossas paixões, colocando em risco nossa espiritualidade. Em outras palavras, a fome do meio dia não é somente de alimento corporal ({Mt 4,4}), mas também espiritual: não só de pão vive o homem, mas também da Palavra (cf. Mt, 4,4). No Tempo Comum, os hinos do meio dia apontam para uma fome interior, que requer um outro tipo de alimento:

De nós afaste a ira,
a discórdia, a divisão.
Ao corpo daí saúde,
E paz ao coração.


Hipólito não fala das três horas da tarde (hora nona). Sabemos que correspondiam ao sacrifício vespertino do Templo, que de certa forma se confundiam com as Vésperas. O cristianismo separou esta hora das Vésperas e lhe deu conteúdo teológico. Então, a hora nona figura a volta da luz depois das espessas trevas que cobriram a terra por causa da morte de Jesus.
Seja a tarde luminosa
numa vida permanente.
E da santa morte o prêmio
Nos dê glória eternamente.[7]

Ficou considerada a hora da ressurreição pascal e da libertação dos mortos:

Esta hora brilhou, esplendente,
afastou toda nuvem da cruz.
Despojando das trevas o mundo,
restitui às nações nova luz.

Nesta hora Jesus ressuscita
do sepulcro os que haviam morrido.
E, a morte vencendo, eles saem
com um espírito novo infundido.

Estes três momentos da oração das Horas são considerados horas médias porque funcionam como passagem entre as laudes e as vésperas.
As laudes, que correspondem à oração antes do trabalho, fazem memória da encarnação e da ressurreição de Cristo. Como já foi dito, é um momento muito especial de prepararmo-nos para enfrentar de forma cristã o trabalho e, no caso de um dia de uma festa ou solenidade litúrgicas, tomarmos maior consciência da celebração do mistério de Cristo.
As laudes fazem evocação do amanhecer da vida, e nos colocam nas perspectivas mais positivas da alegria pascal. Cada tempo litúrgico tem suas características próprias, sempre de acordo com o mistério de Cristo. No tempo do Natal, se evoca a nova luz que brilhou para a humanidade[8]. Então, Cristo luz eterna, se torna nova luz para a humanidade ferida de pecado e carente de salvação. Rezar as laudes é orientar a nossa vida para esta nova luz. Começar o labor do dia sem oração é iniciar um dia bem desorientado.
As vésperas são o louvor da tarde que sobe a Deus em forma de intercessão e agradecimento pelo dia vivido, enquanto que nos preparam para enfrentar a noite iluminados pela luz pascal. A aproximação da noite faz alusão à fragilidade humana diante da insegurança que as trevas suscitam e da atitude indefesa em que o sono nos coloca. Somente o Ressuscitado pode nos guardar e sua iluminação nos salvar.
Na questão da orientação, a liturgia ressalta a mente humana, na sua tendência natural à dispersão e distração. Por isso, há tremenda dificuldade de concentração mental. Na verdade, a liturgia das Horas constitui-se um método eficiente que orienta a nossa mente para o mistério de Cristo. Rezar no decorrer das horas mantém a mente inserida para o mistério de Cristo.

A Liturgia das Horas e o Ano Litúrgico

Assim como o missal romano, a liturgia das Horas tem o mérito de nos situar no coração do Ano litúrgico, como realidade simbólico-sacramental para a vivência do mistério de Cristo ao longo do ano.
Além de nos relembrar o tempo litúrgico (Advento, Natal, Quaresma, Tempo Pascal e Tempo Comum), tomar consciência de que estamos celebrando o dia do Senhor, uma festa litúrgica, a memória da Virgem ou dos santos é uma oportuna atitude pedagógica que a oração sem interrupção da Igreja nos proporciona. E o mais vantajoso é que isto se faz com um equilíbrio e uma centralidade cristológica invejáveis. As antífonas constituem uma lição desta centralidade. Por exemplo, no invitatório do comum de Nossa Senhora se diz: Vinde, adoremos Jesus Cristo, Filho bendito da Virgem Maria. Portanto, o objeto central do culto é sempre Jesus Cristo. A Virgem Maria entra pelos méritos de Jesus Cristo. E não é pequeno o seu papel na história da Salvação. Os santos também estão no culto somente por causa de Cristo.
Naqueles períodos em que o mistério de Cristo deixou de ser o alimento da vida cristã, por causa da perda de enfoque, foi preciso se refugiar nas devoções, que são sempre direcionadas a uma festa particular do Senhor, da Virgem ou de um santo, sem garantir geralmente nem a centralidade do mistério de Cristo nem a totalidade do culto devido ao Senhor, à Virgem Maria e aos santos.
O dia do Senhor como núcleo do ano litúrgico é preparado com uma véspera, de tal forma que o sábado não tem vésperas litúrgicas, enquanto que o domingo é enriquecido com duas vésperas: as primeiras vésperas no entardecer do sábado, e as segundas no domingo. Desta forma, é dado ao domingo um valor semelhante ao do sábado na liturgia hebraica.
Não existe outra forma mais pedagógica de se manter diariamente inserido no mistério de Cristo ao longo do Ano Litúrgico, do que a oração viva da Igreja, realizada sem interrupção, dia após dia, até a consumação do tempo.
Portanto, não somente os ministros ordenados ou consagrados, mas todo o povo de Deus tem o direito e o dever de celebrar o mistério de Cristo ao longo do tempo.

Eucaristia e a Liturgia das Horas.

A liturgia das Horas é a oração em momento determinados ao longo do dia. Por isso mesmo, está intimamente integrada a uma outra oração litúrgica que também se dá no tempo determinado: a Eucaristia.
A Eucaristia foi feita para o domingo e o domingo para a Eucaristia. Ao instituir a eucaristia na última Ceia, o Senhor determinou aos Apóstolos fazerem o que ele fez naquela Ceia, enquanto rito instituído, e realizar o que ele realizou na vida, toda entregue ao seu projeto de salvação, representado pelo lava-pés, que se tornou o símbolo do serviço na Igreja.
Assim como o sábado era o dia de convergência da vida judaica e momento de se fazer memória de Deus criador, o domingo é o dia do Senhor, o Ressuscitado, ou seja, dia eucarístico por excelência. Documentos do magistério e escritos teológicos recentes nos têm alertado,[9] afim de que transformemos esse preceito ritual em adesão do coração.
Os discípulos compreenderam que era este o tempo oportuno para cumprirem o mandado de celebrar o memorial pascal de Jesus, inaugurando um novo paradigma para a tradição bíblica do culto divino.
Então, a liturgia das Horas se compõe com o domingo, preparando os fiéis devidamente para celebrarem a Missa dominical ou diária, pois esta tem também seu aspecto festivo pascal. Se a missa diária for celebrada de manhã, a liturgia das Horas nos mantém na espiritualidade alta em que a Ceia do Senhor nos introduz, se, ao contrário, for celebrada à tarde, a liturgia das Horas nos prepara de forma crescente para o ponto mais alto da nossa vida litúrgica, que é a missa.
Este é o coração do que chamamos de espiritualidade litúrgica, ou seja, uma vida toda iluminada pelo Espírito e alimentada na fonte da oração litúrgica, e não apenas nas devoções pessoais ou coletivas. Assim, há uma profunda conexão entre liturgia e vida, pois “...a liturgia foi compreendida pelos Padres não unicamente como culto, mas qual norma de vida”.[10] Santo Agostinho diz a respeito desse vínculo: “Felizes de nós, se o que ouvimos e cantamos também executamos.”[11] A antífona do Canto Evangélico das Vésperas (03 de setembro) diz a respeito do Papa São Gregório Magno (séc. VI), reconhecido pelos seus méritos no campo da Liturgia: São Gregório praticava tudo aquilo que pregava e se fez exemplo vivo dos mistérios que ensinava.
Então, podemos dizer que a Espiritualidade litúrgica é a atitude ou modo de vida do cristão que, guiado pelo Espírito Santo e tendo como horizonte último o Reino definitivo, articula no presente a sua vida a partir da liturgia e celebra a liturgia a partir da vida. Esta liturgia celebrada de forma mais ininterrupta é representada pela liturgia das Horas em sua conexão com a Eucaristia, cume da oração cristã. A liturgia das Horas nos leva a fazer a memória de Cristo ao longo do dia, enquanto que a Eucaristia constitui a memória dominical do Senhor. Assim, através da liturgia das Horas e da Eucaristia, vivemos em profundidade o mistério de Cristo no tempo, tendo como guia o Ano litúrgico.

A estrutura do livro da liturgia das horas e o Ano Litúrgico

Assusta um pouco a complexidade dos quatro volumes oficiais da liturgia das Horas, sobretudo porque em determinados tempos litúrgicos, como o ciclo do Natal e da Páscoa, os textos se encontram em muitas partes do livro. Isso é necessário por causa da densidade do Ano litúrgico. Mesmo assim, são necessários quatro volumes. Por isso, só se consegue aprender a manusear o livro, fazendo-o na prática.
Os quatro volumes são divididos conforme a Ano litúrgico. O primeiro volume corresponde ao ciclo do Natal, o segundo ao da Quaresma e Páscoa, o terceiro e o quarto ao tempo Comum, sendo o terceiro da 1ª à 17ª semana, e o quarto, da 18ª à 34ª.
Porém, é sempre bom ter uma visão geral da estrutura dos quatro livros e de cada livro. O esquema, como já dissemos, é o Ano litúrgico.
O coração da liturgia das Horas é o saltério. Ele se encontra dividido em quatro semanas e se localiza bem no meio do livro, assim como o rito da missa está bem no meio do missal. Logo depois vem o que chamamos de próprio dos santos ou santoral, onde temos o calendário das festas ou memórias do santos. A seguir, temos os comuns, que são textos referentes às festas da Mãe de Deus, dos Apóstolos e dos santos. Este é um recurso também do missal, para que possamos celebrar as festas e as memórias da Mãe de Deus e dos santos, com os textos completos, quando uma festa não dispõe no calendário do santoral de todos os textos necessários.
Na parte inicial de cada volume, temos uma série complementos próprio de cada tempo do Ano litúrgico. O Ofício de Leituras também se encontra nesta parte.
Então, temos quatro semanas para o saltério: primeira à quarta. Quem dá a informação exata da semana que se celebra (primeira à quarta) em todo o Ano litúrgico é o Diretório ou Calendário litúrgico da Igreja. No Brasil, este livro é publicado anualmente pela CNBB e todos podem adquiri-lo no final e começo de cada ano.
Temos também, o volume único, bem mais simplificado, onde não consta o Ofício de Leituras. Muito recentemente, temos uma publicação mensal em papel vulgar da liturgia das Horas, pela Paulus, ao modo da Liturgia Diária da missa. Certamente vai facilitar o acesso de muita gente à liturgia das Horas, embora contenha somente as laudes e as vésperas.
Para facilitar mais, temos o Ofício Divino das Comunidades, já com sucessivas edições, que é um livro simplificado e mais inculturado à realidade brasileira.
Em última instância, quem não tivesse nada disto, poderia rezar um salmo de manhã, outro ao meio, e outro à tarde, supondo que não haja hoje um cristão católico sem sua Bíblia.
O importante é rezar ao longo do dia e antes de deitar-se. Na estrutura da liturgia das Horas, esta última oração é chamada de Completas. Desta forma, um dia rezado é um dia vivido na fé e em preparação ao dia que não tem fim, pelo que ansiamos como a esposa à espera do Amado. Ela, de quando em quando, pára e olha em direção do caminho, para ver se seu Amado já vem. Assim, os cristãos vão realizando paradas em momentos determinados para fazer memória do mistério de Cristo, nossa única salvação.

Bibliografia

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CANALS, J M. A oração na bíblia. in BORÓBIO, Dioniso (org.) A celebração na Igreja III: ritmos e tempos da celebração.São Paulo: Loyola. 2000.
COSTA, Valeriano dos Santos. Liturgia das Horas: Celebrar a luz pascal sob o signo da luz do dia. São Paulo: Paulinas, 2005.
FERNÁNDEZ, P. Elementos verbais da liturgia das horas. in BOROBIO, Dioniso (org). A celebração da Igreja 3: Ritmos da celebração. São Paulo: Loyola. 2000. pp. 419-475.
FEUILLET, A. ― GRELOT. Luz & Trevas. in LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de teologia bíblica. Petrópolis: Vozes, 538-542
GASPARRO, G. Stefanini. Luz. in DI BERARDINO, Ângelo. Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs: Petrópolis — São Paulo: Vozes — Paulus. pg. 864
GOENAGA, J.A. sentido das estruturas da liturgia das horas. in BOROBIO, Dioniso (org). A celebração da Igreja 3: Ritmos da celebração. São Paulo: Loyola. 2000. pp. 399-417
GUARDINI, Romano. O espírito da liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi,1942.
INSTRUÇÃO Geral sobre a liturgia das horas. in OFÍCIO Divino, renovado conforme o decreto do Concílio Vaticano II, liturgia das horas segundo o rito romano I, advento e tempo de Natal. São Paulo: Vozes/Paulinas/Paulus/Ave Maria, 1999. pp. 21-82
PAULO VI. Constituição apostólica pela qual se promulga o Ofício Divino renovado por mandato do Concílio ecumênico Vaticano II. in OFÍCIO Divino, renovado conforme o decreto do Concílio Vaticano II, liturgia das horas segundo o rito romano I, advento e tempo de Natal. São Paulo: Vozes/Paulinas/Paulus/Ave Maria, 1999. pp.13-20
PELLEGINO M. Liturgia e Padres. in DI BERARDINO, Ângelo (org.). Dicionário Patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis/São Paulo: Vozes: Paulus, 2002, 834
PEREGRINAÇÃO de Etéria: Liturgia e Catequese em Jerusalém no século IV. Petrópolis: Vozes, 2004.
RAFFA, V. Liturgia das horas. in AA.VV. Liturgia e terapia: a sacramentalidade a serviço do homem e da sua totalidade. São Paulo Paulinas. 1998. pp. 651-670
ROWER, Basílio. Dicionário litúrgico. Petrópolis: Vozes. 1947, 233 pp.
SANTO AGOSTINHO. Sermão 23A, 1, Corpus Scriptorum, séries latina. 41, 321
TRADIÇÃO Apostólica de Hipólito: Liturgia e catequese em Roma no século III. Petrópolis: Vozes. 1971



[1] COSTA, Valeriano Santo. Liturgia das horas, pg. 29
[2] Neste trabalho, a Tradição Apostólica de Hipólito é representada pela sigla TA
[3] Cf. RÖWER, Basílio, Dicionário Litúrgico. pg. 161
[4] COSTA, Valeriano Santos. Liturgia das horas. pg. 68
[5]Ibid. pg. 69
[6] COSTA, Valeriano Santos. Liturgia das horas. pg. 74
[7] Hino das quinze horas no Tempo Comum
[8] Cf. COSTA, Valeriano Santos. Liturgia das Horas...pg. 54-55
[9] Entre outros, JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Dies Domini (1988); SILVA, José Ariovaldo da. O domingo: a páscoa semanal dos cristãos: elementos de espiritualidade dominical para equipes de liturgia e o povo em geral. São Paulo: Paulus, 1998; BASURKO, Xavier. Para viver o domingo. São Paulo: Paulinas, 1994; AUGÉ, Matias. Domingo festa primordial dos cristãos. São Paulo: Ave Maria, 2000
[10] PELLEGINO M. Liturgia e Padres. in DI BERARDINO, Ângelo (org.). Dicionário Patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis/São Paulo: Vozes: Paulus, 2002, 834
[11] Sermão 23A, 1, CSL, 41, 321

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