quinta-feira, 25 de junho de 2015

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
ÍNDICE
Siglas
Nota prévia
A abrir
I. A história da Doutrina Social da Igreja
As origens da Questão Social e da Doutrina Social da Igreja
Depois de Leão XIII
As novas realidades
A Doutrina Social da Igreja e sua evolução
Depois de João XXIII
II. Enquadramento teológico da Doutrina Social
A analogia da Incarnação
Ir às causas da pobreza
E as Comunidades?
III. Algumas questões particulares
1. A universalidade da Questão Social e a ONU
2. Uma muito breve referência à família
3. O mundo da economia
4. Economia ou política: de quem a primazia?
5. As leis fiscais
6. Os sistemas económicos
6.1. O comunismo marxista e colectivista
6.2 O capitalismo liberal
6.3 Economia social de mercado?
7. O mundo da pobreza
7.1 Uma autoridade mundial velando pelo Bem Comum
7.2. O mundo da pobreza, uma estrutura de pecado
7.3. As vítimas da pobreza clamam pela justiça de Deus
7.4. Dizer "Deus" é escutar o clamor dos pobres
8. A ecologia
9.  A política, a moral, o direito e a fé
10. A democracia
10.1. A fundamentação das leis civis
10.2. A ética civil
10.3 Que fazer numa democracia às leis injustas?
11. Os Direitos do Homem
11.1. As quatro notas dos Direitos do Homem
11.2. A fundamentação dos Direitos do Homem
11.3. Os direitos de 1º grau
11.4. Os direitos de 2º, 3º e 4º graus
A fechar
Siglas utilizadas
CA - Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II (1991)
DSI - Doutrina Social da Igreja
ES - Encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI (1964)
GS - Constituição Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II (1965)
LE - Encíclica Laborem Exercens, de João Paulo I (1981)
LG - Constituição Lumen et Gentium, do Concílio Vaticano II (1964)
Medellín 1968 - 2ª Reunião da CELAM - Conferência Episcopal latino-americana - realizada em Medellín, na Colômbia, no ano de 1968
MM - Encíclica Mater et Magistra, de João XXIII (1961)
OA - Carta Octogesima Adveniens, de Paulo VI (1971)
PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PP - Encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI (1967)
PT - Encíclica Pacem in terris, de João XXIII (1963
QA - Encíclica Quadragesimo anno, de Pio XI (1931)
RH - Encíclica Redemptor Hominis, de João Paulo II (1979)
RN - Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII (1891)
SRS - Encíclica Sollicitudo rei socialis, de João Paulo II (1987)

Nota prévia
Desde que, em 1995-1996, procedi a uma catequese sistemática sobre a Escatologia aproveitando para tal a homilia da celebração dominical, cometi o propósito de fazer um esforço semelhante no respeitante à Doutrina Social da Igreja. A oportunidade surgiu em 2002, com o aproximar-se do 40º aniversário da encíclica Pacem in terris de João XXIII, e cumpriu-se de 6 de Outubro de 2002 a 20 de Julho de 2003.
Sem tirar nem alterar nada da Liturgia de cada domingo, utilizei a homilia para este fim, adaptando-me, como me foi possível, a tempos tão diferentes como são o Advento, o Natal ou mesmo a Páscoa.
Pediram-me, na Comunidade da Serra do Pilar e de fora, pusesse em forma de caderno esses textos. Aqui estão, reordenando-os o melhor possível mas não na sequência exacta em que foram sendo proferidos. De seguida, transcrevem-se alguns textos de apoio, nomeadamente do Magistério, que foram utilizados na oração semanal da Comunodade.
Como no fim se explicita, serviram-me de guião nesta reflexão, os apontamentos escolares, depois publicados, do Prof. Luis González-Carvajal Santabárbara, do Intituto Superior de Pastoral de Madrid.
Arlindo de Magalhães, presbítero
A abrir
Eleito Papa em Outubro de 1958, João XXIII anunciaria inesperadamente a sua decisão de convocar um Concílio ecuménico em 25 de Janeiro de 1959. Mas praticamente um ano e meio antes de este se reunir em primeira sessão (em Outubro de 1962), o Papa publicaria (nos 70 anos da Rerum Novarum de Leão XIII) uma encíclica - a Mater et Magistra - em que, não se distanciando ainda muito da linha reformista tradicional, deixava já um claro apelo a todos os povos no sentido da justiça e do respeito pela liberdade de consciência.
Terminados, porém os trabalhos da 1ª sessão do Concílio que haviam decorrido entre Outubro e Dezembro de 1962, tendo tomado conhecimento da proximidade do seu fim e esperando dar desse modo uma orientação eficaz aos trabalhos conciliares posteriores, publicaria menos de dois meses antes da sua morte (viria a morrer em 3 de Junho de 1963), a encíclica Pacem in Terris, datada de Abril de 1963.
É este o primeiro documento pontifício que se dirige não apenas aos bispos e Igrejas de todo o mundo, mas também "A todas as pessoas de boa vontade".
Esta encíclica teve um acolhimento entusiástico, tanto no bloco ocidental como no comunista de Leste. João XXIII era já conhecido como um homem sinceramente preocupado com a política dos dois blocos da guerra fria, e empenhado com o degelo dos antagonistas, homem sem cálculos nem segundas intenções, o que, para o tempo e para um eclesiástico, era absolutamente novo. Ele tinha vivido de 1925 a 34 em Sófia (Bulgária), depois em Istambul e posteriormente ainda em Atenas, antes de ter sido Núncio em Paris, onde enfrentara a tarefa difícil de substituir a parte importante do episcopado francês que se aliara ao regime colaboracionista de Vichy, e de cuidar se tratassem com humanidade os reféns alemães retidos em solo gaulês.
Segundo um jornal de esquerda do tempo, João XXIII renunciou decididamente à nostalgia de uma cristandade de tipo medieval de que os seus predecessores não haviam conseguido libertar-se completamente. Ele percebeu que a concórdia entre as nações não estava já dependente, como no passado, do que o Vaticano dissesse ou fizesse. Mas acreditava com optimismo nas possibilidades da natureza humana, bem como na capacidade de a família humana colaborar na construção de um mundo melhor e, desde logo, mais justo. Vendo tudo à lupa - diz um crítico - não há nenhum princípio novo nesta Encíclica, mas sim um enorme "bom senso à beira da genialidade". A Igreja e o próprio Papa surgiram assim aos olhos de um mundo espantado, como muito mais preocupados com os problemas reais dos homens do que em geral se pensava.
Mês e meio depois, em 3 de Junho seguinte, estávamos em 1962, "il papa buono" morria em Roma. Toda a humanidade, muito para lá das fronteiras da catolicidade e inclusive do cristianismo, se sentiu profundamente atingida. Esta comoção, de que eu ainda me recordo em parte, podia ser ilustrada com muitos exemplos, desde a bandeira da ONU a meia haste em Nova Iorque, às delegações moscovita, judaica, muçulmana ou budista presentes no seu funeral.
A principal razão desta unanimidade no luto pode ser resumida pelo que, dele, escreveu um jornal conhecido pelo seu posicionamento anticlerical: "João XXIII era o que muitos cristãos chamam um santo. E o que todos chamamos um homem".
Efectivamente, antes mesmo de ser publicado qualquer documento do Concílio Vaticano II (o primeiro, sobre a Liturgia é de Dezembro de 1963), a encíclica Pacem in Terris foi o que se chama uma verdadeira lufada de ar fresco.
E desde logo por esta afirmação lapidar: "Numa convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa: isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres que emanam directa e simultaneamente da sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis".
Afirmação lapidar, dizia, a que se segue depois a lista de direitos e de deveres. Universal e sem excepções de qualquer tipo. Porquê então uma prática tão diferente? Porquê então direitos e deveres depois negados na prática? Porquê então, dum lado e doutro, se fala só de direitos ou só de deveres? Esta é a chamada "questão social", presente a todo o tempo, mas agravada com as novas situações económicas e sociais geradas com a revolução industrial a partir sobretudo do séc. XIX.
A Igreja que, pensava-se, tratava só das almas, teve dificuldade em entrar na questão. Fê-lo quase só com o Papa Leão XIII, em 1891, com a célebre encíclica Rerum Novarum ("As Novas Realidades"). De então para cá, esta reflexão originou já um caudaloso rio a que se chama a "Doutrina Social da Igreja".


I. A história da Doutrina Social da Igreja
As origens da Questão Social e da Doutrina Social da Igreja
A Revolução Industrial havia originado o aparecimento de um mundo novo. Mas a Igreja só tarde o percebeu. E com o movimento operário dele surgido aumentaram as dificuldades.
A classe operária, tal como a indústria, nascera à margem da Igreja, num contexto essencialmente materialista, num clima de concorrência implacável e de egoísmo criado, em parte, pela Revolução Francesa que tinha promovido a liberdade (no caso, da produção e do comércio). Surgiriam depois os dogmas da não intervenção do Estado nestes sectores e do carácter nefasto dos corpos intermédios (corporações ou sindicatos) a controlarem a liberdade individual. Os operários, em geral camponeses de origem (logo cristãos), emigrados para as cidades, sem qualquer tipo de direito ou de protecção, esmagados pela estrutura da grande indústria que lhes negava na prática a humanidade e limitava ao máximo os tempos livres, tornando-lhes impossível a instrução e a reflexão, que os desenraizava separando-os da família e da sua cultura tradicional, que os afastava inteiramente da Igreja por absoluta incompatibilidade com a pastoral paroquial, o que vinha já muito de trás, diga-se, (os operários) encontraram nos homens da Igreja uma absoluta incapacidade de entenderem o seu drama e mesmo o que efectivamente se estava a passar.
Espanta-nos hoje que em 1841 um padre francês pudesse escrever assim: "A desigual repartição das riquezas é necessária para manter a felicidade sobre a Terra: o pobre trabalha para o rico, o rico assiste o pobre, e a harmonia social resulta desta diferença dos seus membros, tal como a do órgão da desigual grossura dos seus tubos". Não havia ainda uma sensibilidade desabrochada para os problemas levantados pela Revolução Industrial. Mesmo assim, houve algumas reacções surgidas do campo católico: mas foram todas no sentido de minorar situações concretas e não no de ir às causas reais dos problemas.
A sociedade industrial dividia-se digamos que em duas barricadas: dum lado a dos proprietários das empresas (diziam-se os capitalistas, os que tinham o capital e o investiam dessa maneira), do outro a dos que apenas possuíam a sua força de trabalho (e não encontravam onde empregá-la ou então tinham de vendê-la por qualquer preço e em condições para nós hoje abjectas e impensáveis). Isto originava como que duas humanidades diferentes: dum lado o capitalismo, industrial e financeiro, feroz e selvagem, posso, quero e mando, se não queres vai-te embora que há muitos a quererem; do outro uma enorme massa assalariada, o proletariado, que tinha de acomodar-se ao primeiro trabalho que encontrasse, fosse o salário que fosse, 18 horas por dias, 7 dias por semana, e alguns poucos anos por vida, sem direitos nem segurança, sem qualquer protecção legal, sem futuro. Entre estes dois grupos, a separação era absoluta, e não só no interior das fábricas. A parte mais fraca, a dos trabalhadores, não tinha acesso à instrução, não participava na vida política, não tinha condições de saúde, não se lhe fazia justiça no salário, não tinha habitação condigna, não tinha direitos nem protecção legal…
Os interesses de uns e de outros eram absolutamente inconciliáveis. Aos patrões interessava manter os salários tão baixos quanto possível, enquanto que os trabalhadores pura e simplesmente tinham perdido toda a dignidade humana, oprimidos por uma "miséria imerecida" (Leão XIII). Restava-lhes como escape a taberna e o prostíbulo.
E os salários eram tanto mais baixos quanto maior a massa dos que se aglomeravam à porta das fábricas, desempregados, a tentar vender, a qualquer preço, a sua força de trabalho. A pauperização tornou-se assim um dos grandes fenómenos do século XIX.
Foi aqui que começou a levantar-se um sonho: a palavra Socialismo serviu para o dizer. O cristianismo era incapaz - pensava-se - de obstar a este estado de coisas. O socialismo utópico, o humanismo ateu e o socialismo científico construíram entretanto o mito da sociedade socialista de dimensão universal, destruídas as classes e implantada a ditadura do proletariado.
É verdade que por toda a parte a Igreja multiplicava obras de caridade para socorrer os novos pobres que eram os proletários do capitalismo (um nome célebre desta época é Ozanam [1813-1853], recentemente beatificado, que, inspirado em Monsieur Vincent, depois S. Vicente de Paulo, criou as Conferências que levam o seu nome). Faltava-lhe no entanto imaginar a novidade, ir à raiz do mal e saltar as barreiras paralisantes de uma moral estritamente individualista.
Tentativas houve-as, mas tímidas: seria possível conciliar, tal como fizera Lamennais (1792-1854) relativamente ao Liberalismo, a Revolução, agora industrial, com as exigências da Justiça e da Caridade, ou o progresso industrial e económico era mesmo contrário, antagónico, ao Evangelho? Chegou-se a pensar que não: que Evangelho e progresso eram inimigos.
Tudo somado, o catolicismo social dos anos 70 do século XIX não passou do esforço de um punhado de homens pertencentes à classe dirigente, de audiência limitada junto dos operários. As Corporações e os Círculos Católicos de Operários foram já uma tentativa de encontro da classe dirigente com os operários e proletários. No entanto, se bem que tenham conseguido resultados notáveis, o espírito paternalista destas iniciativas, mais que preparar o operário para a Luta a travar e a vencer, funcionava como uma espécie de travão, o que não raro conduzia a que se entregasse ao diabo a Justiça e a Verdade. A verdade, porém, é que "Uma andorinha fez a primavera".
O Papa Leão XIII (1878/1903), no fim do século, já se clamava que a Igreja não podia continuar calada perante tanta injustiça, iniciou a aproximação da Igreja com todas estas "Novas Realidades" (Rerum Novarum, encíclica de 1891) do Mundo Moderno, levando a sério o mundo do trabalho e as concepções econômicas vigentes ao seu tempo. Leão XIII, aberto à criatividade, não já manifetado como os seus antecessores pela problemática política, compreendeu muito lucidamente o que era passível de mudança e o que era permanente. E por isso defendeu: a primazia da Pessoa sobre as coisas e a submissão do capital à dignidade e direitos do trabalho; o direito de todos à propriedade como instrumento de promoção humana e garantia da responsabilidade e autonomia da pessoa; o direito de associação; a vocação de todos, indivíduos e classes, à construção de uma sociedade justa e fraterna, em que as diferenças fossem complementares e não motivo de conflito; o papel da Igreja e do Estado em toda esta questão, cada qual no seu lugar; e o papel da iniciativa individual e associativa que devia ter em conta tanto o Indivíduo como o Bem Comum da sociedade.
Só que, para dizer isto, utilizou muitas palavras que soavam a herético: trabalho e capital, patrão e assalariado, a terra dada a todos, salário justo, conflito social, direitos e deveres, direito de associação, indivíduo e bem comum, a Pessoa como sujeito de direitos inalienáveis.
Mas, com esta intervenção, Leão XIII arranjou-a boa! E não faltou na Igreja, quem, com bispos à frente e tudo, rezasse pela conversão do papa. Que estava maluco e velho!

Depois de Leão XIII
A encíclica Rerum Novarum de Leão XIII teve tal importância dentro e fora da Igreja Católica que rapidamente se transformou numa referência quase mítica, apesar - repito - das discordâncias que suscitou no seu interior.
Tanto assim que os Papas posteriores passaram a celebrar os seus aniversários quase de década em década, se excetuarmos os dois primeiros sucessores do papa Leão, mais preocupados, um - Pio X - com as reformas de ordem pastoral interna, e o outro - Bento XV - com o drama desse "inútil massacre" que foi a 1ª Guerra Mundial.
Assim, ao passarem os 40 anos da Rerum Novarum, Pio XI publicaria a encíclica Quadragesimo anno (1931); no cinqüentenário (1951), Pio XII leria aos microfones do Vaticano uma célebre Radiomensagem (A solenidade do Pentecostes); nos 70 anos, João XXIII daria a conhecer a encíclica Mater et magistra; nos 80, Paulo VI endereçaria ao presidente do Conselho de Leigos e da Comissão Justiça e Paz, uma Carta célebre, a Octogesima Adveniens; no 90º aniversário Joâo Paulo II publicaria a encíclica Laborem exercens, e no centenário a Centesimus annus.
Entre estes documentos comemorativos, digo assim, apareceriam entretanto outros. Para citar apenas alguns mais importantes: a já referida encíclica Pacem in terris de João XXIII (1963), a Constituição Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo Moderno, do Concílio Vaticano II (1965), a Populorum progressio de Paulo VI (1967), e a Sollicitudo rei socialis de João Paulo II (1987), para além de vários outros (é preciso mesmo não esquecer os que Pio XII dedicaria aos temas da Guerra - a 2ª Mundial que corria no seu tempo - e da Democracia).
Dizendo doutro modo, a Revolução Industrial provocava e continua ainda a provocar uma tal transformação de tudo, a nível antropológico, civilizacional, social, cultural, econômico, político e etc, que as suas conseqüências não paravam de se verificar. Palavras e problemas que os nossos avós desconheciam de todo - democracia ou totalitarismo, socialização e globalização, telemóvel ou computador, ecologia ou reforma agrária, clonagem ou nuclear, etc, etc, logo ultrapassaram a primitiva e praticamente única questão que motivou a encíclica de Leão XIII, os conflitos entre trabalho e capital, entre patrões e assalariados. Por isso, pouco a pouco, a reflexão do magistério católico foi assumindo todos os novos problemas, e alargando cada vez mais o campo restrito da primeira encíclica.
A par, começou a desenhar-se uma nova postura da Igreja perante todas estas realidades. Antigamente, na Igreja, havia princípios julgados imutáveis e eternos com que se julgavam as novas realidades. Claro que os julgamentos não eram ajustados nem corretos, porque as realidades já não cabiam neles ou eram doutra galáxia.
Pouco a pouco, porém, começou a perceber-se que, primeiro, havia que analisar a realidade, conhecê-la bem, deitando mesmo mão de ciências auxiliares que, à partida, se pensava não tinham nada a ver em com a Teologia nem mesmo com o Direito ou a Moral. A seguir, era preciso ler essas realidades à luz do Evangelho. Claro que ele não fala nem de sindicatos nem de globalização. Mas há valores evangélicos universais (hoje, de resto alguns admitidos já nas legislações universais e nacionais) sem os quais não nos entendemos; por exemplo: que não há homens mais homens que outros homens (Leão XIII dissera da primazia da Pessoa sobre todas as coisas e realidades, quaisquer que sejam). Finalmente, depois de analisar a situação e de a julgar à luz do Evangelho, o agir (que é preciso ou se pode fazer?).
Nascia assim o célebre método da Revisão de Vida (ver, julgar e agir) criado no seio da pastoral operária, assumido depois pela Acção Católica em geral, e que o Vaticano II consagraria como método teológico e pastoral, desde logo ao afirmar que "as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje são as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo".
Pouco a pouco se foi, pois, edificando um acervo de reflexão sobre a questão social - a DSI - nascida claramente com o método da Revisão de Vida: à medida que os problemas e questões iam aparecendo, era preciso vê-los, depois julgá-los, e finalmente traçar planos de intervenção e intervir.
As novas realidades
Torna-se fastidioso fazer uma lista das novas questões que entraram na reflexão da DSI. Mesmo assim não deixo de citar algumas, para fazermos todos uma ideia.
O mundo do Pio XI tinha portanto mudado relativamente ao de Leão XIII: logo após a 1ª Guerra mundial fora a Revolução russa, e em 1931 haviam passado apenas dois anos sobre o início da profunda recessão econômica de 29. A par, nasciam as democracias européias. A luta de classes estava agora politicamente enquadrada, em estados ou, no mínimo, em partidos. Mas a vida dos trabalhadores, com algumas exceções, não tinha melhorado (o socialismo de estado era uma realidade, o liberalismo econômico cavara as suas teses, e as vias intermédias, de raízes mais ou menos socialistas ou de inspiração cristã, não se conseguiam praticamente afirmar); mas já se lançavam os fundamentos do que viria a ser a "cortina de ferro". No meio disto tudo, o Papa formularia o célebre "princípio da subsidiariedade", que depois haveria de ser aceite pela política e pela sociedade, pela Igreja e sua teologia.
Pio XII conviveu a seguir com o pesadelo da 2ª Guerra, atormentado por outro lado com a "possibilidade da democracia". João XXIII não teve já receio de falar nem de socialização, nem da diferença entre a ideologia (marxista), que "é aquilo que é", e "as situações históricas em contínuo devir … portanto susceptíveis de mudança", nem de - numa antevisão da globalização que havia de vir - de apontar a "Paz na terra", não apenas no mundo do trabalho nem simplesmente no mundo político.
Paulo VI iria ainda mais longe. A sua preocupação estendeu-se às questões mais vastas do Desenvolvimento dos povos e seu direito à independência política (autodeterminação), à separação cavada entre os Países do Norte e do Sul do planeta, bem como a problemas recentes como a urbanização ou a emigração. A par, retomaria a questão da evolução histórica do marxismo formulada já por João XXIII, etc.
João Paulo II, vindo entretanto de um regime marxista, marcaria desde logo o terreno, antes ainda da queda do Leste: contrariamente aos seus antecessores que, digamos assim, favoreciam uma forma modificada de capitalismo, afirmou com clareza logo na encíclica Laborem Exercens de 1981 que, tal como o marxismo, "o erro do 'economismo' …, erro fundamental do pensamento, também pode ser chamado um erro materialista, no sentido de que comporta, direta ou indiretamente, a convicção do primado e da superioridade daquilo que é material" sobre o Homem. Um e o outro - o marxismo e o capitalismo - são dois graves "erros antropológicos". A esta luz releria as velhas questões do trabalho e da sua dignidade, da Pessoa humana e da inviolabilidade dos seus direitos, mas agora analisadas em contexto histórico absolutamente novo.
Entretanto, caía o Leste, e as suas repúblicas transformavam-se em democracias incipientes e inexperientes, cheias de problemas e necessidades. A queda destas economias planificadas pelo Estado traria a nu desastres impensados e problemas novos, do desemprego à fome. À fome continuam a morrer os Terceiros e Quarto Mundos afogados nos montões de lixo do desperdício do Primeiro, sabendo-se embora que há recursos financeiros e técnicos para responder em apenas 10 anos às necessidades básicas de toda a população mundial! E há ainda o esgotamento dos recursos naturais, a poluição, o desastre ecológico.
Caídas as economias planificadas de Leste, o Ocidente julgou-se um "todo o terreno": nós próprios sofremos ainda as consequências deste logro. A falta de trabalho, o envelhecimento da população, a emigração (legal ou ilegal) dos países pobres para os ricos, os refugiados, a globalização e suas consequências, boas e má, são por isso problemas dos nossos dias.
E a pergunta continua a ser a mesma: é mesmo impossível organizar um mundo mais justo para todos?
A Doutrina Social da Igreja e sua evolução
Podemos resumir a evolução progressiva da DSI, de Leão XIII a João Paulo II, com um texto deste último, tirado da encíclica Centesimus Annus:
"No início da sociedade industrial, foi o 'jugo quase servil' que obrigou o meu predecessor a tomar a palavra em defesa do Homem. Nestes cem anos, a Igreja permaneceu fiel a este empenho! De fato, interveio nos anos turbulentos da luta de classes, a seguir à primeira guerra mundial, para defender o homem da exploração econômica e da tirania dos sistemas totalitários. Colocou a dignidade da pessoa no centro das suas mensagens sociais, após a segunda guerra mundial, insistindo sobre o destino universal dos bens materiais, sobre uma ordem social sem opressão e fundada no espírito de colaboração e solidariedade. Depois reiterou constantemente que a pessoa e a sociedade não têm necessidade apenas destes bens, mas também de valores espirituais e religiosos. Além disso, tendo verificado cada vez mais como tantos homens vivem, não no bem-estar do mundo ocidental, mas na miséria dos países em vias de desenvolvimento onde padecem uma condição que é ainda a do 'jugo quase servil', sentiu-se na obrigação de denunciar essa realidade clara e francamente, embora sabendo que este seu grito não será sempre acolhido favoravelmente por todos".
Por uma questão pedagógica, costuma dividir-se este período de cem anos, no que respeita à DSI, em três épocas. A primeira, desde Leão XIII até ao Concílio Vaticano II ( o tempo da chamada "terceira via"); a segunda, abrangendo o Papa João XXIII e o Concílio (a viragem conciliar); e a terceira, de Paulo VI a João Paulo II.
Efectivamente, no período que vai de Leão XIII a Pio XII, a então incipiente DSI, como que tentou definir um modelo socio-económino a que, entre os abusos do liberalismo (capitalista) e do socialismo em geral (e mais particularmente o marxista), poderíamos chamar de "terceira via".
Foi de facto num mundo cavado pela separação trabalho-capital, patrões-operários, liberalismo-socialismo, que a DSI nasceu. O magistério papal assestou suas armas numa luta declarada ao liberalismo, ao socialismo e a qualquer espécie de totalitarismo (económico, político ou tecnológico).
Mas então, fora isto, que defendia a DSI? Ficou a dignidade de toda e qualquer pessoa humana, e desde logo a do pobre operário que nada mais possuía a não ser a sua força de trabalho, ficava o Estado que, com legislação apropriada, não devia permitir que o capital explorasse o trabalhador, ficava a defesa da iniciativa de proprietários e/ou operários se reunirem para defender e mesmo reivindicar os seus direitos, e ficava ainda a defesa do direito de propriedade privada embora destacando a sua função social (na prática, a pequena courela do pobre assalariado que já então só dava ervas porque o seu proprietário tinha que trabalhar entre 12 a 18 horas na fábrica, era tão "propriedade privada" como a grandiosa fábrica do capitalista que oprimia trabalhadores com salários de fome e condições desumanas de trabalho, acumulando lucros & ganhos?).
Neste debate, mas sem o influenciar em profundidade, Pio XI, na Quadragesimo anno, introduziu algumas novidades. Em 1929, começara a grande crise económica do sistema capitalista, cuja maior consequência foi o desemprego generalizado. O Papa denunciaria a economia capitalista como "horrendamente dura, cruel e atroz", condenando em absoluto que ela atendesse apenas ao Lucro a qualquer preço. Quanto ao socialismo, distinguiria entre a sua vertente mais violenta, o marxismo, e uma outra mais moderada que, de há muito, dava pelo nome singelo de socialismo que, no entanto, devia ser também rejeitado. É então que começa a definir-se com alguma clareza o que atrás chamava a "terceira via", o corporativismo. A exemplo do que sucedera na Idade Média, a sociedade organizar-se-ia melhor - sugeria a DSI - através de organizações intermédias (entre o Estado e o indivíduo), de carácter económico-social, criadas por livre iniciativa e não impostas (como nos Estados fascistas), em que patrões e operários, se pudessem sentar à mesa à procura de entendimento. Sindicato era ainda uma palavra proibida pela sua conotação revolucionária ou marxista.
Pio XI formularia então o célebre princípio da subsidiariedade (que depois a sociedade civil e a própria Igreja consagrariam),
"… aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e trabalho para o confiar à comunidade, do mesmo modo, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que as comunidades mais pequenas e inferiores podem realizar é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade é coadjuvar os seus membros e não destruí-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado das associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado. Poderá, então, desempenhar mais livre e eficazmente o que só a ela compete porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam de que quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias associações, segundo este princípio de função subsidiária, tanto maior serão a autoridade e a eficácia sociais, e tanto mais feliz e fecundo será o estado da nação" (QA).
À luz deste princípio se condenavam todos os totalitarismos entretanto surgidos, o capitalista (só o capital tem direitos), o marxista ("intrinsecamente mau", encíclica Divini Redemptoris de 1937), e o nazi (encíclica Com viva inquietação, de 1937) e o fascista (encíclica Não temos necessidade, de 1931).
Preparava-se entretanto a 2ª Guerra Mundial. Em 1939, entraria em cena um novo Papa, Pio XII.
De facto, à morte de Pio XI, foi escolhido como seu sucessor, menos de meio ano depois de se haver iniciado a 2ª guerra mundial, o Papa Pio XII, um diplomata mais que um lutador, que assistiu torturado aos problemas do seu tempo.
Dizem os historiadores que uma das razões que levou os Cardeais a escolhê-lo foi o facto de ele, Secretário de Estado que fora no tempo de Pio XI, estar perfeitamente a par da política mundial, preparado portanto para mediar as partes em conflito com grandes possibilidades de sucesso. Foi assim que, logo dois meses depois de ter sido eleito, Pio tentaria reunir as 5 potências europeias directamente envolvidas (à data) no conflito (Alemanha, Itália, Inglaterra, França e Polónia), na ânsia de apressar o seu fim. Mas ninguém lhe ligou. Pode ter sido mesmo este o seu erro: preparando a possibilidade de intervir como mediador, terá acabado por não tomar posição clara contra nenhum dos campos. Muitos censuram hoje esta política que visava manter o Vaticano acima da desordem, enquanto que os princípios morais fundamentais levavam tratos de polé, muito mais que em 1914. Digamos que este é o julgamento da História.
Se o conflito, uma vez iniciado, era já de si tremendo, tudo se complicou entretanto com a entrada da União Soviética na guerra. O Papa, consciente do perigo que representava para o mundo a vitória do Eixo (nazismo e fascismo), pensava que pior ainda seria a vitória do comunismo. Por isso não fez pública qualquer condenação contra o nazismo. "O mal reinava no presente, ele reconhecia-o tanto como qualquer outra pessoa e sofria com isso, mas o presente solicitava-o muito menos que o futuro. O presente impossibilitou-o assim de fazer um apelo aos católicos alemães contra o seu governo sem provocar um cisma e mesmo represálias, o que enfraqueceria o nazismo e daria novas oportunidades ao comunismo" (F. L'Huillier).
Foi por isso discreta a sua presença ao drama. Claro que, logo no início, patrocinou ajuda às vítimas da guerra, tendo mesmo criado um serviço de informações de exilados, deportados e refugiados. Mas foi sobretudo nas sucessivas mensagens de Natal que no dia de Natal lia aos microfones da Rádio Vaticano, então ainda uma novidade!, que exprimiu com nitidez e precisão o seu pensamento sobre a necessidade de se dar origem a uma comunidade das nações regida pela lei moral, denunciando as causas do conflito, insistindo nos perigos do nacionalismo totalitário, e gritando pela necessidade de se trabalhar pela supressão das chocantes desigualdades económicas entre as nações.
Na prática, Pio XII não deixou nenhuma encíclica ou qualquer outro documento propriamente do âmbito da DSI. Foi nas Radiomensagens que mostrou a sua atenção aos novos problemas do seu tempo, num mundo em transformação, a Guerra numa palavra.
Saliento duas. Desde logo, a de 1941. Num mundo em que "não se vê possibilidade de entendimento entre os beligerantes, cujos recíprocos fins e programas de guerra parecem estar em oposição irreconciliável", o Papa lançou "as bases de uma Ordem nova" (título do documento) que "todos os povos anelam ver realizada depois das provações e ruínas desta guerra": "Nada de agressões contra a liberdade e vida das nações mais pequenas, … nem opressão das minorias étnicas e das suas peculiaridades culturais, … nem açambarcamento injusto das riquezas naturais por parte de algumas nações com prejuízo das outras, … nem corrida aos armamentos, nem violação dos tratados, … nem perseguição da religião e da Igreja". Praticamente no fim do documento, afirmava: "Nós amamos - Deus nos é testemunha! - com igual afecto a todos os povos sem excepção; e para evitar até a aparência de nos deixarmos levar por espírito de facção, temo-nos imposto até agora a máxima reserva". Parecia adivinhar a acusação que a História lhe faria!
Outra importante radiomensagem foi a de 1944 "Sobre a Democracia" ou tão só sobre a sua possibilidade:
"Ensinados por uma experiência amarga, (os povos) opõem-se com maior violência aos monopólios de um poder ditatorial, indevassável e intangível, e exigem um sistema de governo mais compatível com a dignidade e a liberdade dos cidadãos. Essas multidões, irrequietas, revolvidas pela guerra até nas mais profundas camadas, estão hoje dominadas pela persuasão de que, se não tivesse faltado a possibilidade de sindicar e corrigir a actividade dos poderes públicos, o mundo não teria sido arrastado na voragem desastrosa da guerra; e que, a fim de evitar para o futuro a repetição de semelhante catástrofe, é necessário proporcionar ao mesmo povo garantias eficazes. Em tal disposição de ânimos, é de admirar que a tendência democrática domine os povos e obtenha largamente o sufrágio e consenso daqueles que aspiram a colaborar mais eficazmente nos destinos dos indivíduos e da sociedade?".
Terminou entretanto a guerra. Pio XII, homem de grande cultura, dedicaria outros textos a novas realidades. Poderíamos falar da Mulher, cujo papel começava então a ser valorizado ("não é um mero problema de ordem jurídica ou económica, pedagógica ou biológica, política ou democrática", mas decorre do facto de "ela ser pessoa e, portanto, ter a dignidade própria de pessoa, uma dignidade igual à do homem" - diria no discurso Questa grande, de 1945).
Em 1953, falaria até na sua radiomensagem de Natal "Sobre os perigos do Tecnicismo". Perante os avanços da ciência e da técnica, que começavam então a ser espectaculares, o Papa chamou a atenção para a sua ambiguidade: por um lado, vêm de Deus, mas por outro podem originar graves danos espirituais - "o espírito técnico" - e levar à despersonalização das pessoas, gerando angústia e criando problemas no mundo do trabalho resultantes da automatização.
É curioso! Nada que, noutros âmbitos se não viesse já a sentir e a denunciar, noutros âmbitos: "Supus, durante muito tempo, que a ciência, só por si, poderia estabelecer entre os homens a paz, a unidade… Pois bem, não. […] Veja os resultados práticos; que ganhou o povo com isso? Um materialismo rasteiro, que, na verdade, carece de beleza… que, sobretudo, é estéril… O que parece provar que o homem não vive apenas de trabalho, de verdade. Precisa do seu domingo: a fórmula pouco importa" (Martin du Gard - O drama de João Barois, Nobel da Literatura 1937).
Pouco a pouco chegávamos ao "nosso tempo". O Cardeal Roncalli, futuro João XXIII, era já arcebispo de Veneza.
A eleição de João XXIII para a cadeira papal de Roma foi uma emoção que correu a Igreja e o Mundo.
Nos anos 50 e princípios da década de 60, as fracturas Leste/Ocidente e Moscovo/Pequim, a par do despertar dos povos colonizados para a independência, eram as grandes questões. Cada um destes problemas tinha outros a si associados. A questão do armamento desequilibrava, dum lado e do outro, as economias e gerava enormes bolsas de pobreza. As cortinas "de ferro" e "de bambú" impossibilitavam o diálogo de culturas num mundo, por outro lado, cada vez mais uma "aldeia global". A Questão Social deixara de ser uma questão (a do mundo do trabalho) para se alargar a todas as questões da sociedade, e passara de um problema do Primeiro Mundo industrializado para se estender a todo o globo. E cada vez mais se cavava a fractura entre o Norte e o Sul (no século XIX essa distância era, entre a Europa e a África, de 1 para 3, sendo hoje da ordem de 1 para 76!).
Portanto, novos problemas que era necessário assumir num tempo alargado a novos horizontes sociais e geográficos. E rapidamente as velhas ideologias começariam a entrar em crise, deixando a realidade-real sem referências globais: foi assim em Maio de 68 em França, em Abril de 74 em Portugal, na América do Sul, ao longo da década de 80, com os "regimes de segurança" em toda a América Latina, em 1989 com a queda do comunismo, e em todo este tempo com a fuga das economias ao controle dos Estados.
Mal acabado de chegar (1958), João XXIII publicaria (em 1961) a célebre Mater et Magistra, 70 anos depois da Rerum Novarum de Leão XIII.
Resumindo os ensinamentos dos seus antecessores, introduziu nesta reflexão novos conceitos: o de Bem Comum ("o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem o desenvolvimento integral da personalidade humana") alargado a todas as nações, o de socialização (suas vantagens e inconvenientes, mas sempre um meio importante para o desenvolvimento da pessoa), o da justa distribuição do produto social, e o da participação dos trabalhadores na vida das empresas. Ao mesmo tempo denunciou as grandes desigualdades (entre ricos e pobres, entre o mundo rural e urbano, entre países desenvolvidos e sub-desenvolvidos) e condenou o neo-colonialismo.
Seria, entretanto, a Pacem in Terris (1963) a sua coroa de glória.
A Pacem in Terris
O mundo a que João XXIII se dirigiu nesta encíclica encontrava-se em profunda desordem. O séc. XX começara com altos níveis de expectativa mas, na década de 60, a humanidade vivera já duas guerras mundiais e tivera igualmente de enfrentar vários e devastadores sistemas políticos totalitários. Para além disso, dois anos antes da encíclica, havia sido levantado o muro de Berlim, a separar dois mundos antagónicos, regidos por regras e sistemas de vida contrários que parecia haviam de durar para sempre. Seis meses antes, pairara mesmo no globo o terror de uma guerra nuclear com a crise dos mísseis em Cuba.
João XXIII não estava de acordo com os que propalavam a impossibilidade da paz. Espírito clarividente, disse então ser prioritário tratar com cuidado dos quatro "pilares da paz": a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. Mais: olhando os tempos que se viviam, percebeu que havia neles dinamismos profundos já presentes na história, a que chamou sinais dos tempos.
O fim do colonialismo, o nascimento de novos países, a defesa mais eficaz dos trabalhadores, a presença incipiente das mulheres na vida pública, a cada vez maior consciência de que "todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza", davam-lhe a certeza de que tudo isso teria consequências profundas a nível político, nacional e internacional.
A par disso, João XXIII aprofundaria o conceito de "bem comum", já várias vezes referido no magistério, papal. Vale a pena recordar:
"Todo o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais nada, que devem ajustar os interesses próprios às necessidades dos outros, empregando bens e serviços na direcção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isto dizer que os respectivos actos da autoridade civil não só devem ser formalmente perfeitos, mas também de conteúdo tal que de facto representem o bem comum ou a ele possam encaminhar".
 Estendeu mesmo o Papa à dimensão universal este conceito de bem comum. Referiu-se por isso com grande esperança à ONU, criada em 1945, no fim da guerra, dizendo-a "um passo importante no caminho para a organização jurídico-política da comunidade internacional", manifestando particular apreço pela sua Declaração Universal dos Direitos do Homem, em que estavam fixados os fundamentos morais de um mundo caracterizado pelo diálogo e não pela força, pela ordem e não pela desordem.
Apesar de todos os atropelos e desastres de então para cá ocorridos, diga-se, em abono da verdade, que houve um notável progresso na realização da paz que, hoje tem-se disso muito maior consciência, não se pode separar da questão da dignidade e dos direitos do homem. Não é este o tempo em que todos devem colaborar para a constituição de uma nova organização de toda a família humana, a fim de garantir a paz e a harmonia entre os povos e, simultaneamente, promover o seu progresso integral?
Contestando a perspectiva de quantos consideravam a política como um campo desvinculado da moral, sujeita apenas ao critério dos interesses, João XXIII apontou o caminho de um futuro melhor para todos. Porque nenhuma actividade humana se situa fora dos valores éticos. Nem sequer a política.
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2003 - que agora resumo brevemente - João Paulo II repete a confiança de que João XXIII dava mostras há 40 anos, afirmando que é necessário "restaurar as relações da convivência humana na base da verdade, da justiça, do amor e da liberdade" (relações das pessoas entre si, das pessoas com as suas respectivas comunidades políticas, das políticas comunidades entre si, bem como as relações de pessoas, famílias, organismos intermédios e comunidades políticas com a comunidade mundial).
Depois de João XXIII
Estávamos entretanto em pleno Concílio, sobre cujo início passaram no último 11 de Outubro 40 anos. O assunto do Vaticano II não era a DSI, antes a própria Igreja que haveria de se auto-reflectir como Povo de Deus ao serviço (porque ela é um sacramento ou instrumento) do Reino de Deus e do Mundo. E como a Igreja tem tudo a ver com o Mundo, o Concílio acabaria por dedicar a esta relação um documento - a Constituição pastoral "A Igreja no mundo contemporâneo" - que toca claramente o nosso tema.
Arrancando dos grandes princípios da antropologia cristã - a dignidade da pessoa humana e a actividade humana em geral - redefiniria a missão da Igreja no mundo e reflectiria em particular sobre alguns problemas já então preocupantes (a família, a cultura, a economia, a comunidade política e a promoção da paz).
Residiria no entanto no modo como então a Igreja olhava o mundo a grande novidade do documento. Digamos que, a partir dele, tudo mudou. A Igreja não estaria mais contra o mundo, em luta com ele, mas olhá-lo-ia com compreensão e respeito e numa atitude de diálogo, como verdadeiro interlocutor com quem é preciso falar e ao lado do qual há que colocar-se numa atitude de colaboração respeitadora da autonomia de cada uma das partes.
Face ao Mundo, antes de o julgar (segundo princípios teóricos) a Igreja tem que conhecê-lo.
"Antes de convertermos o mundo, e precisamente para o convertermos, é necessário que nos acerquemos dele e lhe falemos. […] Dele nos aproximaremos com toda a reverência, cuidado e amor, para o compreendermos" - tinha escrito já Paulo VI depois do recomeço do Concílio (em 1963), na encíclica Ecclesiam Suam (1964).
O que não é de todo fácil: há os que olham e não vêem (Mt 13,13), e há os que, tendo uma trave no olho (Lc 6,41), também não conseguem ver. Eu próprio preciso de óculos. Só vendo a realidade, a verdade da realidade, se pode entendê-la. Hoje como ontem, não se aplica ao desempregado moderno a teoria do "vai trabalhar, malandro"! Isso é julgar simplistamente segundo pré-juízos que estão ainda na cabeça de muitos. Embora continue a haver malandros. E só depois de entender a realidade se pode agir. É o já aqui referido método da revisão de vida, ou, dito duma maneira mais complicada, do método indutivo (olhar a realidade baixo para cima e não de cima para baixo, este o método dedutivo) que o Concílio adoptou. Se a Renascença consagrou "o saber de experiência feito" (Camões), a modernidade exaltaria a sacralidade da realidade que é o que é e nunca aquilo que entendemos que ela é ou gostaríamos que fosse. O próprio marxismo e seus métodos ensinaram muita coisa!
Só observando e respeitando a realidade, o Concílio pôde afirmar que "as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje são as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo". Se é assim, porque não damos as mãos na resolução de problemas e conflitos? Por isso - diria ainda a Gaudium et Spes - a Igreja se interessa por tudo o que é verdadeiramente humano, respeitando embora a justa autonomia das realidades terrestres, e defendendo sempre a igualdade radical de todos os homens, a superação de uma ética individualista e a prática da responsabilidade e da participação de todos no que é de todos e a todos diz respeito.
Esta mudança de atitude da Igreja para com o Mundo daria frutos já de seguida no tempo de Paulo VI e depois no de João Paulo II.
A mudança de atitude da Igreja para com o Mundo acontecida sobretudo no e com o Vaticano II daria de seguida frutos no tempo de Paulo VI e no de João Paulo II. Chegávamos assim aos nossos dias. Considera-se esta a última, até agora, fase da DSI, chamada a dar, mais uma vez, respostas novas a problemas novos.
Agora, a DSI começou a ser considerada como uma parte da teologia moral. Alguns a acusavam de ser apenas mais uma ideologia. João Paulo II responderia:
"A doutrina social da Igreja não é uma terceira via entre capitalismo e colectivismo marxista, nem sequer uma possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas, mas constitui por si mesma uma categoria. Não é tão pouco uma ideologia, mas a formulação cuidada dos resultados da reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. O seu objectivo principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensino do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente para consequentemente orientar a conduta cristã. Pertence, por conseguinte, não ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral" (SRS, 1987).
Um ano depois de ser eleito, em 1964, Paulo VI publicou a importantíssima encíclica Ecclesiam Suam ("Tendo Jesus fundado a sua Igreja"), uma espécie de manifesto programático em que traçou orientações ao Concílio (que foram aceites, diga-se), e onde tratou longamente a questão da necessidade do diálogo a estabelecer entre a Igreja e o Mundo, documento que, só indirectamente tem a ver com a nossa questão.
Na Populorum Progressio, porém, de 1967, abordaria directamente o Progresso (desenvolvimento) dos povos. A questão social deixara de ser um problema interno a cada nação para se tornar num problema universal. Por isso, o Papa fez um veemente apelo a uma acção urgente e inadiável: reafirmando o destino universal dos bens e partindo da prioridade da Pessoa humana e do Ser sobre o Ter, pedia ao Terceiro Mundo uma transformação radical das suas economias como única forma de evitar a injustiça e a violência, aos países industrializados suplicava ajudassem os países pobres saídos ou a sair da exploração colonialista, e a todos um grande esforço na construção de uma nova ordem internacional, porque "o desenvolvimento é o novo nome da paz".
Quatro anos depois, aos passarem 80 sobre a Rerum Novarum de Leão XIII, o mesmo Paulo VI endereçaria uma carta à Comissão Justiça e Paz, conhecida como a Octogesima Adveniens, sobre o compromisso político e social dos cristãos, uma espécie de carta da maioria dos leigos e das comunidades. É a estes - aos leigos e às comunidades - que compete tomar opções e dar as mãos aos diferentes movimentos históricos (decorrentes das diferentes ideologias, a liberal e a marxista), sob pena de deixarem de participar na vida da sociedade
"Pertence aos leigos, pelas suas livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e directrizes, imbuir de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da sua comunidade de vida. […] Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas […] Cada um deve individuar a sua própria responsabilidade e discernir em consciência as acções nas quais está chamado a participar" (nº 47).
Mas "é às comunidades cristãs que cabe analisar, com objectividade, a situação própria do seu país procurando iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho…, [que] incumbe discernir, com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as transformações sociais, políticas e económicas que se apresentam como necessárias e com urgência em não poucos casos" (nº 4).
Pelo documento passam ainda "as mutações actuais", isto é, "as realidade novas" de novos tempos: a urbanização, os cristãos urbanos, os jovens, a mulher, as novas questões do mundo do trabalho, os novos pobres, a discriminação racial, os emigrantes, a nova comunicação social, o meio ambiente, a evolução histórica do marxismo, o renascer das utopias, as novas ciências humanas, a ambiguidade do progresso.
"Diante de tantas questões novas, a Igreja procura fazer um esforço de reflexão para poder dar uma resposta, no seu campo próprio, à expectativa dos homens. Se os problemas se apresentam hoje, por um lado, como originais, dada a sua amplitude e a sua urgência, será que, por outro, o homem não tem capacidade para os resolver? A doutrina social da Igreja acompanha os homens nesta busca diligente. […] Ela é algo que se desenvolve por meio de uma reflexão que é feita em permanente contacto com as situações deste mundo, susceptíveis de mudança, sob o impulso do Evangelho, qual fonte de renovação enquanto que a sua mensagem é aceite na sua totalidade e nas suas exigências" (nº 41). De resto, "No campo social, a Igreja sempre teve a preocupação de assumir um duplo papel: o de iluminar os espíritos para os ajudar a descobrir a verdade e a discernir o caminho a seguir no meio das diversas doutrinas que os solicitam; e o de entrar na acção e difundir, com uma real solicitude de serviço e de eficácia, as energias do Evangelho" (nº 47).
João Paulo II, eleito entretanto em 1978, é o último desta cadeia de papas que intervieram marcadamente na reflexão da Questão Social.
No fim da década de 70, estava o mundo a braços com a grande recessão económica que se faria sentir sobretudo nos anos 80: a crise do petróleo tinha começado em 1973, e estava já em curso a grande revolução tecnológica que a maior parte de nós viveu, do computador ao telemóvel de 3ª geração. João Paulo vinha do Leste, da catoliquíssima Polónia, já com o Solidariedade à perna, a deixar adivinhar transformações de fundo como viria a ser, por exemplo, a queda do muro de Berlim.
Eram, no entanto, diferentes os problemas nos diversos continentes. A África afundava-se no marxismo, na fome, na corrupção e nas lutas tribais; na Ásia surgiam os "tigres" do Oriente; na América Latina, a teologia da libertação começava a ser farol e guia na busca da liberdade secularmente oprimida; no Primeiro Mundo, o "economicismo" (assim lhe chamaria o papa) justificava tudo; as contas, e contas positivas e expansivas eram o único valor e cuidado, tudo o mais, fosse o que fosse, até a dignidade das pessoas, não contava, não era cuidado, era coisa sem interesse.
Claro que João Paulo II vinha do Leste, de um contexto político e económico diferente. Mas era claro também que, num lado e no outro, os problemas batiam no mesmo: o que era o mais importante, as pessoas, cada pessoa, ou outros valores quaisquer, fossem eles as empresas, a economia, o estado, a ideologia, o meu interesse particular, sei lá que mais?
Nuns lados o mais importante era o Estado e sua ideologia. Noutros era a economia, a economia crescente, expansionista, o dinheirinho a aumentar na carteira e no banco. E em quase todos o interesse particular de alguns era mais importante que a fome, a necessidade ou a dignidade da maior parte, multiplicando vezes sem conta a parábola do homem rico e do pobre Lázaro. Na maior parte dos países, importante era a macro-economia: desde que esta estivesse bem, morressem todos à fome ou coisa parecida. Todos nos lembramos ainda dos nossos anos 80. E quanto mais se cuidava a economia, mais crescia a instabilidade social, a violência urbana e o flagelo da droga, a greve, a reivindicação, a baixa do nível de vida, etc, todos conhecemos este rol.
Foi tudo isto, dito assim desta maneira tão simples, que levou João Paulo II a perceber - a perceber não que isso já ele o sabia!, mas a consagrar no seu ensinamento - duas coisas.
Primeiro. Hoje os problemas não são mais nem regionais nem nacionais, não são sectoriais, são universais. Mais daqui menos dali, estes problemas são de todos os povos, de todos os países, de todos os continentes, embora tenham concretizações diferentes em África ou no Primeiro Mundo. Vivemos hoje numa aldeia global. Para os europeus vivermos como vivemos, os africanos passam fome. Para que na América…, no Chile tem de ser como os americanos querem, nem que seja preciso derrubar o Presidente. E o mesmo e diga do petróleo do Médio Oriente.
Não há portanto, valor que se salve, se, é a segunda questão, no meio desta barafunda não se admitir que o valor principal é a Pessoa, cada pessoa humana, cada humano, homem ou mulher. E tudo o mais são tretas.
 Por isso, João Paulo II pôde escrever:
"Um desenvolvimento que não é só económico mede-se e orienta-se segundo a realidade e a vocação do homem visto na sua globalidade: ou seja, segundo um parâmetro interior que lhe é próprio […], parâmetro que está na natureza específica do homem, criado por Deus à sua imagem e semelhança, natureza corporal e espiritual, simbolizada - no segundo relato da criação - pelos dois elementos, a terra com que Deus plasma o corpo do homem, e o sopro de vida, insuflado nas suas narinas. […] Com base nesta doutrina, cê-se que o desenvolvimento não pode consistir somente no uso, no domínio e na posse indiscriminada das coisas criadas e dos produtos da indústria humana; mas sobretudo em subordinar a posse, o domínio e o uso à semelhança divina do homem e à sua vocação para a imortalidade. É esta a realidade transcendente do ser humano, a qual é participada igualmente desde a origem pelo homem e pela mulher, e que, portanto, é fundamento social" (SRS 29).
Mas então, e o deficit? Não é importante baixar o deficit? "É precisamente a consideração dos direitos objectivos do homem do trabalho - de todo o tipo de trabalhador, braçal, intelectual, industrial, agrícola, etc - que deve constituir o critério fundamental para a formação de toda a economia" (LB 17). E exactamente porque - dizia já Santo Ireneu de Lyon, sec. II - "Gloria Dei Homo vivens" (a maior glória de Deus é o Homem vivo).
Claro que isto é muito difícil, sobretudo num mundo que é hoje, todo ele, economicista e egoísta, mundo em que cada um (indivíduo ou nação) pensa em si, apenas em si, perdidas a solidariedade e o próprio sentido da humanidade.


II. Enquadramento teológico da DSI
Como é que o aparecimento de uma renovada auto-consciência da Igreja (eclesiologia) acontecida a partir dos inícios do séc. XIX, primeiro muito tímida, acabou por influir profundamente na Questão Social?
Quando, em qualquer sector da vida, um esquema se esgota, muda-se de esquema. É assim quando, por exemplo, a gente se cansa do interior da casa: porque não pode comprar móveis novos muda a disposição dos antigos. É assim na sociedade, nos grupos, em toda a vida. Dum modo mais ou menos reformista ou revolucionário, muda-se.
Nos inícios do séc. XIX o esquema eclesiológico vigente estava esgotado. Concebida à maneira imperial - constantiniana - ou/e de um modo claramente piramidal e jurídico (todo o poder vem de Deus e sempre de cima para baixo), a Igreja era uma hierarcologia (Congar) de desiguais. Com a mentalidade romântica (vinda da Alemanha: Schiller, Goethe, Wagner…), entretanto, libertara-se já a noção de Povo entendido como "organismo vivo" capaz de gerar cultura…
E foi exactamente na Alemanha que um teólogo verdadeiramente novo, no sentido de inovador, propôs uma chave nova para entender a Igreja. Chamava-se ele Möhler (1796-1838) - como todos os filhos dos deuses morreu jovem! - e o seu raciocínio ou ponto de partida foi muito simples: Jesus, que era de condição divina, não reivindicou essa sua condição, pelo contrário, tomou a condição de servo, em tudo semelhante aos homens, identificando-se com eles, e rebaixando-se a si mesmo até à morte de cruz; por isso é que Deus o exaltou acima de tudo e de todos (cf Filp 2,6-8 e Ef 1,20-23).
(Faço aqui um breve parêntesis para lembrar que os artistas, os poetas, percebem e sabem dizer estas coisas muito antes e muito melhor que os intelectuais. Convido-vos a escutardes em casa, se tendes o disco, o "Incarnatus … et sepultus est" da Missa em si menor de Bach, "a catedral da música", onde esta descida está sonoramente desenhada de uma maneira única, seguida imediatamente da subida expressa pelo "Et ressurrexit". Mas o que Bach tinha dito já em 1738, a teologia só o exprimiu 100 anos depois, números redondos).
Se Jesus fez isto, à Igreja - a quem ele entregou a continuação da sua obra ou missão ou tarefa - não resta outra hipótese. Tem de o fazer também, deixar-se de teorias de poder e quejandos, e baixar à condição dos homens, não reivindicando direitos ou regalias, mas servindo. Möhler formulou assim: a Igreja é um Natal continuado.
Mas não termina aqui o seu raciocínio. É que Jesus não baixou por baixar. Baixou para subir. Por isso é que em todo o Novo Testamento (e já no Antigo) este jogo das palavras baixar e subir aplicado a Jesus é frequentíssimo: ele desceu dos céus… para subir aos céus. O Símbolo dos Apóstolos: "nasceu da Virgem Maria (e depois disso continuou a descer: padeceu…, foi crucificado, morto e sepultado; desceu mesmo à mansão dos mortos)" e depois "subiu aos céus". O Símbolo de Niceia-Constatinopla: "desceu do céu e incarnou … e subiu aos céus onde está sentado à direita do Pai". Bem mais próximo de nós, no fim dos anos 40 do século passado, um justamente célebre arcebispo de Paris - Suhard - explicava assim: "Quando o Verbo se fez carne, fez-se plenamente como nós, [mas] não se limitou a um movimento descendente. Tomou a nossa natureza e assumiu-a… Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus. A incarnação do cristão deve seguir o seu modelo".
Volto a Möhler. O teólogo - que, curiosamente, começou por ser professor de Direito Canónico na Universidade de Tubinga e só depois se dedicaria à eclesiologia - tinha encontrado um verdadeiro ovo de Colombo. A Igreja, continuava ele, só se entende neste jogo dinâmico de descer e subir, de descer para subir, de descer ela para ajudar outros a subir, ao jeito da Incarnação do Filho de Deus, deixando ou pondo de lado categorias ou privilégios, direitos mesmo, cangada de que se não pode carregar pois lhe impede quer a subida quer a descida.
Este raciocínio fundamental, preliminar e originante (de uma nova eclesiologia), estamos mesmo a ver no que deu: ninguém lhe ligou. Muito menos se tiraram dele quaisquer consequências. A coisa caiu no esquecimento. Ninguém mais falou do assunto (não foi bem assim mas deixem-me utilizar a expressão), entretanto Pio IX sair-se-ia com o celebre Syllabus (1864), a condenar mundo e modernidade, haveria mesmo o Concílio Vaticano I (1869-1870), o da "papolatria", a passar ao lado desta reflexão como se ela não tivesse sido formulada, mas…
O Espírito Santo não estava a dormir.
Em 1870, com a ocupação de Roma, o Concílio Vaticano I seria apressadamente suspenso e, em 1879, subiria à cadeira de Pedro o nosso já conhecido Leão XIII, o "papa dos trabalhadores" que, depois de publicar a Rerum Novarum (1891), retomaria os princípios de Möhler e logo em duas encíclicas (Satis cognitum de 1896, e Divinum illud do ano seguinte), que são os documentos mais solenes do magistério papal. Quem diria! Leão XIII é mesmo hoje muito conhecido pela Rerum Novarum mas praticamente desconhecido nesta sua vertente de eclesiólogo, ele que não deixou cair no esquecimento a reflexão do teólogo de Tubinga. A Igreja tem de baixar de tronos, regalias e privilégios, e descer (esta reflexão de Möhler teria outras consequências - diga-se - mas que não têm propriamente a ver com a nossa questão e, por isso, passo à frente).
A quem, antes de mais ninguém, tinha a Igreja de descer no séc. XIX, repetindo o ciclo da Incarnação, em plena Revolução Industrial?
A analogia da Incarnação
Cansado do esgotado neoclassicismo do séc. XVIII, bem como dos temas e soluções do período clássico (grego e latino) da Antiguidade europeia, o século XIX voltou-se para o Povo e sua cultura, tomando consciência de que cada povo ou nação, mais do que qualquer indivíduo, tinha capacidade de criar e desenvolver formas de expressão (cultura) colectivas. Mais ainda: cansado do frio e seco racionalismo (confiança absoluta na Razão humana e suas luzes), o séc. XIX entregou-se aos prazeres da imaginação, da emoção e do sonho, mais próprios do povo que do homem culto. Era o romantismo.
Enquanto isto e também por isto, na teologia, Möhler propunha uma chave nova para entender a Igreja: entre esta e o mistério da Incarnação do Verbo havia uma analogia. Ou seja: assim como o Verbo de Deus tinha descido à carne humana para ajudar o homem a subir para Deus, assim a Igreja - que continua a sua Obra no tempo - havia de fazer, deixar tronos e potestades, descendo aos mais pobres do povo, para os ajudar a subir:
"Se o Verbo de Deus houvesse entrado no coração dos homens sem ter tomado a forma de servo e, consequentemente, sem ter aparecido em forma corporal, teria apenas fundado uma Igreja invisível, puramente interna. Mas como o Verbo se fez carne, exprimindo-se assim de forma externamente perceptível e humana, falou como homem aos homens e obrou e sofreu à maneira humana, a fim de ganhar de novo os homens para o Reino de Deus. Assim, o meio escolhido para a consecução desse fim correspondeu completamente ao método de instrução e educação pedido pela natureza e necessidades do homem. […] A Igreja visível é hoje o próprio Filho de Deus que continua a aparecer entre os homens em forma humana, renovando-se continuamente e eternamente se rejuvenescendo: ela é a incarnação permanente do Filho de Deus" (Möhler).
Esta é a teoria de um teólogo: Deus fez-se pobre para ajudar o pobre a ser rico, retomando assim a expressão de Paulo: "Nosso Senhor Jesus Cristo, que era rico, fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza" (Cor, 8.9).
Esta era a teoria, repito. Já atrás se disse como esta teoria só foi avalizada no fim do séc. XIX por Leão XIII.
Antes disso, porém, estávamos em plena Revolução Industrial, rodeados dos novos pobres do século do pauperismo que foi o XIX, os do povo proletário, muitas coisas aconteciam.
Conto só uma história.
Estávamos no Natal de 1856. O Pe António Chévrier (1826-1879) era coadjutor em Guillotière, um subúrbio industrializado de Lyon, no eixo que esta cidade definia com Saint Étienne, a primeira região industrial francesa. A paróquia teria, já nessa altura, cerca de 80.000 habitantes, tudo praticamente operários. Chévrier vivia profundamente angustiado pela miséria material e religiosa daquele proletariado: "Nas oficinas, o trabalho absorve de tal modo os operários que eles deixaram de frequentar a Igreja, quase esqueceram a doutrina religiosa, visto que a fábrica, a oficina e a mecânica, os obrigam a um trabalho de todos os dias e de todas as horas, sob pena de lhes faltar o pão". Mas Chévrier não é homem para se contentar com análises. Rapidamente vai passar à acção. É ele próprio que conta a sua conversão: na noite de Natal de 1856, "ao meditar sobre a Incarnação diante do presépio do Menino Jesus … o Filho de Deus veio à terra para salvar os homens… Compreendi que não basta ter compaixão dos pobres e procurar aliviar a sua miséria. Se os queremos evangelizar temos de fazer aquilo que Jesus fez: partilhar a sua vida e tornar-nos pobres como eles".
Esta atitude, que não é a única que a História da Igreja regista neste século e nestes meios operários, libertará a palavra Incarnação: assim como Jesus incarnou tomando em sua vida a mesma vida dos homens, assim a Igreja, que continua a sua obra, tem de incarnar.
Nada de novo debaixo do sol, é verdade. Já Paulo tinha escrito assim aos Coríntios:
"Livre em relação a todos, fiz-me servo de todos para ganhar o maior número. Fiz-me judeu com os judeus, para ganhar os judeus. Com os que estão sujeitos à Lei comportei-me como se a ela estivesse também amarrado, para ganhar os que a ela se submetem. Com os que vivem sem Lei, embora eu não viva sem ela porque tenho a Lei de Cristo, fiz-me um sem Lei para ganhar os que vivem sem ela. Fiz-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo" (1ª Cor 9, 19-22).
Nada de novo debaixo do sol, dizia. O certo é que a Igreja do séc. XIX começou a sentir, pouco a pouco, a necessidade de incarnar, de comungar da vida daqueles a quem queria anunciar o Evangelho.
A palavra incarnação faria fortuna na Igreja do séc. XIX e do séc. XX. Incarnar quer/quis dizer "tomar a carne", isto é, a condição dos homens, baixar de cadeirais e lugares altos para os lugares da humanidade, sejam quais forem, os da pobreza material claro, mas hoje como sabemos o conceito de pobreza não tem mais os limites do passado.
Posso relembrar um texto do Pe Gaspar (1946-1995)?
É preciso "Tentar perceber a dinâmica da Salvação trazida por Jesus, aceitando arriscar a infinitude do Reino de Deus numa experiência concreta, reduzida no espaço e no tempo e, sobretudo, escolhendo (porque certamente não foi por acaso) incarnar numa família pobre, numa terra pobre, num povo pobre, levou-me a compreender a pobreza não somente como ausência de bens, mas sobretudo como solidariedade de destino com os que não são privilegiados da vida, com os que estão na mó de baixo nos mecanismos de produção de bens deste mundo". Mas "A nossa grande dificuldade está sempre ligada com o Mistério da Incarnação. Não conseguimos aquilo que Deus já fez: ligar o Céu e a Terra, Deus e o Homem, unir os interesses dos homens e os de Deus, fazendo-se ele próprio um homem, assumindo toda a sua vida, dinâmica, limitações, pecados, grandezas e possibilidades. (…) Jesus Cristo não receou arriscar na incarnação. Sendo Deus aceitou limitar-se a um homem. Sendo eterno, aceitou limitar-se num tempo da História. Estando presente em toda a parte, como diz a doutrina, aceitou viver confinado num lugar. Sendo omnipotente, aceitou o desafio da fraqueza e da pobreza, aceitou pertencer ao povo dos pobres e dos fracos, dos não detentores do poder e da riqueza; e aceitou tomar riscos concretos que lhe valeram as inimizades mortais".
Começamos assim a perceber porque é que a pobreza dos pobres exigiu da Igreja uma nova postura perante os pobres. Começava a nascer o caldo de cultura da Doutrina Social da Igreja.
Sendo embora Deus, Jesus desceu "propter nos homines et propter nostram salutem" (por causa de nós, homens, e para nossa salvação). O porquê desta descida de Jesus intrigou profundamente os nossos maiores e, desde logo, Santo Anselmo, bispo de Cantuária, do séc. XI, que formulou a célebre pergunta "Cur Deus Homo?" (Deus fez-se homem porquê?), para a qual encontrou esta resposta: o pecado do homem, que havia ofendido a dignidade de Deus, não podia ser perdoado sem que, antes, o ofendido Deus fosse desagravado pelo homem-autor-da-ofensa.
Segundo esta teologia, profundamente marcada pela mentalidade ético-jurídica romana, todo o mistério de Jesus é visto em função da reparação que era devida a Deus (o direito era tão importante para os romanos como hoje o lucro para os economistas) a ofensa feita a Deus pelo pecado do homem tinha de ser reparada; ainda há praí muitas traduções litúrgicas que dizem que Jesus é «preço da nossa redenção». A boca sempre a falar da abundância do coração! E já que o homem não podia oferecer a Deus nada de jeito, Jesus, que não precisava para nada do seu mérito, transferiu-o para os homens. E deste modo conseguiu que o Pai perdoasse à humanidade. Daí aquelas frases piedosas: que Jesus morreu pelos nossos pecados, que os nossos pecados o mataram…, etc. Esta explicação aparece-nos hoje, no mínimo, abstrusa.
A verdade é bem outra: nós homens estávamos cheios de problemas; a doença, a pobreza, o pecado e a morte. Por isso mesmo, Jesus veio até nós "propter nos" (por nossa causa", e com uma Boa Notícia que é o que quer dizer a palavra "evangelho"): ele veio combater as causas dos nossos males.
Um dia, depois de um longo ensinamento feito aos Doze, chegaram os discípulos de João Baptista e dispararam: "És tu aquele quer há-de vir ou devemos esperar outro?" (Mt 11,3). E Jesus respondeu assim: os cegos, os coxos, os leprosos e os surdos são curados da doença, aos pobres é anunciada uma Boa Notícia, os mortos ressuscitam (até aqui Mt 11,5) e os pecados são perdoados (Luc 7,49). Jesus não vem olhar pelos interesses de Deus (vingar a sua honra, reparar a ofensa que lhe foi feita, exigir compensação, tão pouco castigar em seu nome). Jesus vem "para que tenhais a vida e a tenhais em abundância" (Jo 10,10), pois no ressuscitado todos voltarão a receber a vida (1 Cor 15,22). Por isso é que os sãos não precisam de médico (Mt 9,12), e as 99 ovelhas que esperem enquanto o pastor vai à procura da única que se perdeu (Lc 15,4-7). Numa palavra, Jesus veio à causa do sofrimento do homem: a doença, a pobreza, a morte e o pecado.
Como ele e à luz dele, a Igreja tem de proceder e comportar-se assim. Foi exactamente o que a Igreja descobriu no tempo do romantismo, preocupada com o homem concreto, com o homem pobre e sofredor do seu tempo.
Ir às causas da pobreza
É verdade que a Igreja sempre cuidara dos doentes e dos pobres, dos pecadores e dos mortos. Mas nunca tinha sido capaz de ir às causas destes males. Quanto mais tratava dos doentes, mais eles morriam: quem se não lembra da peste negra do séc. XIV? Quanto mais pão distribuía mais fome havia: não era assim Pe Américo? Não é verdade que ainda no tempo dos nossos pais a morte matava muitos mais que o que devia? E o pecado não amarrava muito mais o pecador à Lei? ("O pecado aproveitou-se da oportunidade que lhe deu a Lei e provocou em mim toda a espécie de cobiça" - Rom 7, 8).
A Igreja nunca tinha sido capaz de ir às causas. E esta foi a nova atitude da DSI. Olhando pela primeira vez a "miséria imerecida … dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estavam na sua maior parte em situação de infortúnio" e a viver "um jugo quase servil", "é preciso, com medidas prontas e eficazes, vir em seu auxílio" (RN 1), "descobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la resolutamente" (PP 72). Não já tratamentos de paliativo, com analgésicos, mas um tratamento que vença as causas da infecção e do cancro, miséria imerecida, de modo que não haja mais miseráveis, que vença as causas do jugo quase servil de modo que haja apenas homens livres a quem se garantam condições de vida digna.
Este ir às causas da pobreza tem de ser empenhado e eficaz: "Há um paradoxo que atravessa a relação da Igreja portuguesa com a pobreza: é inegável que a Igreja se preocupa com os pobres e está na primeira linha da ajuda directa aos pobres. Mas enquanto faz isso, tem um défice manifesto em tudo o que se refere à denúncia dos processos de empobrecimento, das situações de injustiça na génese da pobreza, e na formação da consciência dos cristãos acerca dos mecanismos da desigualdade e da exclusão" (Manuela Silva), crítica que parece estender-se por exemplo ao documento sobre o trabalho recentemente publicado, no mínimo "brando em demasia", diz alguém que agora não cito.
Este ir às causas da pobreza, exige se conheçam até as novas formas de pobreza que não cessam de aparecer:
"Torna-se necessário um discernimento cada vez mais apurado para captar, na sua origem, situações nascentes de injustiça e instaurar progressivamente uma justiça menos imperfeita. No mundo industrial em constante mutação, que exige uma adaptação rápida e permanente, aqueles que possam vir a ser lesados serão cada vez mais numerosos e mais sujeitos a não conseguirem fazer ouvir a sua voz. A atenção da Igreja deve portanto voltar-se para os novos pobres - impedidos por toda a espécie de dificuldades, inadaptados, velhos e marginais de origem diversa - para os aceitar, para os ajudar e para defender o seu lugar e a sua dignidade numa sociedade endurecida pela competição e pelo fascínio do êxito "(OA 15).
A DSI despoletaria de imediato uma tríplice atitude: 1º a denúncia da raiz dos problemas, 2º a erradicação dessas causas, mas 3º sem esquecer que no meio disto tudo "quem se lixa é o mexilhão", isto é, os mais pobres. Não se trata, portanto e só, de uma teoria ou ideologia, de meia dúzia de princípios teóricos que depois na prática logo se vê. Não se trata apenas de uma boa vontade piedosa; pelo contrário, exige uma análise rigorosa, mesmo científica, da realidade em questão, do mundo do trabalho, do mundo económico-financeiro, da dignidade da Pessoa humana e demais valores em jogo, das relações sociais e internacionais, etc. E finalmente exige se não esqueça que, a jusante das causas, há vítimas que não perdem nem a sua dignidade humana nem os seus direitos. Quem vela por elas se já nem o próprio Estado cuida dos seus pobres?
Diziam assim os Bispos reunidos no Sínodo de 1971 sobre "A Justiça no Mundo": "A nossa acção deve ter como objectivo em primeiro lugar aqueles homens e nações que, devido a formas diversas de opressão e por força da índole própria da sociedade actual, são vítimas silenciosas da injustiça e, mais ainda, vítimas da injustiça sem direito a voz".
E as comunidades?
Com a DSI, a Igreja aprendeu a ir às causas dos problemas, a contribuir para a sua erradicação. Deixou por isso de se preocupar apenas com as manifestações dos problemas, como fizera ao longo de toda a sua história.
De facto, uma coisa são as causas dos problemas: a falta de trabalho é causa de fome; outra a manifestação da causa: como o Zé não tem que comer, aqui mesmo à minha porta, deixo-o morrer à fome?
Nem o Estado, nem a Igreja, nem eu próprio, podemos abandonar o que morre de fome à minha porta, embora ajudando-o eu não resolva o problema global da fome no mundo: "dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, o amor preferencial pelos pobres, com as decisões que nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-tecto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor; não se pode deixar de ter em conta a existência destas realidades. Ignorá-las significaria tornarmo-nos como o rico que fingia não conhecer o pobre Lázaro, que jazia ao seu portão" (SRS 42).
É este o Quarto Mundo, como hoje se diz. Depois do Primeiro (a Europa) e do Segundo (América do Norte), mundos ricos e desenvolvidos, o Terceiro (hemisfério sul) e o Quarto Mundos, este ao pé da porta, fazendo mesmo parte do Primeiro.
Por tudo isto, eu penso que as comunidades têm de/devem ter um Serviço de Partilha Fraterna, cuja missão não é ir às causas, mas às consequências, às reparações imediatas exigidas por uma fraternidade que de outro modo é negada, e um Serviço Justiça e Paz, que ajude, esse sim, a chegar às causas, a compreender os seus mecanismos e a possibilidade da sua remoção. Repito Paulo VI, atrás citado:
«É às comunidades cristãs que cabe analisar, com objectividade, a situação própria do seu país procurando iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre haurir princípios de reflexão, normas para julgar e directrizes para a acção … as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as transformações sociais, políticas e económicas que se apresentam como necessárias e com urgência em não poucos casos … [para o que] os cristãos deverão, antes de mais nada, renovar a sua confiança na força e na originalidade das exigências evangélicas" (OA 4).
Esta é uma atitude muito cristã e uma cultura teológica que irritou muito a geração dos nossos pais que logo acusavam estarem (os presbíteros e as comunidades) a tratar de política mal se tentava chegar às causas, mal se falava em causas, coutada privada da política. Por causa disso é que o Vaticano II exortaria expressamente os cristãos a cumprirem fielmente os seus deveres terrenos, acrescentando:
"Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, pensam que podem por isso descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a própria fé os obriga ainda mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um. Mas não menos erram os que, pelo contrário, opinam poder entregar-se às ocupações terrenas, como se estas fossem inteiramente alheias à vida religiosa, a qual pensam consistir apenas no cumprimento dos actos de culto e de certos deveres morais. Este divórcio entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo" (GS 43).
A não ser assim, não é verdade que os cristãos se "refugiavam nos altares, entregando o mundo ao diabo", como escreveu o poeta e eu cito mais uma vez?
As comunidades cristãs, portanto, têm de viver sempre entre os termos desta dicotomia: por um lado, "analisar, com objectividade, a situação própria do seu país … à luz das palavras inalteráveis do Evangelho … [em ordem a] as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as transformações sociais, políticas e económicas"; por outro, atender os pobres Lázaros, que jazem ao meu portão.
É por isso que a teologia das comunidades tem um toque diferente da teologia dos teólogos. É assim desde Antioquia e Alexandria do Egipto. E é por isso ainda que os melhores teólogos não se afastam das comunidades.
A isto se chama "incarnar", palavra que, como expliquei, e à luz da analogia entre o mistério da Igreja e o de Cristo, fez fortuna na teologia, a partir do séc. XIX. Foi a necessidade de incarnar, sentida por muitos na Igreja do séc. XIX e XX, que deu origem, por exemplo, aos padres operários. Incarnando, isto é, aterrando no mundo da injustiça e da pobreza, perceberam por dentro o mundo dos pobres, tornados pobres com os pobres, trabalhando como os pobres e nos lugares dos pobres, explorados como os pobres, esgotados como os pobres, estupidificados como os pobres. Escreveu por isso o Pe. Gaspar:
"O grande presente não são os pastores que o dão ao Menino. É Deus que dá o seu Filho aos homens; não para que ele venha ver, ofereça algo e regresse, mas para que ele venha e viva a mesma vida daqueles que quer ajudar, participe da vida dos desfavorecidos… essa é a verdadeira solidariedade".
De Chévrier ao Gaspar, o presépio é um grande mistério!


III. Algumas questões particulares
1. A universalidade da Questão Social e a ONU
O menino nascido na insignificante cidade de Belém e que foi depois para Nazaré, terra de onde não pode vir coisa boa (Jo 1,4), é apenas o sacramento da presença discreta de Deus no coração da história. Tanto que muitos dos seus não o receberam (Jo 1,11).
Deus continuou assim tão retirado do mundo como até aí, sendo embora a sua presença tão profunda que os que se perdiam nas aparências - a maior parte? - não foram capazes de o reconhecer. No entanto e paradoxalmente, como ele próprio reconheceu, já adulto, nenhum dos que se perguntam pelo sentido da dignidade humana está longe do Reino que ele anunciava (Mc 12,34). Ele próprio, nesta luta, foi o maior. Com o seu nascimento começou a extraordinária história de um homem sem qualidades sobre-humanas, ele que não era nem um super-homem nem marioneta da divindade, mas sim um homem "em tudo igual a nós excepto no pecado" (Heb 4,15), um homem em quem a humanidade tomou forma humana em toda a sua beleza e tragédia. Jesus é o rosto da história da bondade sem limites mas também da crueldade do mundo. No entanto, mesmo depois dele e apesar dele, a aventura humana continuou em dores de parto, entre a agonia e a esperança, numa história feita de pequenos passos que, um por um, configuram uma nova humanidade carregada embora de ambiguidades e desastres.
Esta é a nossa fé … que nos gloriamos de professar em Jesus Cristo, nosso Senhor!
Às voltas com a DSI, ouvimos falar de paz e ouvimos falar de guerra, assistindo aos seus preparativos.
Já percebemos que esta DSI começou a debruçar-se sobre a vida no interior das fábricas, sobre os seus trabalhadores mais pobres, a afirmar os seus direitos (hoje já só se fala da sua defesa), pequenos problemas perdidos num grande mundo. Daqui se passou rapidamente às causas da "miséria imerecida". E, nomeadamente com João XXIII e Paulo VI, mas já com Pio XI e Pio XII, se alargara às dimensões do mundo, muitas décadas antes que soubéssemos dizer a palavra globalização.
Os problemas do homem, de todo o homem, são desta "aldeia global" que é o mundo, de todo o mundo e do mundo todo. Rapidamente a DSI se estendeu aos problemas universais. De "Pacem in Terris" falava João XXIII.
Nós, os cristãos, e todos os mais afinal, sabemos que um Homem de coração desarmado e uma Terra de justiça são conceitos escatológicos - "as nações caminharão à tua luz e os reis ao esplendor da tua aurora … todos vêm ao teu encontro … a ti afluirão os tesouros e a riqueza das nações" (Isaías) - que nunca alcançaremos plenamente neste mundo, embora devamos todos aproximar-nos deles e lutar por eles o mais possível.
Por isso, desde que se conseguiu falar de paz a nível mundial, e isso foi após a 2ª Guerra assim dita, essa sim verdadeiramente mundial, se começou também a falar numa autoridade supra estatal (que detivesse mesmo o monopólio da violência legítima). Se, no fim da 1ª guerra (1914-1917), pôde organizar-se uma Sociedade das Nações, no fim da 2ª nasceria a ONU.
O Vaticano II deixaria escrito: "Devemos com todas as nossas forças preparar uma época em que, por acordo das nações, possa ser absolutamente proibida qualquer guerra. Isto requer o estabelecimento de uma autoridade pública universal reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito pelos direitos" (GS 82). Para tal havia sido criada exactamente a ONU. O preâmbulo da sua Carta refere expressamente que é seu fim "preservar as gerações futuras da praga da guerra que, por duas vezes no espaço de uma geração, infligiu à humanidade indizíveis sofrimentos". Todos conhecemos, porém, a história da difícil vida desta instituição mundial.
A sua importância é mais fácil de perceber se tivermos presente quanto custou o estabelecimento de um poder único e central dentro da cada país. Quando é que isso aconteceu em Portugal? Com D. Afonso Henriques, com D. Dinis, com D. João I, com o II, com o III ou só com o IV? Com D. Pedro V, com Sidónio Pais ou só com Salazar? E, mesmo assim, com que custos de terror, de injustiça e de arbitrariedade? Em 1938, La Brière comparava a sociedade internacional a "um vasto país que não possuía nem polícia, nem tribunais, nem sistema algum de repressão penal", de modo que os particulares, privados "de instituições que tutelem o direito de cada um", não têm outro recurso senão organizar-se eles e armar-se "para se defenderem dos delinquentes e dos agressores injustos".
Antes dele, Kant (séc. XVIII) tinha falado da necessidade de "fugir do estado sem lei dos selvagens e de entrar numa união de nações, na qual mesmo o Estado mais pequeno possa esperar a sua segurança e o seu direito não do seu próprio poder ou da sua decisão jurídica, mas unicamente dessa grande federação de nações". A necessidade - continuava - "forçará os Estados (por mais que isso lhes custe) a tomar uma resolução a que se sentem já forçados os próprios indivíduos, isto é: a prescindirem da sua brutal liberdade para conseguirem tranquilidade e segurança numa constituição legal".
Por isso - e eu digo justamente "por isso" -, desde os tempos apostólicos, o cristianismo se opôs ao princípio do nacionalismo da religião judaica, alimentando assim a aspiração a uma comunidade de nações e de povos, de que vinha falando desde o séc. VIII aC o profeta Isaías e todos os mais que se lhe seguiram.
E é nessa direcção que temos que seguir. Por mais que digam alguns políticos de algumas nações que é noutra.
Com João XXIII dizemos: "As Nações Unidas propõem-se como fim essencial defender e consolidar a paz das nações, fomentando entre elas relações de amizade, baseadas nos princípios de igualdade, respeito mútuo e múltipla cooperação em todos os sectores da actividade humana" (PT 142).
E com Paulo VI: "A vossa vocação, dizíamos nós aos representantes das Nações Unidas, em Nova Iorque, é a de levardes a fraternizar não alguns só mas todos os povos. … Quem não vê a necessidade de se chegar assim, progressivamente, ao estabelecimento duma autoridade mundial, em condições de agir no plano jurídico e político?" (PP 78).
E João Paulo II? Reconhecendo embora que "as Nações Unidas ainda não conseguiram construir instrumentos eficazes, alternativos à guerra, na solução dos conflitos internacionais", afirma sem hesitar que, com a Organização, "cresceu não só a consciência do direito dos indivíduos mas também a das nações, enquanto se adverte mais claramente a necessidade de actuar para sanar os graves desequilíbrios entre as diversas áreas do mundo, o que transferiu, em certo sentido, o centro da questão social do âmbito nacional para o nível internacional" (SRS 21).
(E não é verdade que toda esta DSI é diferente da "prática" de exibir "desenhos animados" antes dos filmes já devidamente programados, mesmo quando muitos afirmam que "a ameaça brandida por Pyongyang é muito mais urgente do que a que representa Bagdad, muito mais controlada"?)

2. Uma muito breve referência à Família
Muitas vezes ao longo de toda esta reflexão que leva 112 anos após a Rerum Novarum, se falou da família. Claro que se começou por afirmar o direito de todos os trabalhadores a constituírem família. Nem se pense que estou a dizer uma enormidade ou uma verdade de "La Palisse". Ainda hoje há muitos(as) trabalhadores(as) que, por exemplo, não têm direito a ter filhos pois que, se engravidarem, vêm para a rua. Começou-se por aqui. Os operários vinham do campo para a fábrica, e as famílias ficavam lá, no campo. Já aqui referi a afirmação do historiador que diz que ao operário restava o prostíbulo e a taberna.
Mas logo a DSI se preocupou em afirmar que o operário tem direito a "receber um salário suficiente para acorrer com desafogo às suas necessidades e às da sua família" que lhe permita mesmo "ir juntando uma pequena poupança que lhe permita, um dia, adquirir um modesto património" (RN 33). Muito haveria a comentar destas afirmações. Não havia reforma nem previdência, e daí que o salário tivesse de dar para viver e poupar, num tempo em que o empregador se não preocupava com estas dimensões do trabalho assalariado pois o que pretendia era pagar o menos possível.
Quarenta anos depois, Pio XI não diz muito diferente:
"Ao operário deve dar-se remuneração que baste para o sustento seu e da família. É justo que toda a família, na medida das suas forças, contribua para o seu sustento, como vemos que fazem as famílias dos lavradores e também muitas dos artesãos e pequenos comerciantes. Mas é uma iniquidade abusar da idade infantil ou da fraqueza feminina [este texto tem 71 anos!) … Deve pois procurar-se por todos os meios que os pais de família recebam uma paga suficientemente abundante para cobrir as despesas normais da casa. E se as actuais condições não permitem que isto se possa efectuar sempre, exige contudo a justiça social que se introduzam quanto antes as necessárias reformas, para que possa assegurar-se tal salário a todo o operário adulto" (QA 71).
Noventa anos passados, a Laborem Exercens (1981):
"A justa remuneração do trabalho das pessoas adultas com responsabilidades familiares é a que for suficiente para fundar e manter dignamente a família e para garantir o seu futuro. Tal remuneração poderá efectuar-se ou por meio do chamado salário familiar, isto é, um salário único atribuído ao chefe de família pelo seu trabalho e que seja suficiente para as necessidades da sua família…, ou então por meio de outras medidas sociais, comos sejam abonos de família ou subsídios para as mães que se dedicam exclusivamente à família, subsídios estes que devem corresponder às necessidades efectivas, quer dizer, ao número de pessoas a seu cargo e durante todo o tempo em que elas não estão em condições de assumir dignamente a responsabilidade da sua própria vida" (LE 19).
Referem-se aqui obrigações que os estados modernos assumiram, por obrigação de justiça, com maior ou menos capacidade ou vontade.
Do básico direito de constituir família e preocupações de tipo mais socializante, eis o percurso do mundo do Trabalho, da reivindicação operária e da própria DSI neste já longo percurso. Claro que conquista de uns e cedência de outros, com o Estado pelo meio a arbitrar, nem sempre bem, e com contributos de muitas partes.
A DSI não é uma teoria de sacristia, mas uma reflexão feita no caminho das dificuldades da Questão Social, um caminho partilhado com muitos outros "homens de boa vontade", como diria João XXIII.
3. O mundo da Economia
Digamos que tanto os filósofos da Antiguidade como os teólogos escolásticos medievais se esforçaram por introduzir critérios éticos no mundo da economia, ou seja, leis sobre o preço justo, a proibição da usura, etc. Sempre a justiça como um valor. Ainda nos séculos XVII e XVIII, os comerciantes e outros agentes económicos prestavam a maior atenção às reflexões dos moralistas, preocupados em gerir a sua actividade digamos que com honradez.
Foi precisamente este último século que alterou as regras: Sileant theologi in munere alieno (calem-se os teólogos neste terreno que lhes é alheio). Se os economistas soubessem hoje latim, repetiriam a afirmação!
A aparição do capitalismo provocou uma ruptura entre a economia e a ética, ao afirmar que a vida económica se rege por leis que lhe são intrínsecas, análogas às que regem os fenómenos físicos, químicos ou biológicos. Basta deixá-las funcionar com inteira liberdade. O francês Gournay cunharia a célebre afirmação: "Laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même" (Deixai fazer, deixai passar, que o mundo caminha por si). Claro que aqui deixar fazer queria dizer deixar produzir sem qualquer entrave ou norma imposta à iniciativa privada (actividade produtiva, depois industrial), e deixar passar referia-se à livre circulação de produtos, isenta de impostos. Um seu contemporâneo comentava: "Que felicidade e alívio para o homem saber-se livre de qualquer responsabilidade moral; as coisas compõem-se por si mesmas!".
Naturalmente, impôs-se a ideia de que, neste campo, não tinha sentido nenhum aplicar qualquer categoria ética de justiça ou injustiça. Adam Smith (1723-1790), o pai do capitalismo liberal, defendeu, portanto, que o lucro devia ser o único motor da actividade económica, acreditando que a sua "mão invisível" faria desaguar os múltiplos egoísmos ou interesses particulares no Bem Comum. O que não aconteceu, pelo contrário, como sabemos todos: "Vemos que a economia actual está chagada de vícios gravíssimos" - escrevia Pio XI em 1931.
Digamos que a economia moderna nunca se entendeu bem com a moral. Mas é verdade que nunca há um conflito apenas num sentido. Por isso também os economistas têm queixas dos moralistas, acusando-os de não perceberem nada… de economia. Nessa linha, quando João Paulo II publicou a encíclica Sollicitudo Rei Socialis 1987), alguns economistas escreveram-lhe uma carta a dizer, entre outras coisas, que, "para que a sollicitudo rei socialis [a solicitude pela questão social] sirva o bem comum deve fundamentar-se numa sapientia rei economicæ [conhecimento da ciência económica] que modernamente lhe falta".
Por isso, muitos economistas se riem dos esforços por fazer vingar critérios éticos no mundo da economia, continuando a defender que o mundo económico se rege a si mesmo e por si, sem precisar de boas intenções. Pregar à economia é a mesma coisa que dizer a um carvalho que dê laranjas em vez de bolotas! "O desenvolvimento económico só funciona se ele respeitar as suas leis específicas e não obedecendo aos princípios da teologia cristã ou muçulmana", diziam os mesmos economistas na citada carta ao Papa. Teriam estes economistas razão se a economia fosse uma questão apenas técnica.
No entanto, como qualquer estudante desta ciência sabe, a economia costuma definir-se como o conjunto das actividades humanas dirigidas à obtenção de bens e serviços - mediante a sua produção e intercâmbio - num contexto de escassez. Este último elemento da frase - num contexto de escassez - é muito importante.
Não vivemos na terra onde corra o leite e o mel. E por isso a actividade económica caracteriza-se por uma permanente tensão entre necessidades ilimitadas e meios limitados para lhes responder, o que faz com que seja praticamente impossível eliminar o factor conflitualidade no processo de atribuição dos recursos disponíveis aos diversos fins alternativos que os reclamam (isto é muito simples de dizer de uma maneira mais clara: o dinheiro que temos lá em casa, não dá para tudo, só dá para o que dá, e portanto "se não há dinheiro não há tauças").
Para além disso, é praticamente impossível na prática desenvolver qualquer política económica sem, de algum modo, seja como for, mexer na distribuição do produto (dos ganhos ou lucros) pelos cidadãos. Ou seja: uma política económica, qualquer que ela seja, implica sempre que uns ganhem mais e que outros ganhem menos. Pior ainda: normalmente são sempre poucos os que ganham mais, e muitos os que ganham menos. E, para acabar, mesmo que uma determinada política fizesse alguns mais ricos sem fazer ninguém mais pobre, mesmo assim haveria queixas: porque é que alguns se tornaram ricos e eu, e muitos como eu, não?
É precisamente por isto, porque os recursos escassos obrigam a opções concretas, que a ética tem a ver com as políticas económicas. Alguns exemplos concretos: deixamos os aviões atingir os níveis de ruído que entendem nas imediações de um aeroporto, tornando a vida dos vizinhos um inferno, ou obrigamo-los a reduzir as cargas e o número de passageiros, o que, entretanto, encarece o transporte aéreo?; conservamos um bosque de carvalhos ou construímos onde ele existe uma auto-estrada ou uma fábrica ou até só uma escola?; permitimos que o trânsito continue a passar pelo meio da aldeia ou constrói-se uma circunvalação à custa do erário público? As barragens servem para armazenar a maior quantidade possível de água para produzir energia, ou têm também a ver com a regularização do caudal dos rios?; então porque é que hoje em dia há mais cheias que há 20 anos atrás? Etc, etc.
Por tudo isto, dito assim tão simplesmente, é que em economia é necessário apontar o que é da competência dos moralistas e o que pode ou deve ser decisão dos economistas:
1. Dada a escassez de recursos em que o homem vive, é necessário antes de mais determinar que fins deve a actividade económica ter diante de si. E isto é competência dos moralistas (dos moralistas e dos políticos, que a Política não pode ser exercida à margem da Moral e do Direito). Aqui, os economistas devem estar calados. Dou um exemplo. No Brasil, 10% da população detém 50% da riqueza nacional; e 50% da população detém apenas 10% da riqueza. Perante isto, o novo governo escolhe uma prioridade, a operação "Fome Zero", isto é: que o mais rapidamente possível, todos os brasileiros tenham pequeno almoço, almoço e jantar todos os dias. Esta é uma questão de justiça (portanto da ordem da moral ou da ética) que o governo tomou.
2. No entanto, se o governo fizesse um referendo entre os economistas brasileiros, junto do FMI ou do Banco Mundial e mesmo junto dos nossos comentadores de rádio e televisão, a grande maioria diria "isso não é possível" (claro que não é possível porque eles não querem ou não deixam; não falta dinheiro no Brasil para que isso seja possível).
É que, depois de determinar os fins de uma política económica, é preciso estudar os meios para os atingir. E este estudo, de facto, e sua aplicação compete aos economistas não aos moralistas (conta-se a história de um moralista que, a fim de arranjar dinheiro para o erário público, propôs: uma vez por mês, entre os 17 e os 70 anos, todas a gente faz jejum!). Mas os economistas têm de estudar os meios em função das decisões já tomadas por outros.
3. Finalmente, e dado que os fins não justificam os meios, logo que os economistas hajam proposto meios eficazes será necessário discernir se todos são legítimos, e decidir por quais. E isto volta a ser da competência da moral e da política, e não da economia.
Sabemos que, desgraçadamente, nem sempre ou quase nunca se respeitam as competências. Hoje, neste campo da economia, são quase sempre os economistas a determinar os fins a atingir e os meios a utilizar, sem se preocuparem os economistas com a legitimidade destes últimos, invadindo portanto o campo da ética e ignorando o da política. E, no entanto, quando a economia diz que "não é possível" - vejamos o que vai ser da operação "Fome Zero" no Brasil - ela quer é dizer "possível é, mas eu não quero"!
4. Economia ou política: quem tem a primazia?
Dizia no domingo passado que a subordinação da economia à moral se realiza por mediação da política.
É verdade que, com os desastres que conhecemos ou vivemos no século passado, e que muitos povos amargam ainda, temos alguma dificuldade em aceitar que seja o poder político a obrigar-nos a ser minimamente solidários uns com os outros, tal medo apanhámos às economias colectivizadas como as que sabemos do Leste europeu. E mesmo que admitamos que em algumas não tenha havido nem fome nem desemprego, isso custou a liberdade individual e mesmo a eficácia do sistema.
Este é um perigo real. Por isso se apontam quatro cautelas a ter com a política ou que a política deve ter:
1. Que o poder político a quem se pede vigie a economia seja um poder democrático, isto é, eleito pelo povo e sujeito a formas de controlo estabelecidas constitucionalmente. Este segundo elemento deve mesmo ser mais eficaz que o primeiro. Já Popper, o filósofo vienense, perguntava: "Como podemos organizar as nossas instituições políticas de modo a que os governantes maus ou incompetentes, que não devíamos eleger, mas que, infelizmente, tantas vezes elegemos, não possam causar muitos danos?".
2. A planificação da economia deve ser feita ouvidas as distintas forças e parceiros sociais.
3. Feita a planificação da economia e institucionalizadas umas exigências mínimas de solidariedade, o poder político não deve (não pode) pretender legislar em todos os âmbitos da sociedade, pois que isso levaria facilmente a um totalitarismo asfixiante. Imagine-se legislar sobre o comprimento das saias ou o género de alimentos a ingerir! Os poderes públicos só podem impor coactivamente aquelas exigências éticas cujo incumprimento dificultaria notavelmente a convivência dos cidadãos. E este é, sem dúvida, o caso da solidariedade económica.
4. Finalmente, nem sequer devem ser incluídas nesta planificação todas as exigências da uma ética solidária: o Estado não pode, por exemplo, dizer-me quanto é que eu devo dar para a Partilha Fraterna. O bom governante sabe que a política é sempre a arte e a ciência do possível.
Mais concretamente então, que problemas económicos fundamentais tem a economia a resolver?
1. Que bens e em que quantidade se hão-de produzir? Roll Royce's para os 10% mais ricos da população brasileira ou refeições para os brasileiros que não têm que comer diariamente?
Dizia há oito dias que a actividade económica se caracteriza por uma permanente tensão entre umas necessidades ilimitadas e uns meios limitados para lhes responder. Os animais, não. Esses comem o bastante, disfrutam e descansam. Os homens, somos muito mais complicados: estamos sempre a inventar, ou estão sempre a inventar-nos necessidades novas e mais sofisticadas. Quem precisava de telemóveis há apenas 10 anos? Hoje, não é preciso comentar.
Antes de mais nada, é preciso produzir aqueles bens que respondem a necessidades humanas autênticas:
"a finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do homem e do homem integral, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; necessidades de todos os homens ou grupos de homens, de qualquer raça ou região do mundo" (GS 64).
É isto que acontece? De facto, a lógica da economia moderna é outra: produzir por produzir, ganhar dinheiro por ganhar dinheiro, aumentar a empresa por aumentar a empresa. Ford, o célebre construtor americano de automóveis, perguntado porque desenvolvia a sua empresa, respondia: "porque não posso parar".
Mais ainda. Dado que os recursos são escassos, não basta dizer que a finalidade da produção deve satisfazer necessidades humanas. É necessário estabelecer prioridades nessas necessidades, produzir umas coisas e deixar de produzir ou diminuir a produção de outras. Não dizem que o mercado de habitação português está, neste momento, cheio de casas que se não vendem?
E há necessidades que constituem verdadeiros direitos humanos:
"todo o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos meios indispensáveis a um nível de vida digno, ou seja, à alimentação, ao vestuário, à habitação, ao descanso, aos cuidados médicos e aos serviços sociais necessários. Daqui o direito à previdência em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego ou de qualquer outra eventualidade de perda de meios de subsistência por circunstâncias alheias à sua vontade! (PT 11).
Em resumo: que bens e em que quantidade se hão-de produzir? Trata-se antes de mais de uma questão de justiça a que é necessário responder com a "arte da política".
2. Como produzir? Segundo João XXIII, "quando as estruturas, o funcionamento e o condicionalismo dum sistema económico comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham e entorpecem sistematicamente o sentido da responsabilidade ou impedem que a iniciativa pessoal se manifeste, tal sistema é injusto, mesmo se, por hipótese, a riqueza nele produzida alcança altos níveis e é distribuída segundo as regras da justiça e da equidade" (MM 83).
Como produzir? Pomos as crianças a trabalhar? Tratamos os emigrantes como nos trataram a nós em França no século passado?
Como produzir? Muitos terão visto a antológica cena do filme Tempos Modernos em que Charlot de tantas porcas apertar, porque esse era exclusivamente o seu trabalho, até a desapertar os botões do vestido de uma senhora o fazia com o gesto do desapertador de porcas!
O trabalho em cadeia e as máquinas fizeram muitas vezes do trabalhador um animal embrutecido e desumanizado. E se o homem se pode exprimir pelo seu trabalho, hoje em dia "quase todos desempenhamos tarefas que resultam demasiado pequenas para o nosso espírito", como dizia um operário.
Há praticamente 250 anos, Adam Smith descreveu a fabricação de um alfinete: até ao seu tempo, cada operário, que procedia sozinho às 18 operações necessárias à fabricação de uma peça, só produzia 20 alfinetes por dia; mas ele um dia visitou uma fábrica de alfinetes onde 10 operários, cada qual especializado apenas em uma ou duas das 19 operações, produziam 48.000 alfinetes por dia, ou seja, à média 4.8000 por trabalhador! Claro que os trabalhadores substituídos pela máquina benéfica foram mandados para a rua e ninguém mais se preocupou com eles.
É preciso re-humanizar o processo de produção: "a produtividade não é um fim em si mesma" (Pio XII). Para além disso, é preciso oferecer a todos a possibilidade de participar no processo de produção, porque o trabalho não é apenas um meio de ganhar a vida, mas sim uma forma de realização humana e de serviço aos demais. Todos os homens e mulheres, para se sentirem úteis, têm direito ao trabalho. Uma economia que mantenha desempregada - de-li-be-ra-da-men-te (para o que precisa de bancos de desemprego) - uma parte importante da população activa não é uma economia justa, nem que garanta a todos os desempregados subsídios bastantes para satisfazer a suas necessidades.
Resumindo: como produzir, que meios utilizar? É o papel da economia.
3. Para quem produzir?, ou, como distribuir a produção nacional entre os indivíduos e as famílias? Marx (1818-1883) respondeu: "De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade". E Nietzsche (1844-1900) respondeu: "Pregadores da igualdade que transtornais as almas! A minha noção de justiça é esta: os homens não são iguais e tão pouco hão-de sê-lo no futuro!".
A visão cristã do problema está muito mais próxima de Marx que de Nietzsche. Por isso, desde o princípio que o cristianismo condenou a desigualdade entre os homens que são irmãos e afirmou o destino universal dos bens:
"Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade. Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme às legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a este destino universal dos bens" (GS 69).
João Paulo II:
"Tanto os povos, como as pessoas individualmente devem gozar de uma igualdade fundamental" (SRS 33).
Aqui, igualdade fundamental não quer dizer aritmética, pois excluiria a necessária diversidade. João XXIII explicava isto muito bem:
"A experiência ensina que, entre os seres humanos, existem diferenças, às vezes muito grandes, no grau do saber, da virtude, nas capacidades do espírito e na abundância dos bens materiais. Mas isto não pode nunca justificar o propósito de fazer valer a própria superioridade para subjugar de qualquer modo os outros. Esta superioridade comporta, pelo contrário, uma maior obrigação de ajudar os povos para que consigam, num esforço comum, a sua própria perfeição" (PT 87).
Resumindo: para quem produzir? A resposta é, mais uma vez, da política, regida pela Moral e pelo Direito, sempre a Justiça como valor primeiro.
Como as nossas política e economia deverão/terão de ser diferentes!
5. As leis fiscais
"O Estado não tem conseguido receber as receitas que, por Lei, lhe pertencem… E isto é fruto do individualismo egoísta das pessoas e grupos. Até Jesus nasceu sujeito à Lei… Devemos todos esforçar-nos para que as leis sejam justas e equilibradas. Mas não pagar as contribuições sociais, previstas na Lei, é grave desordem moral e causa de perturbação da paz social. Já o Concílio Vaticano II afirmara: 'Há pessoas que, embora proclamando ideais largos e generosos, continuam a viver na prática sem se preocupar com os deveres sociais. Mais, em alguns países, muitos não fazem caso das leis e prescrições sociais. Um grande número não hesita em subtrair-se, através de subterfúgios e fraudes várias, aos impostos justos e a outras concretizações do que é socialmente devido' (GS 39)" - dizia o Cardeal Patriarca de Lisboa na homilia do Dia Mundial da Paz de 2003.
Então que tem a ver o cumprimento das obrigações fiscais com a DSI?
Nos séculos passados, o sistema tributário visava apenas a financiamento de alguns serviços mínimos indispensáveis (defesa nacional, tribunais, obras públicas, etc). Assim sendo, a única hipótese que havia de tornar realidade o destino universal dos bens era a esmola! Mas, já no séc. XX, entregou-se ao poder público uma segunda tarefa: redistribuir pela sociedade a riqueza nacional em termos julgados justos. A expressão "produto nacional" já vinha de séculos anteriores; mas a novidade, consistiu em destinar ao Bem Comum parte da massa financeira proveniente da contribuição de todos os cidadãos. Assim, hoje, os poderes públicos institucionalizaram a solidariedade em múltiplos campos (educação, assistência sanitária, previdência social, etc); por isso aumentou o quantitativo da contribuição fiscal de cada cidadão.
Apesar disto, é do domínio público que a fraude fiscal, um pouco em todos os países mas em Portugal de maneira especial, como sabemos todos, é muito elevada. O espectáculo de que gozamos todos, com reportagens televisivas sucessivas, à porta das nossas Secções de Finanças, nos últimos dias do ano e primeiros do corrente, não disse outra coisa: são tantos os que não cumprem que nem o Estado sabe quantos nem quais! Por isso muitos continuam a perguntar-se até que ponto estão obrigados eticamente a cumprir as suas obrigações fiscais. Comam todos ou haja moralidade!
No séc. XIII apareceu uma teoria, que se manteve até ao XX, que pretendia que as leis fiscais era "meramente penais", isto é, não obrigavam em consciência: ainda há pouco mais de um mês, um conhecido presidente de um conhecido clube de futebol que não pagava impostos, tendo sido um dia descoberto, foi pagá-los a correr no dia seguinte de manhã, com juros de mora e tudo, e tudo bem, não aconteceu mais nada.
Hoje já ninguém pensa que as leis fiscais são "meramente penais". Os moralistas concordam em que elas obrigam em consciência, quando são justas. Na Igreja - é preciso que se diga - sempre se pensou assim também, desde S. Paulo: "É necessário submeter-se às leis, e não só por medo do castigo, mas também por razões de consciência. É por essa razão que pagais impostos" (Rom 13,5-6). No próprio Concílio Vaticano II chegou a pedir-se que se declarasse solenemente que as leis fiscais obrigam em consciência mas a ideia não teve seguimento. No entanto, no Catecismo Universal, está lá com as letras todas que é moralmente ilícita a fraude fiscal (n.os 2240 e 1409).
Isto dito, apenas é preciso saber quando é que uma lei fiscal é justa para sabermos quando é que obriga em consciência.
Respondem os moralistas:
1. Quando a contribuição foi estabelecida pela autoridade legítima. Há, por exemplo, movimentos terroristas ou outros que obrigam ilegitimamente cidadãos ou populações ao pagamento de impostos.
2. Quando a contribuição tem por fim obter os recursos necessários para atender às necessidades do Bem Comum. Aqui há que ter em conta duas coisas. Em primeiro lugar, que a carga fiscal não seja tão forte que estrangule a economia do país ou desincentive o esforço de produção de riqueza (também aqui é preciso recordar que a política é a arte do possível). Em segundo, que os poderes públicos devem respeitar sempre o princípio da subsidiariedade, ou seja, que há coisas que é melhor não ser o Estado a tratar delas, mas sim outras instâncias a ele inferiores, que as cuidarão certamente melhor e com menos custos.
3. Que a gestão dos dinheiros públicos seja feita com suficiente eficácia e honradez. Como dizia Pio XII, "jamais o imposto pode converter-se para os poderes públicos num cómodo meio de equilibrar o déficit provocado por uma governação indevida. (…) Ao Estado proíbe-se o esbanjamento dos fundos públicos. (…) A eficácia da uma administração cuidadosa e íntegra há-de demonstrar com clareza que o sacrifício imposto corresponde a um serviço real e que produz os seus frutos".
(Num "comentário interessante" à homilia do Sr. Cardeal e ao discurso de Ano Novo do Sr. Presidente da República, neste ponto coincidentes, o jornalista observava que "nenhum deles [Presidente e Cardeal] se pergunta por que razão os portugueses não pagam impostos. Pior ainda: por que razão não acham um pecado ou uma falta de civismo não pagar impostos? Será que o Estado não lhes presta serviços que justifiquem o dinheirinho que lhes tira? Ou será que o Estado se tornou o exemplo por excelência do esbanjamento e da desordem?").
4. Que as contribuições sejam adequadas às possibilidades de cada contribuinte: "A distribuição dos impostos segundo a capacidade económica dos cidadãos é princípio fundamental dum sistema tributário justo e equitativo" (MM 132). Mais ainda: a capacidade económica de que fala a MM exigiria que os que de todo não têm possibilidade de pagar impostos fossem disso dispensados e que, pelo contrário, aos mais poderosos economicamente se deveriam aumentar progressivamente as contribuições. E progressivamente quer dizer que não basta proporcionalidade mas progressividade. Se a contribuição aumentar apenas proporcionalmente aos ganhos de cada contribuinte, nunca mais se alteraria a situação relativa dos distintos grupos sociais, ou seja, os impostos apenas continuarão a arrecadar dinheiro (teoricamente necessário para o Bem Comum) consagrando uma situação de injustiça e sem o redistribuir (entre os cidadãos).
Para terminar convém recordar que a partilha cristã de bens não se cumpre com a mera honradez fiscal, exige também dos crentes um desprendimento voluntário que está muito para além das leis.
6. Os sistemas económicos
Depois de uma breve introdução sobre a actividade económica em geral, digamos agora alguma coisa sobre os sistemas económicos modernos.
Foram dois os que disputaram o mundo: o capitalismo e o socialismo. A sua diferença básica estava na propriedade dos meios de produção: privada no capitalismo, colectiva no socialismo. Para além disso, em termos genéricos, o capitalismo, como já aqui disse, confiava no mercado para regular o conjunto da economia; o socialismo não, pensava piamente que só o Estado podia planificar a economia. Isto capitalismo e socialismo em estado puro. Porque, na prática, o capitalismo foi admitindo elementos ou áreas de planificação do Estado, e o socialismo começou a dar maior ou menor protagonismo ao mercado.
O primitivo capitalismo - tal como hoje o chamado neo-liberalismo - considerava a propriedade privada dos meios de produção como um direito absoluto. O célebre artigo 544 do Código de Napoleão dizia assim: "A propriedade é o direito de disfrutar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, em tudo o que não esteja proibido pelas leis e regulamentos".
Desta absolutização do direito de propriedade privada derivam todas as mais notas características do capitalismo:
1. A busca do lucro pessoal é o motor da actividade económica. Uma vez que a propriedade privada é um direito absoluto, o capitalismo não tem que se preocupar com o Bem Comum; deve procurar, sim e apenas, o seu próprio enriquecimento. Um célebre empresário, Alfred Sloan, muitos anos à frente da General Motors, explicava assim: "Ao fazer um investimento de capital o primeiro propósito é o estabelecimento de um negócio que pague dividendos satisfatórios e preserve e aumente o valor do capital. Portanto, o objectivo primário da General Motors é, e assim o declaramos, fazer dinheiro e não apenas automóveis". Isto não quer dizer que o capitalismo negue as necessidades do Bem Comum. Só que, diz ele, pensar no Bem Comum não compete ao capital. Explicava assim em 1776 o nosso já conhecido Adam Smith: "Ninguém, em geral, se propõe promover o interesse público, nem sabe até que ponto o promove. Pensando cada um nos seus ganhos, todos somos conduzidos por uma mão invisível que faz com que as intenções de cada um não sejam travadas. Portanto, ao procurar o seu próprio interesse, promove-se a sociedade de uma maneira mais efectiva do que se esta finalidade entrasse nos propósitos de cada um".
2. Assim sendo, a economia deve regular-se exclusivamente pela livre concorrência. O proprietário dos meios de produção tem poder absoluto de decisão, e nem o Estado nem os trabalhadores têm direito de intervir; seria um abuso se o fizessem, porque o capitalismo auto-regula-se automaticamente: o mercado livre é assim uma peça chave deste sistema. Os preços são ajustados pela lei da oferta e da procura. Se há só um operador telefónico, os preços são altos; se são vários, baixam todos.
Claro que em nenhuma parte do mundo o capitalismo existe ou existiu neste estado do pureza, digamos. Depois da 2ª Guerra Mundial o economista Keynes (1883-1946) introduziu-lhe mesmo importantes correcções: pensava ele que efectivamente o capitalismo não se auto-regulava tanto assim nem conseguia responder às necessidades do Bem Comum. Portanto o Estado devia intervir, parcial e moderadamente (nas políticas monetárias, nos investimentos públicos, na redistribuição da riqueza, num sistema de segurança e previdência social, etc). Estas correcções foram tantas e tão grandes que muitos pensaram que se tratava já de um sistema novo; no entanto, a propriedade privada dos meios de produção continuou privada, tendo embora deixado de ser um direito absoluto e se lhe tivessem imposto certas obrigações.
Face a este posicionamento e combatendo-o, em nome dos mais pobres, levantou-se um sonho, o socialismo.
Existem muitos tipos de socialismo, todos eles baseados na propriedade colectiva dos meios de produção. Limitar-me-ei a referir o único que conseguiu uma verdadeira implantação, o marxista.
Marx acreditou piamente que o capitalismo acabaria por se destruir a si próprio dando assim um verdadeiro "tiro no pé": "a violência [do capitalismo] - dizia Marx - é a parteira de toda a sociedade velha mas traz nas suas entranhas uma sociedade nova". Falava por isso de um período transitório a que chamava a sociedade socialista, em cuja vivência o Estado - três coisas - devia apropriar-se do todos os meios de produção evitando assim a exploração dos trabalhadores, o mercado livre deveria ser substituído pela planificação central da economia, e o partido comunista seria entretanto obrigado a governar de forma totalitária para defender e consolidar o novo sistema (a chamada "ditadura do proletariado").
Assim sendo, enquanto vigorasse provisóriamente a sociedade socialista, seria necessária uma autoridade férrea na vida política e nas relações laborais: "Querer abolir a autoridade na grande indústria - dizia Engels (1820-1895) - é querer abolir a própria indústria, é querer abolir as fábricas de fiação a vapor para se tornar ao fuso e à roca". Mas tudo isto seria transitório, repito. Entretanto, o capitalismo daria o berro por força das suas incapacidades internas. Uma vez consolidada a evolução da sociedade, desapareceria a ditadura do proletariado e começaria a sociedade comunista, a última e definitiva etapa da história da humanidade.
Do ponto de vista económico, esta sociedade comunista não só conseguiria a perfeita socialização de todos os meios de produção, mas também a dos bens de consumo. E por fim "a sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: de cada um segundo as suas capacidades, e a cada um segundo as suas necessidades" (Marx).
Sinónimo de máquina utilizada pela classe dominante para manter controlada a classe dominada, "o Estado será colocado num museu de antiguidades, juntamente com a roca e o machado de bronze" da pré-história (Engels). Uma vez desaparecidas as classes, fará falta alguma coordenação, mas isso conseguir-se-á não através do Estado, mas do Partido.
E então aparecerá o homem em toda a sua verdade: "A sociedade encarregar-se-á de regular a produção em geral, e cada um se poderá então dedicar-se inteiramente hoje a isto, amanhã àquilo, de manhã poderá caçar, de tarde pescar, e ao cair da noite apascentar o gado; e depois de comer, se isso lhe agradar, poderá exercer a crítica sem que, portanto, tenha necessidade de ser exclusivamente caçador, pescador, pastor ou crítico" (Marx-Engels).
Para sonho não estava mal. Por isso seduziu. Saibamos todos que Marx era judeu. Transportou para o mundo da sociedade e da economia, a visão escatológica de Isaías, retirando-lhe porém toda a carga simbólica e sacramental. Por isso deu no que deu.
6.1. O comunismo marxista e coletivista
O projecto marxista despertou por todo o mundo esperanças quase religiosas. A de Pablo Neruda, por exemplo: "Amei à primeira vista a terra soviética e compreendi que dela saía uma lição moral para todos os rincões da existência humana (…). A humanidade inteira sabe que se está ali a elaborar a gigantesca verdade e que há no mundo uma intensidade atónita esperando o que vai acontecer".
No entanto, bastaria para desconfiar o simples facto de, em 1961, ter sido necessário construir um muro de tijolos para que os cidadãos não fugissem para Ocidente. 1989 diria o resto.
Marx pensava que, ao suprimir-se a propriedade privada dos meios de produção desapareceriam as classes sociais, e o trabalho experimentaria uma transformação substancial. Mas um operário polaco diria tudo um pouco mais tarde: "no capitalismo o homem explora o homem; no comunismo é ao contrário"! Em 1980, 4 meses depois de terem sido legalizados na Polónia, os sindicatos livres Solidariedade tinham já 10 milhões de sindicalizados, numa população de 14 milhões de trabalhadores. Efectivamente o Estado carecia do título de legitimidade que se atribuía, que era o de representar os interesses da classe operária.
De facto, o colectivismo não foi capaz de criar uma alternativa ao capitalismo, e limitou-se a implementar um capitalismo de Estado que, como mostrou a sua ineficácia económica, funcionava pior que o capitalismo ocidental. Primeiro, foi-lhe sempre muito difícil organizar-se no contexto internacional capitalista; para além disso, a planificação central demonstrou-se pesada, lenta, e ineficaz. É a famosa tese de Bujarin; "é difícil construir edifícios com tijolos que ainda não estão fabricados"; finalmente porque, progressivamente, alimentou atitudes cada vez mais passivas na população, pois que - disse depois João Paulo II - "não é lícito do ponto de vista ético nem praticável menosprezar a natureza do homem, que está feito para a liberdade. Numa sociedade cuja organização reduz arbitrariamente ou até suprime a esfera em que a liberdade legitimamente se exerce, o resultado é que a vida social progressivamente se desorganiza e definha" (CA 25b).
Chegamos assim a uma constatação de facto: o marxismo assentava num tremendo "erro antropológico". Tentando substituir os incentivos económicos, característicos do capitalismo, por incentivos morais, tiveram de concluir os seus ideólogos que estes não tinham a mesma eficácia que aqueles. Marx e Engels acreditaram no surgimento de um "homem novo", despojado de todo o egoísmo, cidadão de elevados níveis morais, disposto a sacrificar-se pela causa do comunismo. Mas não foi assim. O mistério do mal no mundo requer uma explicação mais profunda que a economia não é capaz de dar. Para além disso, o marxismo revelou digamos que uma tendência inata para a ditadura. Ao necessitar de homens novos, se eles realmente não existiam, não vai a bem vai a mal. E a ditadura do proletariado, pensada como etapa transitória, rapidamente se tornou definitiva. E isto sem falarmos em corrupção e arbitrariedade, e sem referirmos essa pobríssima antropologia que foi "o vazio espiritual provocado pelo ateísmo" (CA 24b).
Cedo a DSI começou a denunciar o equívoco. Leão XIII disse do socialismo em geral apenas que "contra a natureza todos os esforços são vãos" (RN 13); Pio XI falava em 1931 da "impiedade e iniquidade do comunismo" (QA 112) mas em 1939 dizia-o já "intrinsecamente perverso" (Divini Redemptoris 58). João XXIII é o homem da mudança: dizia ele ser necessário "distinguir entre o erro e aquele que o professa", portanto "entre as teorias filosóficas falsas … e as correntes de carácter económico e social, cultural e político, mesmo que tenham a sua origem e impulso em tais correntes filosóficas" (PT, 159). No Vaticano II, uma minoria pretendeu a condenação formal do comunismo, mas tal não veio a acontecer; em época já de verdadeiro diálogo, o Concílio apenas afirmaria que "rejeita inteiramente o ateísmo" (GS 21), fazendo embora veladas alusões à economia colectivista (GS 63). Retomando este pensamento e o de João XXIII, Paulo VI diria mais: "Não perdemos a esperança de que eles [os marxistas, que perseguem "um sonho de justiça e de progresso a serviço de finalidades sociais divinizadas"] venham um dia a entabular com a Igreja um colóquio positivo" (ES 97 e 98). Na OA admite mesmo uma certa desintegração do marxismo (30-31). João Paulo II retomaria todo este pensamento logo na LE mas sobretudo na CA, caídos entretanto os regimes de Leste, debruçando-se sobre os seus maiores erros (o erro antropológico da concepção marxista do Homem, simples elemento do organismo social, e a consequente concepção da sociedade, praticamente reduzida ao Estado; o ateísmo; a luta de classes entendida como meio essencial de acção; e a concepção da liberdade do Homem), bem como sobre as principais causas da sua queda (violação dos direitos dos trabalhadores e ineficácia do sistema económico).
Caídos os regimes marxistas, ocupou o terreno apenas o capitalismo. Pode dizer-se que, desaparecido o mal, ficou só o bem? É então que começa a falar-se de globalização. Nessa altura, já muitos acusavam a DSI de ser mais dura para com o capitalismo liberal que para com o marxismo colectivista. Mesmo assim, João Paulo II não deixava de afirmar: "É inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado 'socialismo real' deixe o capitalismo como único modelo de organização económica. Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixaram tantos povos à margem do progresso, e garantir a todos os indivíduos e nações, as condições básicas que lhes permitam participar no desenvolvimento" (CA 35).
6.2. O capitalismo liberal
O economista Shumpeter explicava assim: "A dona de casa pode influenciar a produção agrícola escolhendo no dia a dia, para o almoço, ou lentilhas ou feijão verde". Dizendo doutra maneira, os defensores do capitalismo dizem que nenhum outro sistema satisfaz melhor as necessidades humanas porque os produtores, industriais, agrícolas ou de serviços, se querem aumentar as vendas, têm de atender aos desejos dos consumidores. Ou seja, teoricamente, liberalismo político e liberalismo económico respondem à mesma lógica: do mesmo modo que em democracia os cidadãos são soberanos e, ao dar o seu voto a um partido e não a outro, decidem quem vai ser governo, na economia capitalista também os consumidores o são, pois que, ao comprar com o seu dinheiro um qualquer produto, decidem o que deve ser produzido.
Tudo isto é verdade, mas há que relativizar. Antes de mais, porque as modernas técnicas de manipulação do mercado (publicidade nomeadamente) condicionam boa parte do poder de decisão dos consumidores, transferindo-o para os produtores. Depois, porque um grande número de cidadãos, os que não têm poder de compra, não entram nestas contas. Ou não é verdade que, em Portugal, nestes dias que correm, o negócio da habitação está bom mas só o das casas de 40.000 contos para cima? Por isso, Gilbert Cesbron, o escritor, dizia com razão: "Pago, logo existo!"; mas, se não pago, isto é, se nem sequer tenho dinheiro para comprar? Para além disto, teoricamente, o empresário capitalista tem mais interesse em ganhar dinheiro que pensar muito se vai produzir botões ou automóveis, se o que produz é humanizador ou não, desde que o que ele fabrica dê dinheiro. Finalmente, ao sistema capitalista, abandonado à sua própria lógica, não lhe interessa saber dos direitos ou das necessidades de carácter colectivo, nomeadamente no diz respeito ao ambiente: o criador de porcos despeja o seu lixo no rio, tal como faz(ia) a fábrica de têxteis, e pronto. Basta ir ali ao Leça.
Claro que nem tudo é mau no capitalismo: é inegável a sua capacidade de criar bens e riqueza, como aliás o próprio Marx reconhecia ("Demonstrou o que pode conseguir a actividade humana, levando a cabo obras maravilhosas totalmente diferentes das pirâmides do Egipto, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas"). Mas é preciso perguntarmo-nos a que preço, humano, social, ambiental e mesmo económico.
E se é verdade que a opressão dos trabalhadores do primeiro capitalismo deu progressivamente lugar à elevação do seu nível de vida, isso não se deve(u) às suas preocupações com a justiça, antes com a pressão da luta operária em geral, dos sindicatos, e dos próprios Estados. Todos conhecemos a história do 1º de Maio. E mesmo aqui, porque havia interesses de ordem económica. O nosso conhecido Ford não escondia que "Prefiro pagar bem aos meus operários para que eles me possam comprar automóveis".
Algo parecido aconteceu com as condições de trabalho. Já desapareceram aquelas desumanas jornadas de trabalho de 14 ou mesmo 16 horas diárias que transformaram os operários em animais de produção. Mas o que contou verdadeiramente para a sua diminuição foi o ter-se começado a constatar que o bicho-homem trabalha mais e melhor se diminuir o número de horas laborais. Mesmo assim, e sabendo nós que o motor da actividade económica é o lucro, a gente vê o que acontece quando a empresa deixa de necessitar do trabalhador. Basta vir uma máquina nova. Porque nunca foi valorizado como pessoa humana apenas como mão de obra, rua! E isto, hoje, até o Estado, que devia ser o tal árbitro, faz. Porque o Estado também é patrão e se não quer propriamente lucros, também ele tem de administrar. Ou basta a empresa espreitar lugar de mão de obra mais barata, seja no Leste ou na Cochinchina: estou a falar das fábricas Clarks, de Arouca e Castelo de Paiva.
Eu sei que sou simplista nesta rápida fotografia do capitalismo liberal. Mas pode de facto resumir-se tudo numa palavra: o lucro é, para ele, o verdadeiro motor da actividade económica. E a consequência é óbvia: as empresas necessitam de ter lucros, porque senão têm de fechar. E nisto até podemos estar de acordo: agora o que elas não podem é ignorar o Bem Comum, não podem funcionar só para conseguir lucros e quantos mais melhor, a qualquer preço. Porque uma coisa é que uma actividade económica em geral deva ter lucro; outra que o lucro seja a única finalidade da actividade económica, e a qualquer preço. E todos sabemos que há actividades de que o Bem Comum necessita que não só não dão lucro como até geralmente custam muito dinheiro. Quem olhará por isto? A empresa capitalista? O Estado? A Autarquia? A ONG? Donde virá o dinheiro se, de si, a actividade não dá lucro?
No passado entrou aqui o "Estado benfeitor", impondo mínimos de solidariedade entre os diversos agentes económicos, disciplinando a partir de fora a lógica intrínseca do capitalismo (socialização de certos serviços, atendimento especial às classes mais pobres, etc). Mas, com os neoliberalismos de distintas cores, até o Estado se vergou ao poder dos grandes interesses económicos. Parafraseando Rosa Luxemburgo, diríamos que "ao galinheiro livre, voltou a liberdade da raposa livre ". É livre o comerciante tradicional de loja aberta ao lado da grande superfície comercial? Lacordaire (1802-1861), o célebre dominicano, dizia que "entre o rico e o pobre, entre o forte e o débil, a liberdade oprime e a lei liberta". E é evidente que, numa sociedade sem leis, acaba por se implantar a desigualdade. Por isso, alguns teóricos não têm pejo de afirmar que "numa economia de mercado carece de sentido a ideia de justiça social" (Hayek).
Por tudo isto é que a DSI não tem sido meiga para com o capitalismo. Leão XIII começava a sua Rerum Novarum com uma severa crítica à degradada situação social da época, cujas causas fundamentais, dizia, eram a "miséria imerecida" e a "voraz usura" dos capitalistas que explorava as massas trabalhadoras. Referia-se aqui o Papa, claramente, ao capitalismo liberal.
Falando do seu tempo, Pio XI foi mais claro: em si, o capitalismo não é imoral, mas pode chegar a sê-lo pelos abusos a que dá (deu) lugar a exploração do trabalho, a "ditadura económica" (QA 109) que começa por pretender alcançar um simples "predomínio económico mas logo almeja o político, primeiro a nível nacional, depois internacional» (QA 108). O Papa de resto adianta uma definição de capitalismo: "tipo de economia em que uns põem o capital e outros o trabalho" (QA 100) que "não é viciado por natureza. Ele viola a ordem recta apenas quando o capital abusa dos trabalhadores e da classe proletária com a finalidade de que os negócios e no fundo toda a economia decorram unicamente da vontade e proveito particulares, sem ter em conta nem a dignidade humana dos trabalhadores nem o carácter social da economia, nem sequer a própria justiça social e o bem comum" (QA 101).
Referindo-se ao capitalismo, o Vaticano II condenou o lucro como único motor da vida económica (GS 85) e algumas das suas maiores aberrações (os trusts e os latifúndios improdutivos [GS 65]), bem como o liberalismo económico: "O desenvolvimento não se deve abandonar ao simples curso quase mecânico da actividade económica" (GS 65).
Paulo VI, na PP, condenou não todas as formas de capitalismo mas sim o capitalismo liberal, para o qual o lucro é um motor essencial, a competitividade lei suprema, e a propriedade um direito absoluto (PP 26). Voltaria a fazê-lo na Octogesima Adveniens.
Mas seria João Paulo II, na Centesimus Annus, a afirmar, sem margem para dúvidas, o que o capitalismo deve ter em linha de conta: que o princípio do mercado livre tem de submeter-se ao poder legislativo; e que a actividade económica tem de ter como valor primeiro o trabalho livre, devendo a empresa ser organizada de modo participativo. Numa palavra, a prioridade está no Homem. Ele tem de realizar-se por meio da inteligência e da liberdade; e para isso é necessário se lhe reconheça o direito à iniciativa e à propriedade; a propriedade dos meios de produção só é legítima se forem postos ao serviço do trabalho útil. Finalmente, reafirma o seu apoio à democracia, reconhecendo ao Estado um papel essencial na vida económica moderna.
Ou seja: se entre marxismo e capitalismo não havia escolha possível mesmo antes da queda dos regimes de Leste, hoje teremos de vergar-nos todos, indivíduos e cidadãos, ao capitalismo globalizado?
6.3. Economia social de mercado?
Na encíclica Centesimus Annus, João Paulo II situava-se (1991) no "aqui e agora". Desaparecido o colectivismo, apenas duas variantes do sistema capitalista passaram a disputar o mundo: a economia social de mercado (capitalismo moderado) e o neoliberalismo (capitalismo duro).
Este - o neoliberalismo - "assegura a prevalência absoluta do capital, da posse dos meios de produção e da terra, relativamente à livre subjectividade do trabalho do homem" (CA 35.2); aquela - a economia social de mercado - "não se contrapõe ao livre mercado, mas requer que ele seja oportunamente controlado pelas forças sociais e estatais, de modo a garantir a satisfação das exigências fundamentais de toda a sociedade" (id.).
Digamos que, entre estas duas hipóteses, João Paulo II segue bastante na linha de pensamento do conhecido economista americano Keynes, que defende como necessária a intervenção de um árbitro, o Estado, no processo económico, uma vez que o capitalismo "não se auto-regula nem é capaz de respeitar por si mesmo o bem comum". Esta opção não impede o Papa de afirmar que é necessário, no entanto, continuar a buscar novas soluções, e desde logo um "sistema justo" que elimine "na sua raiz" a antinomia entre trabalho e capital (CA 42), "tarefa que constitui um grande postulado ético da hora presente (M. Vidal).
Ou seja, de que fala exactamente João Paulo II?
Nos anos 30 do séc. passado, à dicotomia marxismo / capitalismo, alguns regimes políticos (desde logo o português então vigente) e o próprio Pio XI pensaram numa "terceira via" que seria o corporativismo, modelo muito sonhado pelos chamados "católicos sociais" do séc. XIX que, no fundo, apontavam no sentido de uma organização social que enquadrasse empresários e assalariados numa mesma organização corporativa, segundo o modelo das ditas medievais. A proposta foi ainda retomada por Pio XII, mas João XXIII calou-a e Paulo VI acabou com a questão afirmando que estava superada "uma certa preferência histórica pelas formas corporativas e pelas associações mistas".
Seja como for, já nessa altura a DSI andava na busca de uma solução alternativa. É o que agora, por outro lado, João Paulo II tenta desenhar, escutando economistas e políticos de mérito.
Antes de mais afirmando que, na concepção cristã, não é a propriedade privada mas o destino universal dos bens o dado primeiro e irrenunciável de toda esta questão: a criação foi dada aos homens todos e não só a alguns.
Quanto aos meios de produção, não exclui a priori formas de propriedade colectiva, desde que esta não os administre burocraticamente e permita aos trabalhadores serem "co-proprietários" da empresa. Na opinião do Papa, não interessa tanto saber da titularidade da propriedade, isto é, não interessa tanto saber de quem ela é, mas a quem ela serve: "Os meios de produção … não podem ser possuídos contra o trabalho como não podem ser possuídos para possuir, porque o único título legítimo para a sua posse - e isto tanto sob a forma de propriedade pública como colectiva - é que eles sirvam ao trabalho" (LE 14). No entanto, a experiência mostrou que a melhor forma de tornar realidade o destino universal dos bens é a apropriação privada dos mesmos, tanto se trate de bens de consumo como de meios de produção. Por isso a Igreja afirma uma certa preferência pela propriedade privada, afirmando que o trabalho é o título mais nobre e indiscutível de acesso a ela.
Não se segue desta afirmação que se possa canonizar sempre a distribuição da propriedade, tal como ela se concretiza na prática. Ao proclamar o direito à propriedade privada a Igreja defende também a direito que a ela têm todos. E a verdade é que se poucos têm (quase) tudo, a muitos não lhes resta senão ter nada. Só um dado: as 225 pessoas mais ricas do mundo têm uma riqueza combinada superior a um bilião de dólares, o mesmo que a receita anual de dois biliões e meio de seres humanos, que representam 47% da população mundial (PNUD 1998)! Por isso, diz o Papa, estas grandes acumulações de capital devem submeter-se a "uma revisão construtiva, na teoria e na prática" (LE 14).
A propriedade privada tem de estar subordinada ao destino universal dos bens, porque lhe está inerente uma função social. "Nem tudo é privado na propriedade privada" (Y. Calvez).
E a experiência mostrou que não é suficiente apelar à consciência individual para que o exercício da propriedade se mantenha dentro dos limites que lhe marca a sua função social; por isso é necessária a intervenção dos poderes públicos (que pode chegar, inclusive, à expropriação, se o Bem Público o exigir).
Por isso, se o Bem Comum deve ter prioridade sobre o individual, "a finalidade fundamental da produção não é o benefício [próprio], mas o serviço do homem, e do homem integral" (GS 64). A Igreja, "perita em humanidade", sabe que não é possível prescindir por completo dos incentivos materiais na actividade económica. Não pode por isso esquecer que "o homem leva dentro de si a ferida do pecado original" e que "esta doutrina não só faz parte integrante da revelação cristã, como tem também um enorme valor hermenêutico que ajuda a compreender a realidade humana. O homem tende para o bem mas é igualmente capaz do mal" (CA 25).
Por isso, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas é um direito derivado do "princípio da prioridade do trabalho sobre o capital". Este princípio tem a ver directamente com o próprio processo de produção: porque o trabalho é sempre uma causa eficiente primária do processo económico, enquanto que o capital (ou o conjunto dos meios de produção) é apenas um instrumento ou causa instrumental (LE 12). E o que se passa normalmente é exactamente o contrário: puros instrumentos de trabalho são os trabalhadores, que quando já não são precisos ou não prestam - como instrumentos - mandam-se para o lixo e que se lixe!
Por tudo isto, os poderes públicos têm uma responsabilidade específica na gestão da economia. Existe "um princípio elementar de qualquer sã organização política que é o de que os indivíduos, quanto mais indefesos são na sociedade, tanto mais necessitam da atenção e do cuidado dos outros, e particularmente da intervenção da autoridade pública" (CA 10).
Vejamos o que se está a passar com a Clarks, em Castelo de Paiva e agora em Gaia. Injustiça? Clara! Ilegalidade? Parece que não! É que o capital hoje não tem pátria, não é daqui nem dali, e por isso vai para onde encontra melhores condições, países onde os trabalhadores ganham menos. Que lhe interessa ao capital fazer 600 desempregados aqui, se ali produz o mesmo mais barato? E não fazem o mesmo certos capitais portugueses instalados em Marrocos ou no Brasil? Quem com ferros mata… E não deve o Estado olhar sobretudo pelos "mais indefesos na sociedade" que, por isso mesmo, "tanto mais necessitam da atenção e do cuidado dos outros, e particularmente da intervenção da autoridade pública" (CA 10)?
O que fica dito sobre a economia social de mercado (capitalismo moderado) constitui só por si uma alternativa capaz à maneira como funcionam as sociedades modernas?, e falamos das nossas, europeias, que, mais ou menos todas iguais, são as que vivemos, ou falta-nos ainda muito para se tornar verdade a "liberdade, igualdade e fraternidade" com que nossos avós já sonhavam? Para não falarmos já no capítulo 25 de Mateus. Mas isso é outra história, que a caridade é tão só "a perfeição da justiça" (Sínodo dos Bispos 1971).
7. O mundo da pobreza
Bem-aventurados os pobres, mas dai de comer a quem tem fome! Cuidado entretanto, que nem só de pão vive o homem. Muitas vezes já aqui falámos da pobreza no mundo. Vamos ler Steinbeck (As Vinhas da ira):
As raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas, para que os preços sejam mantidos em alta. É isto o mais triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O pessoal vinha de milhas de distâncias para buscá-las, mas agora não lhes é permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte cêntimos a dúzia, quando bastava sair do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de mangueiras, regaram-nas com querosene e enfurecem-se agora contra o crime daquela gente que veio à procura de fruta. Um milhão da criaturas com fome, de gente que necessita de fruta… e o querosene derramado sobre montanhas douradas!
O cheiro de podridão enche o país.
Queimam café com combustível de navios. Queimam milho para o aquecimento: o milho dá um lume excelente! Atiram batatas para os rios, mas colocam guardas ao longo das margens, para evitar que o povo faminto tente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e deixam a podridão penetrar na terra.
Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento humano. Há nisto uma tristeza que o pranto não pode simbolizar. Há um malogro que põe barreiras a todos os nossos êxitos; à terra fértil, às filas intermináveis de fruteiras, de troncos vigorosos carregados de fruta madura! Crianças atingidas pela pelagra têm de morrer porque a laranja não pode deixar de proporcionar lucro. Os médicos legistas devem depois declarar nas certidões de óbito: "Morte por inanição", porque a comida deve apodrecer, deve, por força, apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas dos rios, e os guardas impedem-no. Os homens vêm em carros ruidosos apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão regadas de querosene. E ficam imóveis a ver as batatas a passar flutuando; ouvem os grunhidos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam montanhas de laranjas a rolar num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflecte-se o malogro. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, amadurecendo para a vindima.
Tantas vezes falámos já aqui de injustiça e de pobreza! Muitos dizem que a fome é o "grande escândalo do século XX". Sim, sim, maior que o das guerras mundiais, e maior que o do pauperismo do séc. XIX gerado pela revolução industrial. E os teólogos não ficam atrás e dizem-na uma "questão teologal", que tem a ver não só com o homem - a negação do Homem - mas também com Deus - negação prática de Deus - e que exige do cristianismo (qualquer que ele seja) uma clara afirmação de fé em Deus: ou será que não somos irmãos e Deus deixou de ser Pai de todos?
Tudo isto é muito bonito, só que a injustiça e a pobreza têm rostos. Porque a injustiça concretiza-se nas perversas manifestações de desigualdade, pobreza, desprezo, marginalização e exclusão de numerosas pessoas e mesmo de povos que se podem considerar "crucificados" (Ellacuría). Manifestações realmente perversas porque geram sofrimento e chegam inclusive a provocar a morte antecipada e indevida de não poucos.
As desigualdades provocadas pela injustiça percebem-se a olho nu. Porquê uns e não outros? Porque têm direito uns e outros não? A nível sócio-económico, as desigualdades traduzem-se fundamentalmente na injusta existência de ricos e pobres, de incluídos e de excluídos no sistema. A nível jurídico-político, a desigualdade exprime-se, por exemplo, em ter-se ou não possibilidade de decisão na configuração da sociedade, isto é, em ter ou não ter poder. Ou, dito duma maneira mais crua: no facto de haver dominadores e dominados, cidadãos que gozam dos seus direitos e súbditos que não têm possibilidade de exercê-los. A nível ideológico-cultural, haveria que falar nas desigualdades intoleráveis entre etnias e raças, entre culturas e sexos, entre credos religiosos…
Normalmente, os que sofrem os efeitos da desigualdade, qualquer que ela seja, são potenciais candidatos a padecer também de outros males. Os que são economicamente pobres podem ser também - e são-no muitas vezes - marginalizados e excluídos sociais, pertencem na sua maioria ao sexo feminino e à terceira idade, carecem de poder e de cultura, não participam activamente na estruturação da sociedade e, frequentemente, são de raças, etnias, culturas e mesmo religiões desprezadas.
Para se perceber a grande complexidade e alcance de tudo isto, é preciso não esquecer que esta injustiça, com a sua sequela de desigualdades, está na origem de fenómenos tão indesejáveis como a emigração compulsiva, a xenofobia, o descalabro ecológico, o desemprego estrutural, a discriminação da mulher, o etnocentrismo, o racismo, a colonização ou imposição cultural, o fundamentalismo religioso e até a guerra.
Não sei se tem muito interesse voltar aos números.
As desigualdades do consumo são brutais. À escala mundial, 20% dos habitantes dos países mais ricos fazem 86% do total dos gastos em consumo privado planetário, e os 20% mais pobres gastam apenas um minúsculo 1,3%.
As três pessoas mas ricas do mundo têm activos que superam o Produto Interno Bruto combinado dos 48 países mais pobres do planeta.
As 15 pessoas mais ricas do mundo superam o PIB de todos os países africanos ao sul do Sará.
A riqueza das 32 pessoas mais ricas do Mundo supera o PIB total de Ásia meridional.
Os activos das 84 pessoas mais ricas do mundo superam o PIB da China, que é o país com mais população em todo o mundo, uns 1.200 milhões de habitantes.
Os 255 habitantes mais ricos do mundo têm uma riqueza combinada superior a um bilião de dólares, o mesmo que o rendimento anual de 47% da população mundial (2.500 milhões).
As diferenças de rendimentos entre a população dos países mais ricos e a dos países mais pobres continua a aumentar. Em 1960, 20% da população mundial dos países mais ricos tinha 30 vezes mais que os 20% mais pobres: em 1997 esta proporção tinha aumentado para 74 vezes.
Chega de números. São do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, da ONU, de 1997, 1998 e 1999.
De facto, que se passa no nosso Mundo?
7.1. Uma autoridade Mundial velando pelo Bem Comum
Quando em 1891 Leão XIII escreveu a RN a questão social limitava-se às relações entre patrões e operários. É Pio XII que, em 1958, começa a falar de solidariedade com os países pobres. João XXIII referir-se-ia já à questão social em dimensões planetárias e Paulo VI falaria do Populorum Progressio (Desenvolvimento dos Povos).
A economia internacionalizava-se. Sobretudo a partir de 1973 - a crise do petróleo - só os grandes países (Estados Unidos, Índia, China…), contando com os seus enormes mercados internos, tinham possibilidade de pensar uma política macroeconómica relativamente independente. Mas, numa economia globalizada, há uma grande diferença relativamente à antiga economia que se pensava num estado e só para ele: é que, enquanto no interior de um país se podem criar mecanismos de regulação e de redistribuição, a nível mundial não há nenhuma autoridade reconhecida neste campo. Portanto, lei da selva. Banco Mundial, FMI, Organizações regionais ou outras, tudo olha pelos seus interesses e nada mais. É assim nos nossos dias.
É neste exacto campo que a DSI começa a clamar por uma autoridade mundial. Paulo VI dizia em 1963, na ONU, que é necessário "chegar progressivamente ao estabelecimento duma autoridade mundial em condições de agir eficazmente no plano jurídico e político".
Porque a internacionalização da economia (hoje diz-se globalização) exige se releiam em chave planetária os princípios da moral económica que a igreja elaborou ao longo da sua história. E há três coisas fundamentais.
Primeira. A afirmação do destino universal dos bens:
"Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos. Por isso, os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça secundada pela caridade. (…) Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres - "alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentares, mata-lo" - repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si próprios" (GS 69).
E, continuando a reler em plano mundial o que até então se dizia apenas em plano local ou até nacional, o Concílio recorda o velho princípio da moral cristã e popular - "roubar para comer não é pecado": "Quem se encontrar em extrema necessidade tem direito a tomar, dos bens dos outros, o que necessita" (GS 69).
Segunda afirmação. A dívida que mata. Um jornalista do Le Monde escrevia há pouco tempo (2003.02.17) que as taxas de juros aplicadas pelo FMI a muitos países do Terceiro Mundo - falava do Brasil - eram tais que, exigidas em França, levariam à prisão por crime de usura! Por isso, já S. Tomás de Aquino (séc. XIII) aplicava o princípio "roubar para comer não é pecado" ao caso do devedor que não pudesse pagar o que devia sem cair em extrema miséria. E João Paulo II:
 "Com certeza que é justo o princípio de que as dívidas devem ser pagas; não é lícito, porém, pedir ou pretender um pagamento quando ele levaria de facto a impor opções políticas tais que condenariam à fome e ao desespero populações inteiras. Não se pode pretender que as dívidas contraídas sejam pagas com sacrifícios insuportáveis. Nestes casos, é necessário - como, de resto, está sucedendo em certa medida - encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida, compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso" (CA 35).
Finalmente. João XXIII definiu o Bem Comum como "o conjunto de condições sociais que permitem e favorecem ao homem o desenvolvimento integral da personalidade" (MM 65). Pio XII tinha já apontado a esta mesma noção um âmbito mais universal:
"Aquelas condições externas que são necessárias ao conjunto dos cidadãos para o desenvolvimento das suas qualidades e dos seus ofícios, da sua vida material, intelectual e religiosa". O bem comum não pode ser, portanto, entendido, apenas numa acepção individualista. Assim como, no interior de um país, o bem comum prevalece sobre o individual, também na economia mundial o bem comum universal tem de prevalecer sobre o nacional: "Assim como nas relações privadas não é lícito a ninguém conseguir os seus próprios interesses danificando injustamente os outros, também nas relações entre as comunidades políticas não pode, sem crime, nenhuma delas desenvolver-se lesando ou oprimindo as restantes. É aqui oportuno citar a expressão de Santo Agostinho: 'Se se abandonar a justiça, a que ficarão reduzidos os reinos senão a grandes latrocínios?'" (PT 92).
Churchill dizia que "as nações não têm amigos, têm interesses" (na maior parte das línguas europeias, esta palavra interesse quer dizer também juros!).
Será que pode nesta questão entrar um bocadinho de espírito evangélico?
"A exploração do homem, a indiferença pelo sofrimento alheio, a violação das normas morais são somente alguns dos resultados da ambição do lucro. Frente ao triste espectáculo da persistente pobreza que atinge boa parte da população mundial, como não reconhecer que o lucro perseguido a todo o custo e a falta de atenção efectiva e responsável pelo bem comum concentram uma grande quantidade de recursos nas mãos de poucos, enquanto o resto da humanidade sofre na miséria e no abandono? Fazendo apelo aos crentes e a todos os homens de boa vontade, desejo reafirmar um princípio óbvio por si mesmo, apesar de não raro desatendido: é necessário procurar não o bem de um restrito círculo de privilegiados, mas a melhoria das condições da vida de todos. Somente sobre este fundamento se poderá construir aquela ordem internacional orientada realmente para a justiça e na solidariedade, que todos almejam" (João Paulo II, Mensagem quaresmal 2003).
7.2. O mundo da pobreza, uma estrutura de pecado
"As nações não têm amigos, têm interesses", dizia Churchill (recordo que, na maior parte das línguas europeias, esta palavra interesse quer dizer também juros!).
Apesar disto, estou em crer que há boas vontades no sentido de que o actual estado de coisas se possa alterar. Mas muitos, e às tantas eu também, estamos mesmo convencidos que a tarefa é praticamente impossível. É que - dizia João Paulo II - "há mecanismos económicos, financeiros e sociais que, embora conduzidos pela vontade dos homens, funcionam muitas vezes de maneira quase automática, tornando mais rígidas as situações de riqueza de uns e de pobreza de outros. Estes mecanismos, manobrados - directa ou indirectamente - pelos países mais desenvolvidos, favorecem com o seu próprio funcionamento os interesses de quem os manobra, mas acabam por sufocar ou condicionar as economias dos países menos desenvolvidos" (SRS 16).
A estes "mecanismos económicos, financeiros e sociais" chama depois o Papa "estruturas de pecado". O que quer isto dizer?
É verdade que de há muito a moral cristã sofria de um individualismo exagerado. Até parece que a única coisa importante na vida era a conduta pessoal: bom pai, bom marido, bom profissional, pagar os impostos e ir à missa ao domingo. Se depois disto tudo ainda havia mal no mundo já não era da nossa responsabilidade. Aqui radica a certeza que muitos têm de que o mal é sempre culpa dos outros.
Rompendo com esta perspectiva, os teólogos começaram a falar de pecado social, situação de pecado, estruturas de pecado, dimensão estrutural de pecado, etc, mas de início apenas a medo, não fosse a responsabilidade individual fazer das estruturas um bode expiatório, como se houvesse "pecados sem pecador".
Nada disso. As estruturas de pecado são fruto da acumulação de pecados pessoais e, portanto, o mal que delas deriva é da responsabilidade de quem as originou e as mantém. Mas é verdade que, quando os pecados pessoais cristalizam numa "estrutura de pecado", trata-se então de algo qualitativamente distinto de uma simples soma de pecados individuais. De facto, as estruturas de pecado manifestam um "novo poder " distinto do dos pecados individuais. Por isso é que encontramos no mundo um mal maior e qualitativamente diferente do que deveria resultar da soma das vontades individuais. Há efectivamente, apesar de tudo, poucos monstros humanos tipo Hitler ou Estaline, Dutrout ou o Estripador de Londres. E no entanto a fome no mundo, a estrada, o assassínio directo, eu sei lá que mais, mata, ainda hoje, mais, muito mais, mesmo que qualquer das guerras mundiais do século passado.
Permitam-me um exemplo: podia dá-lo com o nosso Pe. António Vieira mas, como é conhecido de alguns, vou a outro.
No 4º Domingo do Advento de 1511, frei Antonio de Montesinos surpreendeu os cristãos de La Hispaniola (hoje República Dominicana) com este sermão:
«Todos vós estais em pecado mortal. Nele viveis e morreis por causa da crueldade e tirania com que tratais estas gentes inocentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível escravatura estes índios? Com que autoridade levais a cabo cruéis guerras contra os povos que aqui viviam, mansos e pacíficos, gente que destruís com mortes e sofrimentos nunca pensados? Como os tendes tão oprimidos e fatigados, sem lhes dardes de comer nem os tratardes das suas doenças, submetendo-os pelo contrário a trabalhos forçados que os matam? Ou melhor, matá-los matai-los vós obrigando-os a trabalhar dia a dia na busca do ouro com que vos encheis. Que cuidado tendes em que alguém os ensine, lhes fale de Deus criador? Não são eles homens? Não têm alma? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto?».
Comentando este sermão, Fr. Bartolomeu de Las Casas escreveu assim na sua História das Índias: "Deixou-os atónitos, a muitos em estado de choque, a outros mais empedernidos ainda, mas, ao que depois percebi, não converteu um sequer!".
Pior do que isso: como quando António Vieira chamou a uns "peixes grandes que comem os pequenos" e a outros "peixes pequenos comidos pelos grandes" e ninguém era "peixe grande" em S. Luís do Maranhão naquele ano de 1654, em La Hispaniola, quase 150 anos antes, a culpa não era também de ninguém.
Eu vou dizer isto de uma maneira politicamente incorrectíssima. Se, segundo o PNUD 2000, a esperança média de vida é em Portugal de 75,5 anos e a da Guiné-Bissau de apenas 44,9, porque é que a gente não desata a matar, neste país que é o nosso, indiscriminadamente, todas as pessoas que têm mais de 44,9 anos! Mas não é isso que, na prática, se faz na Guiné-Bissau? Porque é que entre o Primeiro e o Terceiro Mundos podem continuar a existir tais estruturas de pecado que, ao acumularem-se num dos lados os recursos alimentares e sanitários, se faz com que nós possamos viver em Portugal e em média mais de 30 anos que os guineenses?
A aceitação do conceito de "estruturas de pecado" deu realismo à DSI, tradicionalmente acusada de se fechar num moralismo ingénuo que punha o acento na boa vontade dos indivíduos mas ignorava as estruturas em que eles se movem sem grande margem de manobra. Claro que conversão pessoal, mas também mudança de estruturas: "A originalidade da mensagem cristã não consiste apenas na afirmação da necessidade da mudança de estruturas mas também na importância da conversão do homem. Esta exigirá aquela. Não teremos um mundo novo sem estruturas novas e renovadas; mas sobretudo, não haverá um mundo novo sem homens novos que, à luz do Evangelho, saibam ser livres e responsáveis" (Medellín, 1968).
7.3. As vítimas da pobreza clamam pela justiça de Deus
Foi o teólogo luterano alemão Bonhoeffer (1906-1945), morto num campo de concentração nazi, quem primeiro falou de um "status confessionis", isto é, daquela situação limite que era a do nazismo em que se exigia dos cristãos uma clara e explícita Profissão de Fé teologal, e não apenas humanitária ou política. Alguns teólogos contemporâneos falam doutras situações desse calibre a exigir uma outra Profissão de Fé, a da pobreza no mundo ou a própria decisão da guerra.
De facto, a injustiça actualmente existente no mundo, com todas as suas manifestações de desigualdade, pobreza, marginalização e exclusão, isto é, com todo o tipo de sofrimento que gera e que destrói tanta gente com uma "morte prematura", é hoje em dia o maior problema ético da humanidade.
Considerado à luz da fé cristã, o problema da injustiça não se situa apenas no campo da ética mas adquire um estatuto rigorosamente teologal: "o que mais oculta o rosto de Deus é a profunda injustiça que reina no mundo. Se não lutarmos contra ela e não nos pusermos ao lado das vítimas, colaboramos com o actual ocultamento de Deus" (Bispos vascos, 1998). De facto, só por si, a própria injustiça - bem como a falta de solidariedade que a perpetua, a mentira que a encobre e a ideologia que a justifica - oculta o rosto do Deus de Jesus e constitui mesmo uma negação radical de Deus. Num mundo dominado pela injustiça que gera tantas vítimas, como se pode conhecer e encontrar Deus, "Pai e Mãe", amor misericordioso e libertador, Deus da vida, que oferece de preferência aos pobres um Reino de justiça e de paz, como nos revelou Jesus? A "morte de Deus" está, para muitos, estreitamente ligada à realidade da injustiça.
A situação histórica de dependência e dominação de dois terços da humanidade, com os seus 30 milhões anuais de mortos pela fome e desnutrição, constitui uma acusação grave a toda a humanidade, mas também aos cristãos: "Onde está o teu irmão, Abel" (Gn 4,9); "Tive fome e não me deste de comer" (Mt 25, 42).
E quando os cristãos pretendemos viver a fé sem nos deixarmos desafiar pelo sofrimento das vítimas da injustiça, é o próprio Deus, Pai e Mãe, que pomos em questão e, com ele, o próprio Jesus histórico e a sua Igreja. O cristianismo deixa de ter sentido.
Se o que acabo de dizer é verdade (e só deixa de o ser se o cristianismo for apenas um moralismo individualista, barato, calculista e de trazer por casa), então afirmar Deus no tempo presente tem de ser um compromisso com a humanização e uma garantia da plenitude da vida das maiorias pobres e oprimidas da humanidade. Isso sim, dará credibilidade a um Deus-Pai-e-Mãe, e viabilizará o melhor resumo da vida e da pregação de Jesus - o Reino de Deus. Bem como dará credibilidade à própria Igreja: porque "reconhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros" (Jo 13,35).
O repto que a injustiça lança hoje à Igreja, a qualquer dimensão e em qualquer lugar, é hoje um desafio teologal. É um repto tão decisivo e importante que se torna absolutamente radical: ou a fé no Deus verdadeiro que é fonte de vida, ou a adesão aos falsos ídolos que chafurdam na carniça da injustiça, do sofrimento e da morte. Uma vítima não tem hoje qualquer interesse em saber se um ser humano é crente ou não; interessa-lhe sim saber em que Deus acredita e que ídolos combate. Ninguém se escandalize com isto, que já o dizia Jesus na parábola do Juízo final: "tive fome e não me deste de comer". Por isso, "para dizer toda a verdade, é preciso dizer duas coisas: em que Deus se crê e em que ídolos se não crê. Sem esta formulação dialéctica, a fé é uma teoria, vazia de sentido e, o que é pior, ela pode tornar-se muito perigosa porque permite que coexistam crença e idolatria" (J. Sobrino). Ou não consistiu sempre a idolatria em estabelecer uma corte trágico entre a afirmação teórica de Deus e a prática da injustiça?
O repto da injustiça exige, portanto, concretização e clarificação. Obriga a afirmar em que Deus se acredita e quais são os ídolos a combater. Na resposta que lhe dermos podemos encontrar uma dos mais decisivos critérios da verdade da nossa fé no Deus de Jesus. De facto, nesta perspectiva, a "questão da injustiça" é "a questão de Deus".
"Onde estás?, eu te busco, meu Deus, / cada dia e cada noite. /… / Estás no olhar e na mão do mendigo / que vive sem alento / … / Estás na palavra que espera / chegue a justiça".
7.4. Dizer 'Deus' é escutar o clamor dos pobres
O repto que a injustiça e a guerra lançam à Igreja, a qualquer dimensão e em qualquer lugar, constituem hoje um desafio teologal. O repto da injustiça e da guerra exige a profissão de fé no Deus em que acredita e a renúncia dos ídolos a abater. Dizia há oito dias.
E acrescentava: é teologal a questão que nos ocupa. Isto é: contribuir para a injustiça ou até só resignar-se diante dela é na prática negar radical e praticamente o Deus cristão; pela contrário, lutar pela justiça defendendo o direitos dos indefesos é crer em Deus e professar essa fé, é sacramentalizar a sua presença na história.
"A teologia cristã … encontra-se hoje diante da tarefa de tornar de novo audível o grito de sofrimento e o clamor pela justiça que se eleva de uma grande parte da humanidade. Fazer teologia, dizer 'Deus', sem escutar esse clamor é não conhecer aquele que se revelou escutando o clamor do seu povo (Ex 3,7), o mesmo povo ao qual Jesus, o Cristo, anunciou a sua própria vinda lembrando que os cegos viam, os coxos andavam e aos pobres era anunciada uma "boa notícia" (Lc 4,18; Mt 11,4). A teologia tem que assumir que a situação de injustiça no mundo, bem como o consequente sofrimento dos pobres e a sua aspiração pela justiça, não é apenas resultado da situação económica do mundo nem se reduz a um elemento da sua situação moral, antes tem directamente a ver com a sua situação religiosa, tem decisivamente a ver com Deus e com a relação efectiva dos crentes com ele" (Martín Velasco). O Deus bíblico é, desde o Êxodo, o que escuta o clamor do povo injustamente oprimido; a escuta desse clamor faz parte da identidade do Deus de Israel.
Por isso, necessariamente, o Deus que se nos revelou na mensagem e na totalidade da vida de Jesus mantém esta mesma vinculação essencial com a realização da justiça, radicalizada e aprofundada entretanto no amor. O centro da mensagem de Jesus foi a proclamação da chegada do Reino de Deus como boa notícia de salvação para os pobres e pecadores. Quando Jesus anunciou a chegada deste Reino, estava a proclamar a bem-aventurança para os pobres, a libertação para os cativos, a vista para os cegos, a voz para os mudos, o andar para os coxos, a liberdade para os oprimidos, a integração dos excluídos. Pode mesmo dizer-se que o que especificou o anúncio de Jesus foi o convite dirigido a todos os marginalizados e excluídos a que se sentassem nos primeiros lugares do banquete do Reino. Porque a causa de Jesus, Filho de Deus, era a causa da justiça. E "O mesmo Deus que, na plenitude dos tempos, enviou Jesus feito homem, vem hoje libertar todos os homens de todas as escravidões a que os sujeita o pecado, a ignorância, a fome, a miséria e a opressão, numa palavra, a injustiça e o ódio que têm a sua origem no egoísmo humano" - dizia Medellín em 1968.
Por isso, ainda, a fé cristã pode e deve contribuir de forma significativa para despertar a humanidade deste "sonho mau" de desumanidade que nos cobre. Precisamos manter-nos fiéis à memória subversiva da morte e ressurreição de Jesus, isto é, pecisamos ser capazes de não nos esquecermos da memória das vítimas de todos os tempos mas num horizonte de esperança. É preciso subverter o presente (memória subversiva) e projectar um futuro novo (memória esperançosa). A "memória de Jesus" não é uma recordação que nos resguarda dos riscos do futuro. Pelo contrário, ela activa exactamente a memória de todas as vítimas da injustiça de todos os tempos da história, exercendo uma função crítica no seio da nossa própria sociedade, na qual a lógica política e económica é sustentada pelo poder dos mais fortes. Frente à incapacidade que esta lógica tem de corrigir a injustiça do sistema e de tomar a seu cargo os débeis que tornou fracos e os excluídos que excluiu, a fé cristã, fiel à memória de um inconformista crucificado,
1. não esquece essa parte obscura e inquietante da realidade social e comunga com ela, com a sua dor e o seu fracasso, bem como com as suas justas aspirações;
2. questiona de forma radical o triunfalismo e o bem estar dos mais fortes com todas as suas justificações ideológicas;
3. fiel à memória de Jesus, crucificado, morto e ressuscitado, pretende impedir que se repita a história do sofrimento injusto das vítimas.
A esperança cristã, fundamentada na memória crente de Jesus ressuscitado, remete o cristão para o ser humano, para o mundo e para a história, exactamente aqui onde nascerão "um novo céu e uma nova terra" (Apo 21,1), onde "se enxugarão todas as lágrimas dos olhos dos humanos e não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem fadigas, porque o velho mundo passou" (Apo 21,4) e onde o próprio Deus será "tudo em todas as coisas" (Col 3,11). É o que diz Paulo quando escreve: "Meus queridos irmãos: mantende-vos firmes e inabaláveis; trabalhai sem descanso na obra do Senhor, sabendo que ele não deixará a vossa fadiga sem recompensa" (1 Cor 15,58).
8. A ecologia
«Ao fundo, via-se uma fileira de chaminés de fábricas que expeliam enxofre e todo o tipo de venenos. Em primeiro plano, num belo bosque, um rapaz e uma moça beijavam-se. Um padre que passava, incomodado pelo fumo das fábricas, tossiu, espirrou a seguir, e, quando viu o par, atirou-lhes: "Porcos!". Este é o quadro mais adequado para referir a moral tradicional entre os anos 1900 e 1955»! Quem o diz é o insuspeito Schillebeeckx numa das suas últimas obras Os Homens, relato de Deus.
A ecologia é, de facto, um problema moral novo.
A palavra quer dizer, etimologicamente, "tratado da casa". Como sabemos todos, enquanto o animal se adapta ao ambiente em que vive, o homem modifica-o, adaptando-o a ele. O mal é que nem sempre as intervenções do homem foram acertadas. Civilizações houve que, os historiadores não têm hoje dúvidas, desapareceram em consequência do atropelo ecológico que provocaram; outras, mais respeitadoras do ambiente, a egípcia ou a chinesa, duraram por isso mais tempo. Hoje em dia, porque o homem tem mais capacidade de modificar a natureza, mais perturbações lhe causa. E mais longe chegam essas perturbações. Chernobil sentiu-se em França, por exemplo.
O sinal de alarme tocou praticamente pela primeira vez há uns 40 anos quando se descobriu que estavam a crescer exponencialmente três coisas: a população do planeta, o consumo de matérias primas e a contaminação da natureza. O célebre Club de Roma (Os limites do crescimento, 1972) formulou então: "Um crescimento indefinido, seja de que tipo for, não pode sustentar-se com recursos finitos. Esta é a razão fundamental da doutrina ecológica. E se é impossível fazer frente a um crescimento indefinido, pior ainda se se tratar de um crescimento não já apenas indefinido mas, ainda por cima, exponencial". Qual seja a diferença entre crescimento indefinido e exponencial, deixo isso à matemática; fiquemo-nos com que crescer assim, quando tal acaba o petróleo, acaba a água, acabam as plantas, depois não há madeira, acaba a possibilidade de controlar a natureza, de sustentar o clima…
Dizia que até há bem pouco não havia consciência de que era necessário respeitar a natureza, E ainda não há. Neste pouco tempo, entretanto, muitas hipóteses surgiram no sentido de se reparar o mal: regresso à natureza-virgem; regeneração na natureza (paga por quem; pelo poluidor ou pelo consumidor?); cultura da frugalidade em vez da cultura do desperdício; crescimento zero (mesmo para os que vivem ainda na Idade Média?), etc.
Hoje vai-se chegando, mais ou menos, ao fundo da questão: as raízes da crise ecológica são de ordem cultural e têm a ver com o sentido que o homem da civilização industrial tem da sua relação com a natureza e com os demais homens, bem como com o que ele entende por felicidade. De facto, o homem moderno não se vê já como parte da natureza mas antes como alguém que tem capacidade para a dominar e conquistar: a doença que o leva a este modo de se relacionar com a natureza é a mesma que o leva a oprimir, em benefício próprio, outros homens, outras classes e outros povos.
O cristianismo tem sido amplamente acusado de estar na origem desta doença: "a religião cristã é a mais antropocêntrica que o mundo alguma vez conheceu, especialmente na sua forma ocidental". De resto, ela fundamenta-se na judaica, do "dominai a terra" do Génesis (1,28). Por isso, "Posto que as raízes do nosso problema são religiosas, o remédio deve ser também essencialmente religioso, chame-se assim ou não. Mais ciência e mais tecnologia não nos libertarão da actual crise ecológica, a não ser quando se encontrar uma nova religião ou reconsiderar a antiga". Quem assim fala é Lynn White, o homem que, antes de mais ninguém, nos passados anos 60, acusou o cristianismo de ser o maior responsável pela crise ecológica actual.
Ora bem. Dominar a terra não é a mesma coisa que usar e abusar dela, como podiam pensar os antigos romanos (no Direito Romano, dominar uma coisa era poder usar e abusar dela). Ainda bem que temos dois relatos da Criação. É verdade que um, o mais recente, o do capítulo primeiro, diz, nas traduções modernas, "dominai a terra", à letra, no entanto, o que lá está é "ponde-lhe o pé em cima" no sentido daquilo que a gente fazia quando éramos putos, durante o recreio, na escola, o vento levava a vitória, corríamos uns poucos, o mais lesto punha-lhe o pé em cima e dizia "é minha!". Portanto, "dominai a terra" no sentido de "tomai posse dela".
Mas como temos duas versões, a mais antiga, a do 2 e 3º capítulos, diz que Deus colocou o homem no "jardim do Éden para o cultivar e também para o guardar" (Gn 2,15), não para o dominar no sentido de abusar. E o Livro da Sabedoria acrescenta mais qualquer coisa: "Deus de meus pais, Senhor de misericórdia que fizeste o universo com a tua palavra e formaste o homem sabiamente para que domine sobre todas as criaturas e governe o mundo com justiça e santidade…" (Sab 1,1-3). Diz o comentador assim: o homem, que é à imagem e semelhança de Deus, tem de ter para com as criaturas que lhe foram entregues, um relacionamento do mesmo tipo que caracteriza o de Deus com o mesmo homem, feito de santidade e de justiça.
Já São Paulo reconhecia que "per visibilia ad invisibilia" (pelas coisas visíveis se chega às invisíveis): "o que em Deus é invisível torna-se, desde a criação do mundo, visível à inteligência humana nas suas obras" (Rom 1,20). A natureza é assim - não tenhamos medo da linguagem - um verdadeiro sacramento de Deus. Por isso, "dai graças ao Senhor porque só ele fez maravilhas" (Salmo 136), porque "os céus cantam a glória de Deus" (Salmo 19).
Mas de facto não é assim que o homem se tem relacionado com a natureza. Apesar de S. Francisco de Assis e de alguns outros!
Em resumo muito resumido sobre esta questão, termino com João Paulo II:
"O carácter moral do desenvolvimento não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os Gregos chamavam o cosmos. Também estas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais convém reflectir atentamente. A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda maior consciência de que não pode fazer-se impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados - animais, plantas e elementos naturais - como bem lhe parecer, em função das próprias exigências económicas, (…) A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, cada vez maior, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são renováveis. (…) A terceira relaciona-se directamente com as consequências que tem um certo tipo de desenvolvimento, quanto à qualidade da vida nas zonas industrializadas. Todos sabemos que, como resultado directo ou indirecto da industrialização, se dá, cada vez com maior frequência, a contaminação do ambiente, com graves consequências para a saúde da população" (SRS 34).
Não basta, pois, a solidariedade com os mais pobres ou com os vizinhos. "No seio da crise ecológica, está a incubar a convicção de que há exigências universais de ordem ética que têm de ser respeitadas. Uma moral ecológica é uma moral da solidariedade da espécie: os bens da terra são propriedade comum de todos os seus habitantes. Como são limitados e cada vez mais escassos, há que administrá-los com critérios de justiça não só sincrónica (entre os contemporâneos da mesma geração) mas também diacrónica (entre a geração presente e as futuras). Por outra palavras, volta a tomar-se em consideração a ideia de que "a espécie humana joga o seu destino no âmbito subjectivo da interioridade, da liberdade responsável, e não na crua objectividade técnico-científica" (Ruiz de la Peña).
9. A política, a moral, o direito e a fé
Não há dúvida que, regra geral, os políticos têm fraca fama. "Todos os senadores, depois de haverem manifestado a sua opinião e de a terem defendido no parlamento da nação, deveriam ser obrigados a votar exactamente ao contrário pois que, fazendo assim, o resultado seria, sem dúvida, o favorável ao bem-estar público". A afirmação é de 1726, e foi feita por Jonathan Swift, o autor das célebres Viagens de Gulliver.
E isto sem falarmos já nos problemas de corrupção, pois é verdade que "por toda a parte cobrem o manto da política interesses egoístas e bastardos, apostasias e vilezas" (Pardo Bazan). Mas de facto uma coisa é a patologia da política, outra que "a dedicação à vida política deve ser reconhecida como uma das mais altas possibilidades morais e profissionais do homem" (Bispos espanhóis, 1983).
A palavra política refere "a arte de governar a cidade" (pólis, em grego), ou seja, de harmonizar os interesses dos diferentes grupos existentes na sociedade. O que não é fácil. Veja-se lá por casa. E são muito menos.
A principal dificuldade que se coloca à consecução de uma boa política radica no facto de que, para a conseguir, não basta fazer uma simples soma aritmética das reivindicações das diversas associações ou grupos particulares, já que elas são muitas vezes incompatíveis entre si. É por isso necessário integrá-las numa síntese coerente que resulte viável. Para consegui-lo, o poder político tem de dispor de uma alguma capacidade de coacção, o que não quer dizer que para tal possa ou deva usar a força física. Só na medida em que numa sociedade a força for substituída pelo Direito, o medo pelo respeito, a coacção pelo consentimento e a necessidade pela liberdade, o Estado alcança os seus objectivos. O Vaticano II explicou assim:
"A comunidade política existe em vista do bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. (…) Assim, para impedir que a comunidade política se desagregue seguindo cada um o seu próprio parecer, requere-se uma autoridade que faça convergir para o bem comum as energias de todos os cidadãos, não de uma maneira mecânica ou despótica mas sobretudo com uma força moral que se apoia na liberdade e na consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade" (GS 74).
Sabemos, entretanto, todos que "o poder tende a corromper-se, e o poder absoluto a corromper-se absolutamente" (Lord Acton, 1887). E não se trata apenas de uma questão de corrupção: o poder embriaga pois dá muitas vezes a sensação de que, com ele, se está a fazer história. E aí se começa a perder a lucidez. Já o próprio Sancho Pança dizia, antes de começar a governar a Barataria, que "é bom mandar nem que seja só num curral de gado". Por isso mesmo Jesus prevenia: "sabeis como os governantes das nações fazem sentir sobre elas a sua autoridade, e como os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande faça-se vosso servo, e quem quiser ser o primeiro faça-se o servo de todos. Também o Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir e dar a sua vida por todos" (Mc 10, 42-45).
No seguimento destas palavras evangélicas pode conceber-se o propósito de moralizar a política?
Claro que muitos dizem ou disseram que não. Fundamentalmente os anarquismos que condenam radicalmente todo o poder político como intrínseca e inevitavelmente injusto, fundamentalmente por duas razões: a repugnância pela coacção a que todo o poder tem de recorrer, e a convicção de que o Estado só consegue representar interesses parciais.
Face aos anarquismos levanta-se o realismo político. Se é verdade que já os romanos diziam que "Salus populi suprema lex est" (A saúde do povo é a suprema lei), a verdade é que qualquer poder político, em qualquer lugar ou tempo, em nome das "razões de Estado", faz este mundo e o outro sem respeitar nem o Direito, nem a Moral, nem quê, nem quem. E, no entanto, a política não precisa de renunciar à ética para ser eficaz: "os acontecimentos do ano 1989 são um exemplo do sucesso da vontade de negociação e do espírito evangélico contra um adversário decidido a não se deixar vincular por princípios morais; eles são uma advertência para quantos, em nome do realismo político, querem banir o direito e a moral da arena política" (CA 25).
Finalmente, há os que defendem que, embora a política deva reger-se por normas morais, na prática, ela tem necessariamente de aceitar compromissos imorais: "O bem comum, Senhor, tem tais larguezas / Com que justifica obras duvidosas. (…) Não se há-de fazer mal por quantos bens / Se possam daí seguir" (António Ferreira - Castro). São os maquiavelismos de toda a espécie: mentir (ou, ao menos, dizer apenas meias-verdades), romper compromissos, sacrificar interesses de uns em favor dos de outros, pactuar mesmo com iniquidades, exercer pressões e mesmo chantagens, enfim o que a gente sabe. De resto - dizem - não é verdade que nenhum dos que tentou moralizar a política - Platão, Cícero, Tomás Moro, Fénelón, etc - exerceu o poder político?
É então coisa diabólica e suja, a política, como se ouve dizer na esquina da rua? "De facto, a política causa-me náuseas e mete-me medo. O Estado tem, para mim, algo de demoníaco, ou, se quisermos, de ladrão. […) Eu não tenho interesse nenhum pessoal em participar no governo desta República. Reservo-me por isso o posto de maqueiro para socorrer ou ajudar a suportar as feridas que ele causa às sua vítimas" (Jimenez Lozano).
Portanto, sujar as mãos na política ou tentar mantê-las limpas? Há ainda a hipótese de cortá-las fora… para não as sujar!
Mas é preciso que gente honrada decida meter as mãos nessa massa espessa e às vezes escura que é a política. Tendo em conta que o mundo não é nunca ideal, há que ser "astuto como as serpentes" (Mc 10.16) para não ser posto fora.
Pode ter o Evangelho algo a ver com esta questão? Que pode trazer a fé à política?
Num artigo que ficou famoso, o teólogo Chénu, falecido em 1990, defendia que era necessário considerar como próximo não só as pessoas individuais mas também as massas humanas. De facto - explicava ele - se posso aproximar-me do outro através de uma presença imediata, como no caso do bom samaritano, posso também fazê-lo sem essa presença, comprometendo-me, por exemplo, com a dignificação de colectivos sociais a que pertenço ou de que sou próximo: chego aos reformados através da Segurança Social, às empregadas domésticas ou aos emigrantes promovendo, por exemplo, legislação que proteja os seus direitos, etc. A isto chamava ele "caridade política", retomando uma expressão que vinha muito de trás, de Pio XI: "O campo político abarca os interesses da toda a sociedade; neste sentido, ele é o campo da mais vasta caridade, da caridade política, da caridade para com a sociedade", dizia o Papa em 1927, com quem Mussolini andava já às turras.
Mas então que junta a fé ao compromisso político?
Antes de mais, "cumprindo os seus deveres civis normais, guiados pela sua consciência cristã e pelos valores a ela conformes, os fiéis assumem assim o papel que lhes é próprio de animar cristãmente a ordem temporal … cooperando com todos os mais cidadãos, segundo a sua competência específica e a sua responsabilidade própria" - dizia recentemente um documento da Congregação da Fé (Questões sobre o compromisso e o comportamento dos católicos na vida política, documento da Congregação da Fé de Janeiro de 2003).
No entanto, a fé pode oferecer fundamentação, motivação e sentido acrescentado ao compromisso político. Não quer isto dizer que o compromisso político não tenha sentido sem a fé. Quer é dizer que a fé pode trazer "mais" sentido ao compromisso político
Poder pode. Mas, diga-se desde já, a sua contribuição ao mundo político será sempre uma contribuição modesta: modesta porque não podemos sacar da Revelação nenhum modelo para as nossas sociedades modernas; modesta porque a acção libertadora e humanizadora que se realiza na História para construir sociedades mais justas não é campo ou património exclusivo dos crentes (nós não somos os únicos que trabalhamos nessa direcção; nem os únicos nem talvez os mais trabalhadores). A acção de Deus realiza-se através do seu Espírito que actua onde quer e quando quer, até nas pedras! Mas, para além destas razões, há outras, de ordem histórica.
Olhando a história, sabemos que nós, os cristãos e as comunidades cristãs, não foram, não têm sido, no passado, muito exemplares neste campo. Não tem sido de monta, nem numérica nem qualitativamente, o contributo de cristãos no campo da política. O poeta dizia que, no passado, "entregámos o mundo ao Diabo". Estamos assim a "pagar pecados antigos". E quando, os cristãos, chegamos ao poder, deixamos - o Senhor me perdoe se eu peco! - o Evangelho à porta e não somos nem bons nem melhores que os outros. Vale com os cardeais Richelieu ou Mazarino ou talvez nem seja preciso ir tão longe.
A fé cristã pode no entanto duas coisas. E a primeira é que pode fundamentar teológica e mais vigorosamente um compromisso político que tenha em vista uma sociedade bem diferente das que vivemos e pode mesmo animar a esperança da sua possibilidade, uma esperança capaz mesmo de resistir ao fracasso histórico. Nós somos seguidores dum crucificado que historicamente terminou na cruz. E a nossa história está até povoada de resistências históricas bem difíceis que, afinal, romperam impossíveis históricos.
Mas deve também a fé cristã trazer à vida política valores evangélicos - o espírito das bem-aventuranças - que podem efectivamente contribuir para a criação de uma sociedade mais justa. Desde logo, a opção pelos pobres da terra: os marginalizados, os excluídos, os pequenos, os débeis, os que não contam, os que já deixaram de ser. A memória daquele que foi crucificado tem que ser hoje, sob pena de não ser autêntica, memória dos crucificados. Depois, a opção pelo diálogo. Já me chateia ouvir políticos, gente dos negócios, do futebol, até das artes, a ameaçar publicamente com o recurso aos tribunais por nicas e tricas. Uma atitude de diálogo que inclua o que poderia chamar-se o encontro crítico com o mundo e com a modernidade. Paulo VI dizia que "antes de convertermos o mundo é preciso acercarmo-nos dele e falar-lhe" (ES 62). Se não o fazemos nós, quem o fará? Finalmente, dialogar com o mundo, claro, mas, sempre respeitando-lhe a autonomia. Acabou o tempo em que a Igreja dava regras ao mundo. Hoje é preciso ser capaz de renunciar a tudo o que seja impor, numa sociedade que é plural e laica, os nosso próprios valores, por muito convencidos que estejamos deles. E esta é uma tarefa que é nossa como de todos os mais: há que sentar-se com os que se sentam, pensar com os que pensam e trabalhar com e como todos os mais, assumindo a realidade como ela é, respeitando os gritos e as perguntas que ela lança e coloca.
Por tudo isto é que, para os cristãos, é de facto importante participar na vida da polis.
10. A democracia
A palavra Governo carrega uma multiplicidade de significações. Em sentido lato, refere o executivo do regime político de uma Nação. Ainda em sentido geral, não existe sociedade sem governo, por mais rudimentar que seja a sua estrutura ou por mais repartida ou diluída que se encontre a autoridade. Um mínimo de governo é sempre necessário para que uma sociedade possa atingir os seus fins, mesmo que eles se resumam a uma simples vontade de existir.
Ao longo da História houve, e há mesmo ainda, inúmeras e diferentes formas de formas de governo - aristocracia, teocracia, império, monarquia, república, etc, etc -, muitas delas combinadas com outros contributos, ditadura, totalitarismo, democracia, poder popular, capitalismo de estado, liberalismo, socialismo, etc, etc. Modernamente, instalou-se progressivamente nos estados do Primeiro Mundo sobretudo a democracia. Esta, no entanto, pode casar-se com a Monarquia, com a República, com a própria teocracia, etc.
Sobre a democracia, a Bíblia não nos diz nada. A palavra quer dizer, à letra, "poder do povo", na linha da canção tão conhecida que diz que "o povo é quem mais ordena". Para entendê-la à luz das fontes da fé temos que dar uma pequena volta.
A democracia assenta basicamente numa convicção: que todos os homens são iguais por natureza e diferentes por função. Esta ideia, de La Palisse, é fundamental, mas historicamente nem sempre vigorou; antigamente, por exemplo, pensava-se que os reis o eram por natureza antes de o serem por função. Eram portanto homens especiais. Ao contrário, na democracia, os homens são iguais por natureza e diferentes por função. Esta primigénia ideia democrática que está de acordo com o Livro do Génesis, que diz que todo o homem e toda a mulher são imagem de Deus.
Partindo deste princípio, a teologia medieval manifestou-se já a favor das formas democráticas de governo: "A melhor constituição para uma cidade ou nação é aquela em que um é o depositário do poder e tem a presidência sobre todos, de tal modo que alguns participam desse poder sendo ele, no entanto, de todos; assim, todos podem ser eleitos para o exercer e todos tomam parte nessa eleição" (S. Tomás de Aquino, séc. XIII). Este pensamento evoluiu e aprofundou-se, de tal modo que no séc. XVI, o célebre Suarez, da Escola de Salamanca e também professor em Coimbra, dizia: "O homem, feito à imagem de Deus, foi criado independente e apenas a ele submetido; por conseguinte não parece que possa ser justamente submetido à servidão ou sujeição por qualquer outro homem; logo, um homem não pode ser forçado a reconhecer outro homem como príncipe e senhor temporal: consequentemente, autoridade política que usurpe esse senhorio nem é legítima nem vem de Deus".
Apesar desta clareza, a reflexão cristã do séc. XIX regrediu voltando a defender a teoria de que Deus outorgava o poder directamente aos governantes sem passar pelo povo. Era o canto de cisne dos antigos regimes, a morrerem às mãos das democracias nascentes. Por isso, os então novos regimes democráticos se viram empurrados para um violento anticlericalismo adoptando uma atitude sistemática de perseguição contra a Igreja.
Não foi fácil o caminho da reflexão cristã ao encontro das "Novas realidades" do século, como sabemos. Seria só Pio XII a afirmar: "o homem, longe de ser um objecto e um elemento passivo da vida social, é, ao contrário, e deve sê-lo sempre, o seu sujeito, fundamento e fim. (…) Manifestar a sua própria opinião sobre os deveres e os sacrifícios que lhe são impostos, e não ser obrigado a obedecer sem ter sido escutado, são dois direitos do cidadão que, na democracia, como o próprio nome diz, encontram uma expressão natural".
O Vaticano II diria ainda melhor:
"É plenamente conforme à natureza do homem que se encontrem estruturas jurídico-políticas nas quais todos os cidadãos tenham a possibilidade efectiva de participar livre a activamente, de um modo cada vez mais perfeito e sem qualquer discriminação, tanto no estabelecimento das bases jurídicas da comunidade política, como na gestão da coisa pública e na determinação do campo e fim das várias instituições, e na escolha dos governantes. (…) É desumano que a autoridade política assuma formas totalitárias ou ditatoriais que lesem os direitos das pessoas ou dos grupos sociais" (GS 75).
E, para terminar, João Paulo II:
"A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade de escolher e controlar os próprios governantes, e de os substituir pacificamente quando tal se torne oportuno. (…) A autêntica democracia só é possível num estado de direito e sobre a base da correcta concepção da pessoa humana" (CA 46).
Esta rápida viagem pela Doutrina evoca também toda a história política dos séc.s XIX e XX bem como o próprio trajecto pessoal de muitos dos que, mais velhos, aqui nos encontramos. Hoje, a história tem já muito de conquistado, é verdade, mas muito mais para conquistar.
Porque a democracia não se esgota na sua formalidade política. Porque somos todos iguais, mas alguns muito mais iguais que a maioria no que respeita particularmente aos bens de ordem económica. E também porque, nesta luta que há ainda para travar, não seremos certamente nós, os cristãos, a ter o papel preponderante.
Ou estarei mesmo enganado?
11. A fundamentação ética das leis civis
À entrada da Biblioteca da Universidade de Salamanca, uma das mais antigas da Europa, um grande letreiro deixava tudo muito claro: quem roubar um livro que seja (ilícito civil) é punido com pena de excomunhão (pena canónica), isto é, é excluído da comunidade cristã e da comunhão eucarística!
Nas últimas semanas, voltou às primeiras páginas da imprensa mundial o caso de Amina, a mulher nigeriana divorciada que teve um filho fora do casamento, a quem a lei do país, transcrita directamente do Alcorão, quer por tal crime aplicar a pena capital: apedrejada até à morte depois de enterrada viva até à cintura. O clamor mundial faz-se de novo ouvir. No fundo, a questão da pena da morte, e a questão de saber se uma certa moral religiosa hoje indefensável, pode continuar a ser reconhecida como lei civil.
Nos dois casos citados, e tantos mais se poderiam referir, é clara a mistura/confusão entre o religioso e o civil e, mais do que isso, o transporte de concepções confessionais para a lei civil, aplicada a todos os cidadãos, mesmo os não crentes.
Ontem como hoje, em Estados mais ou menos confessionais, eram os princípios religiosos que inspiravam a legislação civil, muito bem ou muito mal. "Não matarás" na lei religiosa, "não matarás" na lei civil. E então, quando os Estados deixaram de ser confessionais e Deus a referência última da legislação civil, que instância ética pode ou deve substituí-lo? Para esta pergunta há três respostas possíveis.
Antes de mais a do positivismo jurídico, que é clara: nenhuma, ou seja, as leis civis não precisam de qualquer fundamento ético, brotam simplesmente da vontade do legislador: auctoritas non veritas facit legem (é a autoridade e não a verdade que faz a lei). Claro que este princípio é brutal em demasia pois reduz a lei e a obediência a ela a uma mera questão de força, como se se tratasse da obediência a um bandido, a bolsa ou a vida! Hitler pode ser um exemplo extremo do positivismo jurídico.
A Igreja condenou-o sem paliativos: "O simples facto de uma lei ter sido promulgada pelo poder legislativo do Estado por si só não basta. O 'critério do simples facto' só vale para Aquele que é o Autor e regra soberana de todo o direito: Deus. Aplicá-lo ao legislador humano indistinta e definitivamente é o erro do positivismo jurídico no sentido próprio e técnico da palavra, erro que está na base do absolutismo do Estado" (Pio XII, 1949). De facto, contra o positivismo, há que afirmar que as leis só se justificam se tiverem fundamento moral. Elas devem dar força exterior e coactiva a alguns deveres sociais que se nos impõem por consciência ética.
A ser assim, no entanto, é preciso encontrar um princípio ou critério objectivo universalmente válido sem o qual as leis positivas se convertem em meras convenções ou capricho de legisladores. A esse princípio natural objectivo costuma dar-se o nome de direito natural. O Direito natural - dizia Santo Agostinho - não é fruto de uma opinião, mas uma força inata ao homem. Os princípios e imperativos naturais - dizia - são evidentes por si mesmos, não precisam de ser demonstrados. Sobre eles não há nem erro nem ignorância.
Esta teoria do Direito natural foi muito seguida no passado e seria a solução perfeita para a nossa questão se… não tivesse o inconveniente de não funcionar. Um exemplo só: a Igreja católica diz que o casamento heterossexual e monogâmico é uma exigência espontânea da natureza humana, mas os homossexuais e as lésbicas dizem que não. E agora? Mais do que isso ainda: logicamente que quem afirma que os princípios do direito natural são "evidentes por si mesmos" e não fruto de uma demonstração, afirma também que quem não concordar com essa evidência não está simplesmente equivocado, mas tem uma 'natureza depravada'. Portanto, homossexuais e lésbicas tudo para a cadeia! E se for num país árabe, tudo apedrejado!
Muitas vezes, o que safou deste raciocínio terrivelmente simplista é que coexistiam distintas concepções de direito natural. É mesmo um facto indesmentível que só muito poucas vezes, para não dizer nunca, a humanidade conseguiu pôr-se de acordo sobre as exigências concretas do direito natural. A Igreja bem tentou considerar-se a intérprete legítima do direito natural, mas nunca conseguiu muito. Nem se pode hoje pretender que todos acatem a sua opinião num tempo pluralista e não confessional como é o das sociedades modernas.
A existir alguma solução prática para o problema da fundamentação ética das leis civis na sociedade pluralista moderna, é preciso, antes de mais, reconhecer o facto do pluralismo. Nas sociedades actuais convivem diferentes sistemas morais: há uma ética cristã, uma ética liberal, uma ética marxista, uma outra muçulmana, etc. No entanto, embora distintas umas das outras, coincidem todas num núcleo básico bastante mais alargado do que poderia pensar-se à primeira vista.
11.1. A ética civil
A Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU (1948), elaborada por representantes das diversas ideologias e dos mais variados países, pode dar-nos uma ideia das dimensões que tem hoje o património ético comum do conjunto da Humanidade. Algo parecido poderia dizer-se da Declaração por uma Ética Mundial, promovida pelo Parlamento das Religiões Mundiais, reunido em Chicago em 1993, que recolheu os princípios e valores éticos presentes em todas as religiões mundiais.
A esse património comum partilhado digamos que por toda a humanidade convencionou chamar-se "ética civil": "Estas exigências, ao serem reconhecidas efectivamente na vida social, constituem um património ético da sociedade historicamente recebido e historicamente aperfeiçoável. Embora este património não condiga plenamente com a totalidade da moral social cristã, os católicos podem encontrar nele um terreno comum para a convivência, ao mesmo tempo que devem esforçar-se por colaborar no seu enriquecimento pela via do diálogo e da persuasão" (Bispos espanhóis, 1986).
Poucos crentes compreendem bem o que pode significar esta solução. Muitos objectam mesmo que a verdade moral não é o resultado de um consenso e que, portanto, não se podem deixar as decisões éticas nas mãos da maioria. O que é verdade. Mas numa sociedade pluralista não parece que haja nenhuma outra instância sobre que possam fundamentar-se as leis civis: assentemos, portanto, naquilo que todos reconhecemos ser fundamental. Mais: esse fundamental pode mesmo ser enriquecido, no sentido de alargado. Tal como no passado se alimentou o património ético comum com os contributos das distintas religiões e filosofias, é preciso esforçarmo-nos hoje por purificá-lo e enriquecê-lo de olhos postos no futuro.
Mas alguns crentes, e agora falo de cristãos, objectam que a ética civil equivale algumas ou muitas vezes a um menosprezo do Evangelho. Será mesmo assim? Mas a verdade é que a ética civil não pode converter-se na norma moral única ou a mais importante dos crentes cristãos cuja conduta deve continuar a ser a da moral cristã (o mesmo acontece com os demais crentes, que continuarão a reger-se pelas suas respectivas éticas): "Não seja assim entre vós…", recomendava Jesus (Lc 22,25/27).
A ética civil, que serve única e exclusivamente para inspirar as leis civis, pode mesmo muitas vezes corresponder aos mínimos exigidos se comparada com a moral religiosa. Mesmo assim, a respeitar por todos.
Convém, entretanto, ter presente que nem todas as exigências éticas devem converter-se em leis civis. Isso multiplicaria de tal modo as leis que rapidamente se chegaria a um Estado autenticamente policial. Dizia o escritor italiano Curzio Malaparte (1898-1957) que um Estado totalitário "é um Estado onde tudo aquilo que não está proibido é obrigatório".
A missão das leis civis é humilde: elas não pretendem fazer santos, contentam-se em garantir uma convivência social ordenada. O critério - dizia S. Tomás de Aquino - é este: as leis não devem proibir todos os vícios, mas só os mais graves, aqueles que tornem a convivência impossível. As restantes exigências éticas devem ser cumpridas pelos cidadãos sem nenhum tipo de coacção, pois que só assim têm valor moral.
De resto, as leis civis devem ter em conta o grau de maturidade da sociedade a que se destinam. Como dizia com graça um bispo francês do tempo das primeiras tensões liberais: "quando eu encomendo uns sapatos ao meu sapateiro, não lhe dou as medidas dos pés de Apolo mas as dos meus". A imaturidade ética de uma determinada sociedade pode desaconselhar a proibição legal de alguns vícios - inclusive graves - para evitar males ainda maiores.
A política, como sabemos, é a arte do possível. Pretender o impossível tem sempre consequências negativas. Sabemos o que aconteceu nos Estados Unidos em 1920 com a chamada "lei seca": calcula-se que 40 ou 50'% da população se transformou em delinquente por consumir bebidas alcoólicas conseguidas da maneira clandestina. De facto, uma lei assim não estava adaptada à situação real da sociedade, e acabou por criar mais problemas que os que, eventualmente, resolveu. Aconteceu até que, certos fabricantes ilegais, refugiando-se na clandestinidade em que actuavam, substituíram o álcool etílico por metanol, acabando assim por provocar a cegueira em muitos consumidores. A lei não poderia senão ter sido derrogada, o que aconteceu 13 anos depois. Falando da liberdade, Leão XIII escreveu mesmo assim em 1888: "A Igreja não se opõe a que os poderes públicos tolerem algumas situações contrárias à verdade a à justiça para evitar um mal maior ou conservar um bem maior".
11.2. Que fazer numa democracia às leis injustas?
A história e a experiência dizem que, tanto nas ditaduras como nas democracias, se promulga(ra)m muitas vezes leis injustas. Nas ditaduras, nada de admirar, mas nas democracias! O que deve fazer um cristão?
"Esta nossa sociedade, onde tantas forças económicas e políticas estão interessadas em conduzir as vidas dos homens segundo os seus próprios projectos, pede-nos o testemunho e a oferta, clara e respeitosa, de um ideal de vida e de critérios morais que ajudem a fundamentar a paz e a justiça" (Bispos espanhóis, 1983). Duas coisas, portanto: em primeiro lugar, a necessidade de defender publicamente e sem complexos os valores humanizadores, ainda que tal possa resultar impopular em casos determinados. Para além disso, que a oferta de que falavam os Bispos espanhóis deve ser clara e respeitadora. Se a Igreja, noutros tempos, dava ordens, hoje tem que convencer. E as faltas de respeito, e menos ainda os insultos, nunca convencem.
Claro que, a haver leis injustas, é necessário que os cristãos continuem e reger-se não por elas mas pela moral cristã. E que isto fique claro. Acostumados a uma sociedade e a uma cultura mais ou menos cristã (para não dizer confessional) em que as leis em princípio se inspiravam numa moral também cristã, pode haver quem pense que, se a lei diz, permite ou manda, é porque é bem. Pois bem, pode não ser. Quando as leis civis permitem comportamentos que a moral cristã reprova, o cristão saberá que não pode aproveitar-se dessa permissividade. E se alguma vez as leis civis exigissem a alguém um comportamento contrário às suas convicções? Os mártires do cristianismo primitivo enfrentaram a morte por causa disso mesmo: e era só uma questão de queimar uns grãozinhos de incenso, lealdade política!, no altar de deus-imperador! Nas sociedades democráticas modernas há o recurso à objecção de consciência, hoje legalmente enquadrada. Como dizia S. Tomás, uma lei injusta não obriga: "A lei humana tem carácter de lei enquanto se ajusta à recta razão e, por isso mesmo, deriva da lei eterna. Pelo contrário, na medida em que se afasta da razão e se converte em lei iníqua, deixa, como tal, de ser lei, passando a ser violência".
Continua, portanto, a ser verdade que "é necessário obedecer a Deus, mais que aos homens" (Act 5,29). Este é um princípio reconhecido universalmente e desde tempos muito anteriores ao cristianismo. Quando os juízes de Sócrates propunham perdoar-lhe a pena de morte se ele deixasse de divulgar a sua doutrina, ele respondeu dizendo: "Agradeço as vossas palavras e estimo-vos muito, atenienses, mas obedecerei a Deus e não aos homens".
12. Os Direitos do Homem
Em Portugal, no séc. XVI "os escravos vendiam-se ao modo de cavalos, de gado ou de quaisquer outros animais domésticos. A lei comercial em vigor não fazia distinções - as Ordenações referem-se aos escravos enquanto 'cousas', junto a outros objectos, vivos ou não. Desta feita, 'um tonel de vinho ou de azeite, ou um servo, ou uma besta', era tudo passível de venda à prova, sendo estabelecido um determinado tempo para o comprador se certificar de que estava satisfeito. Os animais enjeitados podiam ser devolvidos ao vendedor, enquanto os compradores de escravos podiam exigir o dinheiro de volta se o escravo morresse de doença ou se descobrisse ser doente" (Saunders - Escravos e libertos negros em Portugal, Lisboa: INCM, 1982, p. 38).
Espanta-nos hoje uma coisa destas. Como é possível tenha sido assim! Poderiam multiplicar-se os exemplos para vermos que tanto a simples expressão como a consciência clara dos Direitos Humanos não se alcançou senão nos tempos modernos.
E, no entanto, desde a Antiguidade que ela se perseguia. O exemplo mais antigo será, porventura, o de Péricles que, na Idade de Ouro grega, disse assim na sua célebre "Oração Fúnebre" diante dos soldados gregos mortos na guerra do Peloponeso: "De acordo com as nossas leis, cada qual está em situação de igualdade de direitos nas dissenções privadas, e é honrado na convivência pública, não pela classe social a que pertence, mas pelo seu mérito".
Digamos que, no mínimo, começava o longo caminho da afirmação dos Direitos do Homem na história da Humanidade. Foi uma grande viagem. Passemos pela Carta Magna do rei inglês João Sem Terra de 1215, demos um salto ao Bill of Rights da Virgínia de 1776, passemos à Declaração de Independência dos Estados Americanos de 1776, à Declaração Francesa de Direitos do Homem de 1789, cheguemos à Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU de 1948, depois à Convenção do Conselho da Europa para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950, e ao Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assinados em Nova Iorque no âmbito da ONU em 1966. Já aqui fiz esta história por duas vezes.
De todos os documentos citados pode dizer-se que, até 1948, se tratava não propriamente de Direitos do Homem mas de direitos estamentais, ou seja, direitos de um certo grau social. Apesar de ter afirmado que "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos", logo a Assembleia Nacional Francesa de 1789 se apressou a interpretar que "os homens" sim, mas só os proprietários e os brancos.
Para que os Direitos o passassem a ser de facto, e para todos, entrariam na liça cinco factores decisivos e determinantes que apenas enumero.
Durante séculos, a Religião jogou o papel político importantíssimo de cimento aglutinador da sociedade. A partir do séc. XVI, no entanto, as guerras de religião que se seguiram à Reforma assentaram na Europa. Juristas e governantes deram-se então conta de que, como se tornava impossível fundamentar a convivência sobre a religião, era necessário fazê-lo a partir da liberdade religiosa, ou seja, da tolerância religiosa. Sarcasticamente como sempre, Voltaire (1694-1778) perguntava: "Queríeis sustentar através de verdugos a religião de um Deus que outros verdugos mataram, ele que só tinha pregado misericórdia e paciência?".
Em segundo lugar, os Direitos do Homem alimentaram-se da oposição dos cidadãos ao poder ilimitado de reis e príncipes que detinham um poder ilimitado sobre os súbditos: "Da mesma maneira que se domina um cavalo e quem o monta o dirige para onde quer, assim o rei deve dirigir o seu povo segundo o seu desejo", dizia um romance medieval. Ou "O Estado sou eu", dizia Luís XIV.
O terceiro factor foi a luta pela humanização do direito processual e penal. Melhorar as prisões, acabar com a crueldade da tortura para arrancar confissões, terminar com penas desproporcionadas aos delitos cometidos, etc, etc, tudo foi entrando nas legislações nacionais e faz hoje parte da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Teve uma enorme influência ainda a luta pela emancipação das classes trabalhadoras. Marxistas e anarquistas sobretudo tiveram neste campo um enorme influxo - não esqueçamos o célebre "de cada um segundo as suas capacidades e a cada um segundo as suas necessidades" - o que levou a que muitos homens e mulheres se tivessem disposto a dar a vida pela causa.
Finalmente - não esqueçamos que, em 1789, a Declaração da Revolução Francesa ainda só se referia aos homens - o movimento feminista que nascera pelo séc. XVIII.
12.1. As quatro notas dos Direitos do Homem
Todos estes contributos, caldeados, sonhados e melhorados, levaram à afirmação das quatro notas de todos e cada um dos Direitos do Homem em concreto.
Chamamos Direitos Humanos a todos aqueles (direitos) que se atribuem a todos os seres humanos pelo facto de o serem, isto é, pelo simples facto de serem Homens. São por isso direitos naturais, porque brotam da própria natureza do Homem. Assim sendo, são anteriores e superiores ao direito positivo. É verdade que a Lei tem de explicitá-los e garanti-los, mas não é a Lei que os cria; apenas os descobre, proclama, sanciona e protege. "Não pode aceitar-se portanto - afirma João XXIII - a doutrina dos que afirmam que a vontade de cada indivíduo e de certos grupos é a fonte primária e única donde brotam os direitos e deveres dos cidadãos" (Pacem in Terris 78).
São também invioláveis, isto é, ninguém pode ser privado deles. No entanto, não são ilimitados porque o exercício do direito próprio termina onde começa o direito positivo dos outros. Uma pessoa que atente contra os direitos dos outros pode ser temporariamente privada dos seus.
São inalienáveis, isto é, não só ninguém pode privar um indivíduo dos seus direitos, como também o próprio indivíduo não pode aliená-los, pois isso equivaleria a renunciar à condição humana. É legítimo renunciar ao exercício de um determinado direito, mas não à sua titularidade.
Finalmente, são universais, isto é, válidos para todos, sem excepção.
Estes são os princípios gerais. Com a sua enunciação, apenas se começou. No capítulo da simples afirmação dos Direitos Humanos há ainda muito caminho a andar. João XXIII dizia que "para todos os seres humanos constitui quase um dever pensar que o que já está realizado é sempre pouco em comparação com o que resta fazer".
12.2. A fundamentação dos Direitos do Homem
Reconhecer e afirmar os Direitos do Homem mas fundados em quê?
Todos os humanistas coincidem em afirmar o valor único da pessoa humana: "O homem é a medida de todas as coisas" (Protágoras [485-480 aC]); "O homem é fim e nunca meio ou instrumento; portanto, independentemente da sua maior ou menor utilidade, reclama um respeito incondicional. (…) Tudo no mundo tem um preço; mas só o homem uma dignidade" (Kant).
No entanto, servindo-nos unicamente da razão, não é fácil justificar esta afirmação. Como podemos dizer que a pessoa humana tem uma dignidade absoluta sendo como somos seres tão contingentes? Como podemos afirmar a dignidade essencial de todos os seres humanos se, na prática, as desigualdades - por razão de sexo, de inteligência, de idade, de situação económica - saltam tanto à vista?
A questão não é fácil de resolver. É fácil responder que é assim porque é assim (sei lá, por vontade do legislador), que é assim por intuição não racional, que é assim e portanto estejamos de acordo que é assim e ninguém se preocupe em perguntar ou justificar porquê… Não é fácil responder à questão.
A não ser que à pergunta do porquê dos direitos fundamentais se responda de uma maneira absoluta, a partir da existência de um ser absoluto, fundamento de tudo, chame-se-lhe Deus ou qualquer outra coisa, que possa realmente justificar a dignidade da pessoa humana. "A Paz na Terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus", abria assim João XXIII a sua encíclica Pacem in Terris.
É verdade que somos crentes e, por isso, para nós, a questão se torna mais fácil. Isto é, os direitos do homem, naturais, invioláveis, inalienáveis e universais, fundamentam-se em Deus. Digamos que um não crente, parte, para a afirmação dos Direitos do Homem, não da fé em Deus mas da fé no homem, o que é mais complicado e até perigoso. Por quê, em nome do homem se deu quantas vezes cabo do mesmo homem? Ainda não esquecemos palavras como goulag, o tarrafal, a exploração operária do séc. XIX, etc.
Para nós, crentes, a questão é mais fácil, dizia. O fundamento teológico dos Direitos do Homem encontra-se no tema bíblico do "homem [masculino ou feminino], imagem de Deus" (Gn 1, 26-27). Na religião egípcia, só o faraó era "a imagem viva de Deus na terra". Mas não assim na judaica.
A pregação de Jesus radicalizaria depois este ensinamento ao reivindicar a dignidade absoluta do homem - inclusive do pecador - diante de Deus, e a igualdade de todos os seres humanos entre si.
A teologia cristã da Incarnação assenta igualmente nesta absoluta dignidade de toda a pessoa humana. Quando se fez homem, o Filho de Deus uniu-se à natureza humana, a todos e cada um dos homens, a ponto de ter dito que "tudo o que fizerdes a um destes mais pequeninos é a mim que o fazeis" (Mt 25.40).
E não é preciso dizer mais. O que fica basta para intuir que o homem - dizia Zubiri, o filósofo - é quase, quase "uma maneira finita de ser Deus". João Paulo II diria assim: "o profundo maravilhar-se a respeito do valor e dignidade do homem chama-se Evangelho, isto é, Boa Nova. Chama-se também cristianismo" (RH 10b).
Por isso, é injustificável qualquer privilégio de uns sobre os outros. Diante de Deus somos todos iguais. "Em Deus não há acepção de pessoas", diz a Bíblia repetidamente (Gal 2,6; Rom, 2,11; Col 3,25; Act 10,34-35; 1 Ped 1,17). Um homem vale tanto como outro homem: "Já não há judeu nem grego, escravo nem homem livre, homem nem mulher, já que sois todos um em Cristo Jesus" (Gal 3,28).
Por isso mesmo, "toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja de tipo social, cultural, por motivos de sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião, deve ser vencida ou eliminada por ser contrária ao plano divino" (GS 29b).
12.3. Os Direitos de primeira geração
"Todo o indivíduo tem direito à vida", começa por afirmar a Declaração Universal dos Direitos do Homem da Onu. "O ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida", afirmava João XXIII na Pacem in Terris.
A vida é o bem mais apreciado e também o primeiro de todos os direitos que pertencem ao indivíduo. Claro que nem sempre assim foi ou é; por isso se começa por aqui. Certos povos da Antiguidade - os Lacedemónios, por exemplo - matavam as crianças que nasciam com deformidades, o que acontece ainda hoje, por exemplo, em alguns povos africanos! Em 1996 foram ainda condenadas à morte em todo o mundo mais de 7.000 pessoas, tendo sido executadas mais de 4.000 (3.500 na China). E, mudando de agulha. Em Portugal, morrem em média por mês cinco mulheres vítimas de violência doméstica. Em Portugal, apesar de todas as vigilâncias, endurecimentos policiais e tolerâncias zero, morre cada vez mais gente nas estradas (só no passado mês de Maio, o pior dos últimos 3 anos, morreram 123 pessoas). Os acidentes de trabalho. Agora, assassínios por encomenda. E o terrorismo de facções versus terrorismo de Estado, para não falar já nos cada vez mais frequentes genocídios ou limpezas étnicas. Etc.
O direito à vida é o direito fundamental. No entanto, apesar do "Não matarás" do Decálogo (Ex 20,12 e Dt 5,17), a pena de morte era aplicada em Israel. Só com a Boa Nova de Jesus, no episódio da adúltera (Jo 8,1-11), ficou claro que ninguém tem o direito de tirar a vida a outrem porque, de facto, somos todos pecadores. Mesmo assim… aí estiveram Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, a Inquisição, a própria 1ª edição do Catecismo da Igreja Católica a justificar a pena de morte, e etc. Mais recentemente, no entanto, se é verdade que a onda contra a pena de morte cresce, surgem novos problemas, do aborto à eutanásia.
Na decorrência do direito à vida afirma-se ainda que "a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas são proibidos" e que "ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos o degradantes" (ONU 4-5). João XXIII fala ainda do "direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida" (PT 15).
Todos os demais direitos costumam ser apresentados hoje por gerações, tendo em conta o momento em que foram reivindicados e consignados depois por escrito.
Os - assim ditos - direitos de primeira geração referem, em princípio, os reconhecidos pela Revolução Francesa e mais tarde consignados na Declaração da Onu de 1948. Pode dar-se-lhes também o nome de "liberdades": liberdade de pensamento, de consciência e de religião, de opinião e de expressão, de reunião e associação, de circulação, de imprensa.
Em princípio, o respeito pelos direitos de primeira geração - isto é, direitos civis e políticos - só exigem da sociedade que não interfira na liberdade individual de cada um.
Rapidamente se viu, no entanto, que as primeiras declarações de Direitos Humanos - e refiro-me particularmente à americana e à da revolução francesa - recolhiam sobretudo o pensamento e os interesses da burguesia. Já Marx observava que "nenhum dos chamados direitos humanos vai além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade burguesa, do seu interesse e arbítrio privado e dissociado da comunidade".
12.4. Os direitos de 2ª, 3ª e 4ª geração
Por isso, ainda nos finais do séc. XIX, se começou a reivindicar uma segunda geração de Direitos Humanos. Reconhecidos num primeiro momento pela Constituição mexicana (1917) e depois pela Constituição Alemã dita de Weimar (1919) viriam a ser recolhidos pela Onu: "Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente que assegure, a si e à sua família, a saúde e o bem-estar, principalmente no que concerne à alimentação, ao vestuário, à habitação, à assistência médica e aos serviços sociais necessários" (artº 25.1), tem "direito à educação que deve ser gratuita pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental, devendo o técnico e profissional ser generalizado e o acesso ao superior estar aberto a todos em plena igualdade, em função do mérito de cada um" (26.1), e tem ainda o "direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias, à sua livre escolha, e à protecção contra o desemprego" (artº 23.1) e o de "tomar livremente parte na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que dele resultam" (artº 27.1).
Em princípio os direitos de segunda geração - isto é, os direitos sociais, económicos e culturais - exigem a disponibilidade de abundantes meios económicos para o seu cumprimento. Se os da primeira geração não fazem o Estado gastar dinheiro, estes, pelo contrário, exigem-lhe abundantes massas financeiras. Por isso a sua aplicação é muito mais difícil, e tem claramente de ser progressiva. Por isso ainda, também neste capítulo, o primeiro Mundo vai à frente, e o Terceiro e mesmo o Quarto muito atrás.
Ainda que em sentido estrito o sujeito dos direitos humanos seja cada pessoa, por extensão as comunidades e os povos - enquanto formados por pessoas humanas - são também titulares ou sujeitos de direitos fundamentais. Dizem-se de "terceira geração" os direitos que têm como titulares os povos e, inclusive, a humanidade inteira. Entre estes devem enumerar-se: o direito ao desenvolvimento (todos os povos da terra têm direito a disfrutar dos bens e serviços que estão hoje ao alcance da Humanidade - Onu 1948), o direito a um meio ambiente são (a deterioração da ecologia é um atentado aos direitos da Humanidade, considerada no seu presente e no seu futuro), o direito à Paz (todos os habitantes da Terra têm um "direito sagrado" a nascer e viver em Paz - Declaração sobre o direito dos Povos à Paz, 1984), direito à autodeterminação (João Paulo II na 50ª Assembleia Geral da Onu, 1995: "Pressuposto dos demais direitos é para uma nação o seu direito à existência", "tendo embora em conta a dificuldade de definir o próprio conceito de nação"), e o direito à identidade cultural (os membros de uma minoria têm direito a que a maioria nada lhes imponha neste capítulo).
Chamo ainda atenção para um pormenor: a Declaração da Onu de 1948 não se dizia dos Direitos Humanos mas de Direitos Humanos. Não refere, portanto, todos os Direitos porque, como Declaração que é, tem um valor relativo e histórico. De resto, um catálogo teórico dos Direitos seria ilimitado. Por isso, eles não somente se proclamam mas, no terreno, precisam de ser defendidos. Isto é, não conhecemos ainda todos os Direitos Humanos. O célebre Pe Arrupe, Superior Geral dos Jesuítas, dizia: "Estamos muito longe de esgotar tudo o que pode ser objecto dos direitos do homem. Do mesmo modo que não sabemos qual o limite das capacidades físicas humanas quando vemos como se superam marcas [desportivas] que se julgavam impossíveis de ultrapassar, não podemos saber até onde pode chegar, com o tempo, uma consciência moral desenvolvida e o sentimento da fraternidade e da igualdade cristã no que respeita a definir o que é o direito do homem". Está portanto aberto o caminho aos direitos de quarta geração.
Sempre na mira, o homem criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27).


A fechar
Por muitas razões, as comunidades não dispõem hoje de tempos disponíveis para catequeses sistemáticas. Inadiáveis, no entanto. Penso por isso que, para tal, pode e deve aproveitar-se o instrumento pastoral chamado homilia. Foi assim em 1996/97 com a Escatologia, foi assim agora, poderá voltar a ser com outra questão qualquer.
Chego ao fim sem abordar algumas questões - tantas! - não por serem menos importantes mas por necessidade de terminar. Ficam para trás, por exemplo, questões a da guerra - justa? ou sempre injusta? -, a da cultura e da educação, da comunicação social, etc.
A terminar, uma página de João Paulo II, da Centesimus Annus:
«Nos últimos 100 anos, a Igreja manifestou repetidamente o seu pensamento, seguindo de perto a evolução contínua da questão social. Não o fez para recuperar privilégios do passado ou para impor a sua concepção social. O seu único objectivo era o cuidado e a responsabilidade pelo homem a ela confiado pelo próprio Cristo: por este homem que, como o Concílio Vaticano II recorda, é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, e para a qual Deus tem o seu projecto, isto é, a participação da salvação eterna. Não se trata do homem abstracto, mas do homem real, concreto, histórico: trata-se de cada homem, porque cada um foi englobado no mistério da redenção e Cristo uniu-se com cada um, para sempre, e através desse mistério. Disto se segue que a Igreja não pode abandonar o homem e que "este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer na realização da sua missão (…), o caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que invariavelmente passa pelo mistério da incarnação e da redenção".
A inspiração que preside à doutrina social da Igreja é esta, e só esta. Se a foi elaborando pouco a pouco de forma sistemática, …, é porque toda a riqueza doutrinal da Igreja tem como horizonte o homem, na sua concreta realidade de pecador e de justo.
A doutrina social hoje especialmente visa o homem, enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades modernas. As ciências humanas e a filosofia servem de ajuda para interpretar a centralidade do homem dentro da sociedade, e para o capacitarem a uma melhor compreensão de si mesmo, enquanto "ser social". Todavia, somente a fé lhe revela plenamente a sua verdadeira identidade, e é dela precisamente que parte a doutrina social da Igreja que, recolhendo todos os contributos das ciências e da filosofia, se propõe assistir o homem no caminho da redenção.
(…) Daqui resulta que a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério da salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente a ela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do proletariado, da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida da concepção até à morte.
A Igreja recebe o "sentido do homem" da revelação divina. "Para conhecer o homem, o homem verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer Deus", dizia Paulo VI… Portanto, a antropologia cristã é realmente um capítulo da teologia e, pela mesma razão, a doutrina social da Igreja, ocupando-se do homem, interessando-se por ele e pelo seu modo de se comportar neste mundo, "pertence […] ao campo da teologia e especialmente da teologia moral". A dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas actuais da convivência humana.»
Termina aqui esta grande citação de João Paulo II. Por tudo isto resolvi fazer esta longa catequese, contribuindo assim, como disse já o Vaticano II, para que "os leigos aprendam, antes de mais, os princípios da doutrina social e as suas conclusões, de modo a tornarem-se aptos quer a prestarem o seu contributo ao progresso da doutrina quer para aplicá-los convenientemente aos casos particulares" (AA 31).
Resta-me apenas dizer, por uma questão de honestidade, que me servi para esta reflexão dos apontamentos que colhi nas aulas do Professor Luís Carvajal, por ele publicados em vários títulos dedicados à DSI (Fieles a la Tierra, Madrid: Comisión Episcopal del Clero, 1995 e Entre la utopía y la realidad, Santander: Sal Terrae, 1998), tudo acrescentado da minha reflexão pessoal e de dados mais actualizados e quanto possível referidos à realidade portuguesa.




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